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CAPÍTULO 3. Ensino de Língua Portuguesa e colonialidade de poder: sobre a (des) colonização da educação literária no Brasil

3.3. Focos e níveis de análise: fundamentações teórico-metodológicas

3.3.1. Macroestrutura dos livros didáticos: quadro analítico

Quadro 2.Categorias da Macroestrutura dos livros didáticos (adapt. de DIONÍSIO [2000]). De início, cabe esclarecer que a categoria de localização e distribuição figura como o único recorte inteiramente autoral do nosso método de análise, visto que, para o desdobramento da categorização dos dois níveis de estudo (macro e micro), apoiamo-nos com frequência na aplicação e na reinterpretação dos modelos elaborados por Dionísio (2000). Conforme mencionado, explicitamos, no decorrer do detalhamento dos significados de cada categoria, quais delas foram diretamente transpostas do trabalho de Dionísio e sobre quais exercemos qualquer tipo de modificação.

A priori, na análise da macroestrutura, interessa-nos observar inicialmente a localização e distribuição das literaturas indígenas brasileiras, afro-brasileira e africanas, a fim de verificar se esta ocupa um lugar restrito, articulado ou tangencial nos livros didáticos. Em outras palavras, trata-se de verificar se esses textos se encontram, respectivamente, em um

capítulo único e substancial; em mais de um capítulo e articulados ao conteúdo escolar clássico; ou se comparecem tangencialmente/à margem das coleções, em um espaço bastante reduzido se comparado ao padrão editorial da coleção. Se, conforme discutimos anteriormente, uma perspectiva pós-colonial de educação implica uma revisão e um questionamento do cânone escolar, o qual é marcado, nos livros didáticos, por uma cristalizada disposição cronológica que atenda às escolas literárias europeias, consideramos que a própria escolha da seção e/ou do capítulo de inserção de “novos” conteúdos afirma-se como um dado relevante para o entendimento dos impactos de leis de cunho multicultural. Em outras palavras, a inclusão desses conteúdos em um espaço à margem doslivros didáticos(em duas ou em três páginas de encerramento do volume, por exemplo) pode culminar, contrariamente ao esperado, em um novo tipo de exclusão/marginalização dessas produções culturais.

Os fundamentos do Manual do Professor também integram as discussões correspondentes ao nível macro dos livros didáticos. Além de explorarmos, de modo geral, se e em que medida a questão da diversidade cultural faz-se presente nas instruções e nos subsídios dados ao docente, atentamo-nos especialmente a duas subcategorias de análise, estas sim em diálogo com o quadro analítico de Dionísio60:

 Critérios de seleção dos textos, que podem fazer-se presentes ou ausentes (DIONÍSIO, 2000, p. 133); a partir deles, é possível perceber se e em que medida a diversidade cultural constitui-se um parâmetro de escolha no que tange à definição do repertório literário geral da coleção, bem como os critérios e as justificativas que embasam o repertório específico destinado ao cumprimento das leis 10.639/2003 e 11.645/2008 em cada coleção;

60Para a análise do Manual do Professor, adotamos duas das ramificações categóricas delineada por Dionísio

(2000) em seu Quadro 1 (“Categorias de análise dos ‘textos de abertura’”, p. 138), no caso, as subcategorias “critérios de seleção de textos” e “objetivos das coleções”. Em seu estudo, essas ramificações atrelam-se a aspectos daquilo que a autora denomina de “textos de abertura”, correspondente aos textos por meio dos quais é possível notar “a forma como o autor perspectiva o uso que do seu manual deve ser feito” (ibid., p. 132). No nosso trabalho, porém, tratamos os “textos de abertura” como sinônimo de “Manual do Professor”, posto que associamos essa categoria a todas as orientações e respostas fornecidas aos docentes, sem exceção, daí a pertinência de substituição de um termo por outro.

 Objetivos das coleções, que podem ser de natureza técnica, ou seja, atrelados à aquisição de saberes e de capacidades escolares de viés técnico-conteudístico61, e/ou voltados à promoção/ao desenvolvimento de atitudes, estando associados, neste caso, à “dimensão formadora da personalidade, a este papel socializador, bem como as referências às atitudes e aos valores que se promovem, pela leitura, a par de atitude crítica e do desenvolvimento afectivo e estético” (DIONÍSIO, 2000, p. 135). Esta ramificação, em especial, favorece, a nosso ver, o levantamento de objetivos que relacionem o cumprimento das leis 10.639/03 e 11.645/08 a uma formação para a cidadania, pois atrelamos a essa subcategoria quaisquer objetivos que postulem reflexões e atividades favoráveis à promoção de posturas (/“atitudes”) de combate ao preconceito e à discriminação sofrida por negros e indígenas. Com base nas discussões que apresentamos nos capítulos anteriores, entendemos que, para além de ampliar o repertório sociocultural dos estudantes, as leis surgem também, e fundamentalmente, com o intuito de discutir, a partir da literatura, atitudes e valores alinhados ao reconhecimento crítico e positivo da pluralidade cultural. Daí a necessidade de verificar se o trabalho com as literaturas afro-brasileira, africanas e indígenas proposto pelas coleções busca articular objetivos que visem ao desenvolvimento de capacidades e de conhecimentos técnicos a objetivos que visem suscitar novas atitudes frente à temática.

A título de ilustração/aplicação das categorias supracitadas, analisamos brevemente o excerto abaixo, extraído do Manual do Professor da coleção VM10:

A unidade volta-se para o estudo das manifestações da literatura moderna em países africanos de expressão portuguesa, isto é, aquela literatura surgida do desejo de criar uma literatura que não fosse apenas uma adaptação dos modelos literários portugueses, mas genuinamente africana. A escolha desse

61Aqui também recorremos a uma simplificação das categorias de Dionísio (2000), optando por concentrar em

uma única categoria (a qual denominamos de objetivos “técnicos”) os objetivos voltados tanto a “conhecimentos” (objetivos que “que fazem referência a saberes linguísticos, literários e/ou culturais alcançáveis pela prática de leitura” [DIONÍSIO, 2000, p. 133]) e quanto a “capacidades” (quando se referem “às diversas competências linguísticas ou de compreensão/interpretação (...), [comumente] associados aos processos cognitivos envolvidos num acto de leitura como, por exemplo, a inferência, a antecipação, a formulação de hipóteses (...)” [ibid., p. 134]). Para o nosso trabalho, interessa menos verificar a frequência de cada um dos tipos de objetivos listados pela autora e mais contrastá-los, de forma abrangente, a eventuais objetivos voltados a “atitudes”, devido ao fato de as leis 10.639/2003 e 11.645/2008 estarem também, e principalmente, atreladas ao combate da discriminação étnico-racial e não apenas a uma ampliação dos conhecimentos e das capacidades escolares. Nesse sentido, é importante investigar se e com qual frequência o cumprimento das leis associa-se, em cada coleção, à promoção de “atitudes” alinhadas ao reconhecimento crítico e positivo da pluralidade cultural.

recorte deve-se ao fato de entendermos que é durante o período de luta pela independência que se desenvolve, nos países africanos, a preocupação de produzir uma literatura que represente certo sentimento de africanidade e exprima a visão de mundo de sujeitos que nasceram e viveram nos territórios africanos [1].

Em Origens e períodos das literaturas africanas, o professor poderá encontrar elementos que permitirão iniciar uma discussão sobre as marcas que singularizam a produção literária nos países outrora colonizados. Fundamentalmente, trata-se de auxiliar os alunos a romper eventuais preconceitos quanto à literatura angolana, cabo-verdiana, santomense, moçambicana e guineense [2]. (...)

O Brasil ocupou um lugar de extrema importância no imaginário dos países africanos de expressão portuguesa. Os brasileiros foram os que ultrapassaram as limitações da herança colonial no plano econômico e social. Foram também os que criaram uma literatura ao mesmo tempo universal e local.

A apresentação inicial deste capítulo, que trata da produção de autores africanos, deve passar, necessariamente, pela discussão das trocas culturais entre os povos de lá e de cá do Atlântico [3]. (...) (destaque nosso) (ABREU- TARDELLI; ODA; CAMPOS & TOLEDO, 2013 [Vol. 3], p. 457-458). As passagens sublinhadas indicam que os critérios fazem-se presentes ([1]: “literatura que represente certo sentimento de africanidade”); que coexistem, no capítulo, objetivos orientados para as atitudes ([2]: “romper eventuais preconceitos”) e objetivos técnicos ([3]: “discussão das trocas culturais entre os povos de lá e de cá do Atlântico”). Longe de limitar o nosso estudo à tabulação desses dados, assumimos as categorias como um ponto de partida para que, na seção de análise, possamos desenvolver uma leitura qualitativa e por vezes comparativa das informações recolhidas. Além de ser relevante investigar, por exemplo, em que proporção a natureza dos critérios e dos objetivos que envolvem o conteúdo das leis varia ou se mantém de coleção em coleção, objetivamos desenvolver reflexões mais aprofundadas sobre os significados dos discursos que as fundamentam; no excerto supracitado, por exemplo, as ideias de “literatura genuinamente africana” ou de “sentimento de africanidade”, ou, ainda, a descrição do Brasil como um país que “ultrapassou as heranças coloniais”, são exemplos de aspectos a serem qualitativa e teoricamente abordados em nosso capítulo analítico.

Esclarecidas, portanto, as categorias que alicerçam a análise do projeto editorial das coleções, bem como dos respectivos manuais do professor, disponibilizamos a seguir as categorias referentes ao nível da microestrutura dos livros didáticos, isto é, as categorias a serem empregadas na análise de capítulos, sem deixar de rememorar questões relativas ao

nível macro sempre que tal relação se faça produtiva à apresentação da metodologia de pesquisa.