• Nenhum resultado encontrado

A descolonização da educação literária no Brasil : das leis 10.639/2003 e 11.645/2008 ao PNLD 2015

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A descolonização da educação literária no Brasil : das leis 10.639/2003 e 11.645/2008 ao PNLD 2015"

Copied!
374
0
0

Texto

(1)

ANA PAULA DOS SANTOS DE SÁ

A DESCOLONIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO LITERÁRIA NO BRASIL:

DAS LEIS 10.639/2003 E 11.645/2008 AO PNLD 2015

CAMPINAS,

2019

(2)

A DESCOLONIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO LITERÁRIA NO BRASIL:

DAS LEIS 10.639/2003 E 11.645/2008 AO PNLD 2015

Tese de doutorado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Doutora em Linguística Aplicada, na área de Linguagem e Educação.

Orientadora: Profa. Dra. Daniela Palma

Este exemplar corresponde à versão final da Tese defendida pela

aluna Ana Paula dos Santos de Sá

e orientada pela Profa. Dra. Daniela Palma.

CAMPINAS,

2019

(3)
(4)
(5)

Não digam que fui rebotalho, que vivi à margem da vida. Digam que eu procurava trabalho, mas fui sempre preterida. Digam ao povo brasileiro que meu sonho era ser escritora, mas eu não tinha dinheiro para pagar uma editora.

(6)

almoço, por me desafiar a ler placas e letreiros quando voltávamos a pé da escola para casa.

(7)

desenvolvimento do presente estudo.

Agradeço à professora Daniela, pela seriedade acompanhada de leveza, pelo olhar generoso frente às minhas inquietações e aos meus excessos. Como não poderia deixar de ser, registro meus agradecimentos à professora Teca, que, além acolher as inseguranças do meu período de transição da Teoria Literária para a Linguística Aplicada, possibilitou esse encontro, tendo acertado ao afirmar que eu e a professora Daniela “nos daríamos muito bem”.

Às professoras Márcia Mendonça, Vima Martin e Ana Cláudia Fidelis e ao professor Mário Medeiros da Silva, por terem contribuído, em diferentes etapas e de diferentes formas, para o aprimoramento deste estudo. Nossos encontros e nossas trocas foram sempre enriquecedores. Agradeço uma vez mais à professora Miriam, pois muito do que aprendi na Iniciação Científica e no Mestrado se reflete nesta tese de Doutorado.

Meus agradecimentos afetuosos à professora Carlinda, pela calorosa e generosa acolhida em Portugal, por todo o aprendizado e por toda a atenção. Agradeço também à equipe da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP), bem como ao Serviço de Relações Internacionais da instituição, pelo impecável auxílio durante todo o processo de intercâmbio.

Às funcionárias e aos funcionários do IEL/UNICAMP, em especial ao Cláudio, ao Miguel e à Rose, da Secretaria de Pós-Graduação, não apenas por estarem sempre dispostos a me ajudar em questões relativas ao Mestrado e ao Doutorado, mas especialmente pelo convívio tão alegre que tivemos durante a minha Graduação.

Sou também muito grata pelos belos (re) encontros que o Doutorado me proporcionou. À Aline, pelo senso de humor ímpar e pelas doces trocas literárias. À Débora, mulher guerreira, pela risada gostosa e por ser tão generosa em sua torcida pelas “manas”. À Fabi, pela agradável companhia em diferentes caminhos, por vezes rumo à rodoviária de Campinas, por vezes em direção à pousada do dia. À Natasha, pelas partilhas acadêmicas e pessoais, pela postura agregadora em todos os sentidos. À Nayara, pelas conversas, mas, principalmente, pelo canal de apoio que construímos ao longo dessa aventura louca que é escrever uma tese e gostar da sala de aula ao mesmo tempo.

(8)

nos tornamos, em certa medida, uma família, motivo pelo qual vejo um pouco de vocês em cada fase que vivi na UNICAMP e em muito do que experimentei fora dela. Foi, e continua sendo, muito bom crescer ao lado de vocês.

Às amigas que fiz em outra “academia”, e que hoje são também amigas para a vida. À Carol, pelas ótimas conversas regadas a cookie, por essa terapia chamada “tomar café com as amigas”; à Ju, pela partilha de ideias, de valores e de planos, e, claro, obrigada pelas excelentes perfomances no kimax; à Sol, amiga-peregrina incansável, boa de prosa, mas igualmente ávida ouvinte, sempre pronta a acolher com curiosidade minhas questões acadêmicas e com muita atenção qualquer dilema pessoal.

Agradeço à Val, minha “amiga de trabalho”, pelo aprendizado diário, por me inspirar, a cada dia, a ser uma professora melhor.

Agradeço também aos meus sogros, Mariangela e Flávio, por madrugarem comigo nos dias em que eu tinha aula na UNICAMP.

Ao meu Querido, Alex, pela beleza do “el camino” que estamos trilhando juntos, pelo companheirismo sem ressalvas, pelos abraços concretos e simbólicos. Melhor do que chegar, é chegar ao seu lado.

(9)

curriculares das leis federais brasileiras nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008  que tornaram obrigatório o ensino de conteúdos referentes à História e à Cultura indígena brasileira e afro-brasileira em toda a educação básica, com base na premissa de que políticas dessa natureza alinham-se a um processo de descolonização do ensino, a saber, em nosso recorte, o processo de descolonização da educação literária. Em síntese, exploramos tal processo tendo em vista dois estágios dele constitutivos: o de «transposição política», isto é, momento em que as ações e os discursivos políticos propagados pelos movimentos sociais passam a ser traduzidos pelas políticas públicas, formalizando-se; e o de «transposição didática», correspondente ao movimento de transformação/adaptação didática de saberes inicialmente restritos à academia e/ou à formação da militância, ou seja, ao deslocamento de um saber de viés acadêmico e/ou político para a esfera escolar. Para tanto, recorremos, inicialmente, aos pressupostos teóricos dos Estudos Culturais e das Teorias Pós-coloniais, de modo a analisar os sentidos de uma perspectiva pós-colonial de ensino. Em seguida, ao admitirmos a formação e a imutabilidade do cânone literário escolar brasileiro como parte integrante de um projeto educacional de matriz colonial  projeto o qual se revela guiado pelo eurocentrismo e marcado pela produção de ausências e de lacunas curriculares , revisamos, brevemente, o papel dos movimentos sociais na luta por modelos de educação atentos à pluralidade cultural do país e, assim, contrários ao legado colonial presente na esfera escolar. Finalmente, uma vez discutidos os embasamentos e as origens das leis supracitadas, voltamo-nos a seus efeitos práticos no ensino de literatura no Brasil, por meio da análise das dez coleções aprovadas pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) do Ensino Médio em 2015. Visando desenvolver uma investigação que dê atenção à multiplicidade de estratégias editoriais, nossa metodologia de pesquisa guia-se pela análise tanto dos movimentos de «adição» dos conteúdos previstos pelas leis, quanto das eventuais marcas de «revisão/releitura crítica» do cânone literário escolar por elas impulsionadas. Em linhas gerais, os resultados desta investigação corroboram as relações estabelecidas entre Educação, Sociedade e Política, e apontam que são bastante distintos os modos pelos quais os livros didáticos têm introduzido as literaturas preconizadas pelas leis, bem como o grau de atenção dispensado e o espaço reservado a esse repertório em cada coleção. Ao encontro de nossa fundamentação teórica, verifica-se em algumas obras a presença de «opções descoloniais» de ensino, sobretudo no que tange à premissa básica de reconhecimento positivo da diversidade das culturas e das literaturas de Língua Portuguesa e

(10)

Contudo, em relação aos textos privilegiados pelos manuais analisados, verifica-se um predomínio bastante evidente do estudo das literaturas africanas em detrimento da abordagem de produções artístico-literárias de autores brasileiros negros e indígenas. Trata-se, portanto, de uma descolonização em curso, e não de um processo finalizado.

Palavras-chave: Ensino de Literatura; Livro Didático; Educação Intercultural; Lei 10.639/2003; Lei 11.645/2008.

(11)

the Brazilian federal laws 10.639/2003 and 11.645/2008. These laws made the teaching of History and Cultures of African, Afro-Brazilian and indigenous origin mandatory in all basic education. The premise is that such policies contribute to the process of decolonization of education and, in this study, the process of decolonization of literary education. In summary, we explore such process in view of two constitutive stages: the "political transposition", that is, the time in which the political actions and ideas defended by social movements are formalized into public policies; and "educational transposition", corresponding to the transformation/adaptation of knowledge initially restricted to the academic context and/or to activists and its application in schools, that means, the relocation of academically or politically charged knowledge to the school environment. To this end, we initially used the theoretical bases of Cultural Studies and Post-Colonial Theories, in order to reflect on the senses of a Post-Colonial teaching perspective. Then, while we admit the formation of the Brazilian school curriculum as a constitutive part of an educational project with colonial origin, that is, a project historically guided by Euro-Centrism and marked by the production of absences and gaps in the curriculum, we also review, briefly, the role of social movements in the struggle for education models sensitive to the cultural plurality of the country and, thus, contrary to the colonial legacy present in the school. Finally, once we have discussed the foundations and origins of the above-mentioned laws, we turn to their practical effects on the teaching of literature, through the analysis of the ten textbook collections approved by the national school textbook plan (PNLD) in 2015. In order to develop an investigation that pays attention to the multiplicity of editorial strategies, our research methodology is guided by the analysis of both the movements of "addition" of the contents foreseen by the laws, as well as the possible marks of "Critical Review" of the canon. In general, the results of this research corroborate the relations established between Education, Society and Politics, and point out that there are quite distinct modes by which the textbooks have introduced the literatures recommended by the laws, as well as the degree of attention dispensed and the space reserved to this repertoire in each collection. Meeting our theoretical foundation, some works present "decolonial" options of education, especially in relation to the basic premise of positive recognition of the diversity of the cultures and literatures of the Portuguese Language, as well as the didactic-educational work on the possible dialogues between them, although there is a clear predominance of the study of the African literatures not taking in consideration the

(12)

Keywords: Teaching Literature; Textbook; Multicultural Education; Law 10.639/2003; Law 11.645/2008.

(13)

CAPÍTULO 1. Descolonizar é preciso: significados de uma perspectiva

pós-colonial de educação 26

CAPÍTULO 2. Leis federais brasileiras nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008

e as lutas pela descolonização da educação 53

2.1. Precursores sociais e jurídicos da lei nº 10.639/2003 57 2.2. Precursores sociais e jurídicos da lei nº 11.645/2008 78

CAPÍTULO 3. Ensino de Língua Portuguesa e colonialidade de poder:

sobre a (des) colonização da educação literária no Brasil 98 3.1. Educação literária e diversidade cultural segundo os documentos oficiais 99 3.2. O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e o PNLD 2015:

contextualização do corpus de pesquisa 108

3.3. Focos e níveis de análise: fundamentações teórico-metodológicas 122 3.3.1. Macroestrutura dos livros didáticos: quadro analítico I 124 3.3.2. Microestrutura dos livros didáticos: quadro analítico II 128

CAPÍTULO 4. Literaturas indígenas brasileiras, afro-brasileira e africanas

nas coleções do PNLD 2015 144

4.1. Análise das coleções 144

4.1.1. Português Linguagens (Saraiva) 147

4.1.2. Novas Palavras (FTD) 172

4.1.3. Português – Contexto, Interlocução e Sentido (Moderna) 191 4.1.4. Língua Portuguesa – Linguagem e Interação (Ática) 208

4.1.5. Português – Linguagens em Conexão (Leya) 227

4.1.6. Ser protagonista – Língua Portuguesa (Edições SM) 247

(14)

4.1.10. Vozes do Mundo (Saraiva) 324 4.2. Síntese dos dados levantados: convergências e divergências 346

CONSIDERAÇÕES FINAIS 357

(15)

INTRODUÇÃO

O debate sobre o reconhecimento da diversidade cultural na esfera escolar vem ocupando, nas últimas décadas, pautas educacionais de um número significativo de países. Na coletânea The Routledge international companion to Multicultural Education (2009), organizada por J. A. Banks, a pluralidade de estudos acerca das ações e dos significados da “educação multicultural” no mundo ilustra o alcance dessa questão. Reúnem-se no livro artigos de pesquisadores que pensam essa problemática a partir da Austrália, da Rússia, da Espanha, da China, dos Estados Unidos, do México, da Índia, de Singapura, entre outros. Entre a gama de situações e de temas tratados, tem-se, por exemplo, a necessidade de adequação do sistema educacional japonês à presença de uma crescente comunidade estrangeira, sobretudo brasileira, a partir da década 1990 (capítulo 11); a afirmação, também no âmbito do ensino básico, das culturas indígenas Maori na Nova Zelândia (capítulo 21); a definição e a aplicação das políticas educacionais e linguísticas que regem o debate sobre “língua materna” na África francófona, com base nas experiências de Burkina Faso, Mali, e Níger (capítulo 28); os exemplos de estratégias e de planos de acolhimento escolar dos imigrantes e/ou refugiados em países como Alemanha, França e Inglaterra (capítulos 23, 24, 30 e 34); a busca pela construção de uma nova e complexa historiografia para a África do Sul, que situe melhor a questão da “raça” nas narrativas históricas do país (capítulo 10); o lugar e o papel da educação indígena no Peru (capítulo 20); ou, ainda, o funcionamento, na área de educação, dos ideais de “autonomia” e “não discriminação” previstos pela Constituição indiana, a qual preconiza o respeito não apenas à pluralidade cultural, de modo amplo, mas também à veemente pluralidade linguística e religiosa, em particular (capítulo 31). Essa lista extensa de exemplos é aqui proposital. Com ela, objetivamos explicitar que o nosso recorte temático transita entre o global e o local1.

Dessarte, a leitura conjugada dos textos compilados por J. A. Banks permite-nos notar que a contestação do etnocentrismo em prol da defesa de uma educação para a cidadania mostra-se como ponto comum dessas discussões. E, ao encontro de Gonçalves & Silva

1Ao encontro da coletânea organizada por Banks, também serve de referência o trabalho de Gonçalves & Silva

(2013), o qual, ao se dedicar à questão da educação multicultural em nível global, apresenta um interessante e detalhado panorama das “experiências multiculturais em outras sociedades” (GONÇALVES & SILVA, 2003, p. 121). Gomes (2017a), por sua vez, aprofunda o debate sobre o contexto brasileiro a partir de uma abordagem mais abrangente das políticas públicas para a diversidade instauradas no país (de 2003 a 2016), contribuindo, assim, para uma melhor compreensão do tema em nível local.

(16)

(2003), consideramos igualmente adequado associar essas diferentes demandas a uma luta contra a persistência do colonialismo na contemporaneidade.

Como dissemos, o multiculturalismo nasce no embate de grupos, no interior de sociedades cujos processos históricos foram marcados pela presença e confronto de povos culturalmente diferentes. Esses povos, submetidos a um tipo de poder centralizado, tiveram de viver a contingência de juntos construírem uma nação moderna. (Bhabha, 1998, cap. III). Não é, portanto, por acaso que o debate acerca do caráter multicultural dos agrupamentos humanos tenha surgido, de forma bastante significativa, como um problema, em sociedades geradas pelo colonialismo europeu.

[...]

Apesar das imensas diferenças que podem existir entre, por exemplo, Brasil, Canadá,Índia, Estados Unidos e África do Sul, há de se reconhecer que todos eles estiveram ligados a um poderoso centro de dominação: a Europa ocidental. Isso talvez explique por que os mo-vimentos multiculturais nesses e em outros países igualmente colonizados representam uma reação ao monoculturalismo ou etnocentrismo que, com mais ou menos firmeza, domina há pelo menos três séculos consecutivos. Como ideologia e prática institucional, o monoculturalismo não só pretende universalizar os pres-supostos e os termos de uma única cultura,como nega ser cultura qualquer expressão que se recuse a moldar-se nos padrões dessa cultu-ra dita “maior” (Goldberg, 1998). (GONÇALVES & SILVA, 2003, pp. 112-113).

A reivindicação da interculturalidade na educação é, pois, parte integrante de um debate global, e atual, sobre os currículos e as práticas escolares. Por outro lado, como antecipamos, e como também ilustra a gama de exemplos anteriormente descritos, o “local” assume grande peso nesse processo, pois os discursos e as políticas que sustentam ações desse viés são marcados por particularidades dos contextos sociais nos quais emergem. Em relação ao Brasil, o cenário não é diferente. O artigo que representa o país na referida coletânea organizada por Banks, “Achieving quality education for Indigenous peoples and Blacks in Brazil” (capítulo 39), por exemplo, assinado por Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva e Sonia Stella Araújo Olivera, anuncia, especificamente, os povos indígenas e a população negra como as minorias historicamente excluídas de uma educação igualitária e de qualidade no país, entrave este advindo de nossas heranças coloniais. De fato, não faltam levantamentos e estatísticas que corroborem a prevalência histórica, ainda que em queda, de negros e pardos entre os números relativos a trabalho infantil, a analfabetismo e a evasão escolar, por exemplo. Existe, nesse sentido, uma dimensão mais mensurável do legado colonial na educação brasileira, o qual, cabe reforçar, caminha de mãos dadas com a desigualdade social. Sem negar tal aspecto  que é, inclusive, significativamente abordado no Capítulo 2 , nosso estudo sobre as relações estabelecidas entre educação e interculturalidade no Brasil visa

(17)

a compreender, principalmente, a dimensão simbólica, e usualmente menos quantificada, dessas desigualdades. Isso significa que conjuntamente com a falta de acesso pleno de negros e de indígenas à educação verifica-se o igual impedimento da afirmação de suas culturas, de seus saberes e de suas produções artísticas no ambiente escolar. Há, pois, uma espécie de violência simbólica a ser enfrentada nos currículos e nas práticas de ensino-aprendizagem, cujo motor parece obedecer, fundamentalmente, ao eurocentrismo. Em nossa percepção, a análise de livros didáticos pode ajudar no mapeamento desses desafios.

Já no ano de 1987 era realizado em Belo Horizonte (MG) um seminário que reunia representantes de organizações negras e representantes de entidades governamentais responsáveis pela produção e distribuição de livros didáticos no Brasil. Centrado no combate ao racismo e à discriminação em materiais escolares, o “Seminário Educação e Discriminação dos Negros” contou com diversas conferências e painéis, configurando-se um importante marco nas lutas pela educação orquestradas pelo movimento negro na década de 19802. Passados mais de trinta anos, as comunicações proferidas, na ocasião, pelo professor e militante Luiz Alberto de Oliveira Gonçalves permanecem atuais, principalmente ao se ter em mente as questões que objetivamos explorar com esta pesquisa de doutorado. Denunciando a existência de uma “negação do patrimônio cultural do negro” (GONÇALVES, 1988a, p. 60), Gonçalves frisava que, em relação à esfera escolar, “é preciso que se atente não só para o que se transmite, mas para o que se impede de transmitir” (p. 61); em suas palavras

[...] os “conteudistas” (como se costuma chamar aqueles que defendem a Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos) avançam na análise crítica da escola. Entendem ser esta um espaço político, não apenas da reprodução ideológica da classe dominante, mas possível de transmitir conteúdos críticos. Neste sentido, definem, como compromisso político da escola pública com as camadas populares, garantir a estas a transmissão do “saber dominante”, “universal” e “crítico”.

Para nós que somos defensores da escola pública gratuita, universal, comprometida com a transformação da sociedade, tínhamos, em mãos, a partir dos “conteudistas”, uma proposta defensável, mas não suficiente. [...] resta saber se o que chamam de “saber dominante”, inclui a cultura negra. (GONÇALVES, 1988a, p. 60).

Em certa medida, as advertências de 1987 podem servir, hoje, de chave de leitura para as reflexões que desenvolvemos nos capítulos que seguem, haja vista admitirmos as leis federais brasileiras nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, que tornaram obrigatório o ensino da

2No capítulo 2, subseção 2.1., retomamos e discutimos de forma mais detalhada o teor dos debates realizados no

(18)

História e da Cultura indígena brasileira e afro-brasileira em toda a educação básica  com destaque, no segundo caso, ao papel do continente africano na formação da sociedade nacional 3, também como uma resposta à histórica negação dos saberes e das produções

artístico-culturais das minorias. Não se trata, portanto, de instaurarmos uma “caça” ao cânone literário escolar, deslegitimando, a priori, suas obras e seus autores, mas de verificar, ao encontro das afirmações de Gonçalves, o que é “incluído” (e, por conseguinte, excluído) desse repertório historicamente dominante4. Visamos estudar, assim, de que modo tem

ocorrido, no Brasil, a reivindicação e a introdução de conteúdos que, por séculos, foram “impedidos” (para fazer uso de outra expressão de Gonçalves) de adentrar a escola, em geral, e o livro didático, em particular.

Inicialmente, isto é, no contexto de submissão deste projeto ao Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada, no ano de 2014, nosso objetivo geral era analisar os reflexos da lei nº 10.639/2003 nos livros didáticos de Língua Portuguesa do Ensino Médio, com atenção ao eixo literário. A escolha de restringir o corpus aos anos finais de ensino havia sido motivada pelos resultados dos nossos primeiros levantamentos bibliográficos, realizados naquele mesmo ano, que apontavam a predominância de análises focadas, em linhas gerais, na educação literária ofertada no Ensino Fundamental II5. Ademais, lançava-se, na ocasião, um novo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) do Ensino Médio, o que conferia mais atualidade ao nosso objeto de pesquisa.

Em relação ao teor das pesquisas sobre livros didáticos e diversidade étnico-racial, preponderavam, à época, análises focadas na presença de estereótipos ou de preconceitos

3 Disponibilizamos os textos integrais das referidas leis no Capítulo 2, no início das subseções 2.1. e 2.2.,

respectivamente.

4Não consideramos necessário desenvolver uma discussão sobre os sentidos de “cânone literário”, pois nossa

análise centra-se na questão da imutabilidade do repertório escolar de forma mais ampla, assim como no lugar ocupado pelo eurocentrismo nessa problemática. Para tanto, entendemos que as respostas por nós procuradas encontram-se mais na História da Educação no Brasil do que em debates estritamente teóricos sobre o tema. Ademais, muitos trabalhos já abordarem de forma bastante consistente a relação estabelecida entre o cânone e o ensino de literatura nas escolas brasileiras, com destaque à tese de doutorado de Fidelis (2008).

5Percebemos nos levantamentos que realizamos em 2014 que, tanto em relação ao Ensino Fundamental quanto

em relação ao Ensino Médio, as pesquisas interessadas pela questão da diversidade cultural no ensino de literatura voltavam-se, majoritariamente, à observação de práticas pedagógicas, por meio de estudos etnográficos mais gerais sobre representação étnico-racial e/ou de análises inclinadas mais ao papel de livros paradidáticos e menos aos livros didáticos. O estudo sistemático de coleções do PNLD mostrou-se, no que tange aos dois níveis de ensino, pouco frequente se comparado, portanto, a outros recortes ou caminhos analíticos, como os de viés étnográfico (envolvendo, por exemplo, observação de aulas, entrevistas com professores e/ou com alunos etc.), sendo estes, em sua maioria, desvinculados da análise do uso, do papel e/ou do lugar do livro didático no contexto do ensino multicultural.

(19)

raciais nos materiais escolares, motivo pelo qual o corpus explorado nesses trabalhos mostrava-se muitas vezes fragmentário, restrito a alguns capítulos e a poucas coleções6. À altura, já havíamos aferido a importância de verificar os efeitos globais da introdução das literaturas afro-brasileira e africanas nos livros didáticos, atentando-nos, por exemplo, a seus eventuais reflexos na abordagem de autores clássicos, ao espaço editorial a elas reservado etc. A nossa hipótese era a de que todas as escolhas editoriais tomadas a partir lei mereceriam atenção, por considerá-las movimentos ideológicos, e não arbitrários, de inclusão-exclusão de conteúdos escolares. Desse modo, e novamente em consonância com a fala de Alberto de Oliveira Gonçalves no Seminário ocorrido em 1987, também a ausência dessas produções artístico-literárias era, a nosso ver, um dado relevante, que deveria ser igualmente explorado, fator que nos levou a somar, em um segundo momento, a lei nº 11.645/2008 ao nosso recorte de investigação.

Diferentemente do expressivo interesse pela aplicação da lei 10.639/2003, o qual constatamos através de nossas pesquisas bibliográficas, o atendimento à alteração legislativa de 2008, ou seja, ao ensino da história e das culturas indígenas, ainda carecia de atenção por parte da academia. Naquele ano, observamos em nossas buscas que o termo “11.645/2008” fazia-se presente apenas a título de citação em resumos de dissertações e teses interessadas pela lei 10.639/03, não se configurando um objeto de estudo. Não localizamos, portanto, em 2014, trabalhos que debatessem o ensino de literatura indígena em escolas convencionais, isto é, em escolas não indígenas, salvo o artigo “A Literatura dos Povos Indígenas e a Formação do Leitor Multicultural” (2013), que desenvolve “uma reflexão sobre como o contato com esta literatura pelo público formado por crianças e jovens pode promover a formação de leitores competentes, multiculturais e multiletrados” (THIÉL, 2013, p. 1175)7. Em linhas gerais, pudemos notar que o indígena era/é ainda encarado, na academia, mais como tema e personagem e menos como autor literário, embora excelentes trabalhos já tenham sido publicados propondo tal mudança de enfoque, como Almeida (1999), Graúna (2012; 2003), Lima (2012), Thiél (2002).

6Entre os trabalhos afins, destacamos: (i) Ensino Fundamental - Goularte & De Melo (2013); Silva (2005); (ii)

Ensino Médio – Freitas (2009). Após 2014, isto é, fora do recorte temporal do nosso levantamento inicial, podemos destacar outros estudos, como o de Biazzetto (2012).

7 Após 2014, ano em que realizamos o referido levantamento bibliográfico inicial, é possível encontrar um

número maior de trabalhos que discutem o ensino das produções artístico-literárias indígenas em escolas não indígenas. A despeito de não termos realizado um levantamento tão sistemático quanto o que julgamos necessário fazer no início de nossos estudos, destacamos os trabalhos de Santos (2018), de Silva (2017) e de Thiél (2016).

(20)

É fato que já nas primeiras leituras que fizemos das coleções do PNLD 2015, a discrepância entre o número de textos e de autores que atestavam a implementação da lei de 2003 era acentuadamente superior ao daqueles que se associavam à mudança imposta em 2008. Optamos, então, por enfrentar essa lacuna de estudos, ainda que a nossa discussão venha a permanecer restrita, em grande parte, a um questionamento e à denúncia da ausência da autoria indígena nos materiais que integram o nosso corpus. Como afirmamos, a não presença tornou-se um fator a ser levado em conta no decorrer de nossas reflexões, e é com base nesse aspecto que justificamos o fechamento do nosso recorte de análise.

Em junho de 2016 (terceiro semestre do doutorado), atendendo às exigências do Programa de Pós-Graduação, cumprimos com o requesito da “Qualificação de Projeto”, cuja finalidade é debater o projeto de pesquisa em sua fase inicial. De forma muito produtiva e generosa, a banca composta pelos professores doutores Vima Lia de Rossi Martin (USP) e Mário Augusto Medeiros da Silva (UNICAMP) deu-nos diversos contributos, entre os quais dois influenciaram com mais veemência os rumos tomados pela presente pesquisa. Primeiramente, em consonância com suas indicações, optamos por afastar nossa fundamentação teórica de um debate sobre o “multiculturalismo”, devido tanto ao excesso de trabalhos afins quanto das amarras teóricas que esse tema nos impunha, a começar pela própria “guerra polissêmica” que o atravessa. Em segundo lugar, concordamos com a necessidade de recuperar a luta e o papel dos movimentos sociais no contexto de conquista dessas e de outras políticas de recorte étnico e racial, a fim de compreender mais criticamente os significados das leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008. E foi justamente ao ler a história dos movimentos negro e indígena, sobretudo no que tange a lutas e a posicionamentos relacionados à educação, que passamos a transpor nosso embasamento teórico para os aportes dos Estudos Pós-coloniais. Identificamos na história da educação do negro e do indígena no Brasil elementos que vão ao encontro de movimentos, implícitos ou explícitos, de denúncia e de resistência ao projeto educacional de matriz colonial (ou eurocêntrico) que fundou e que ainda orienta a educação no país. É nesse sentido que a ideia de “descolonização da educação literária” passou a ganhar protagonismo em nosso estudo. Dessarte, interpretamos as leis, no contexto de ensino de literatura, como políticas que apontam a necessidade de descolonizarmos os currículos e as práticas didático-pedagógicas. Com a análise do PNLD 2015 nosso intuito é verificar de que modo e em que medida as editoras demonstram fazer a mesma interpretação.

(21)

Definimos, pois, uma investigação de viés textual-documental, ancorada em documentos históricos, em documentos oficiais de educação, em textos legislativos e, finalmente, em coleções didáticas. E foi ao somarmos, de acordo com nossos levantamentos, o menor número de pesquisas debruçadas sobre o ensino de leitura/de literatura no Ensino Médio (se comparado, como dissemos, ao Ensino Fundamental, que é bastante estudado na área de Educação) à consolidação do livro didático de língua portuguesa como um privilegiado objeto de pesquisa na área de Linguística Aplicada, que julgamos pertinente explorar a relação estabelecida entre as leis e o PNLD 2015. Em um país permeado de desigualdades e marcado, em linhas gerais, por baixos índices de leitura, sabe-se que o livro didático pode configurar-se o primeiro e/ou o único livro ao qual muitos estudantes têm/terão acesso. Além disso, a inexistência de consistentes programas de formação continuada de professores acaba por tornar o manual escolar também uma referência teórica, especialmente ao se pensar casos como as mudanças legislativas de 2003 e 2008, que impõem conteúdos e saberes até então inéditos às salas de aula.

Pode-se observar que a apropriação das pesquisas científicas pelos professores não é discutida. O livro didático é concebido como o único mediador entre a produção científica e a escola. O professor, que também deveria atuar como mediador, assume o papel de “aluno” dos livros didáticos, que estão assumindo a função de livros teóricos, responsáveis pela formação dos professores. Bräkling destaca o lugar que o livro didático ocupa na prática docente: “por um lado, constitui-se referência organizadora do currículo escolar, selecionando conteúdos, determinando sua progressão, definindo estratégias de trabalho e metodologias de ensino; por outro, mostra-se como referência teórica fundamental, indispensável e, por vezes, única, na tematização dos conhecimentos e (in)formação do professor sobre os aspectos da língua e da linguagem envolvidos em seu trabalho” (p. 212). (PASSOS, 2004, p. 312).

Ao tocar nesse ponto, damos início, inevitavelmente, a reflexões acerca da questão da transposição didática, isto é, do processo por meio do qual determinados saberes são escolarizados. Trata-se de uma reconfiguração de conteúdos que conta, ao menos, com uma dupla agência: a dos livros didáticos, de um lado, e a do próprio professor, de outro. Numa primeira leitura, fica evidente que o escopo do nosso trabalho foge à análise do papel e dos efeitos da prática docente nesse processo de transposição, visto que, para tanto, seria necessária uma pesquisa de cunho etnográfico, a qual, definitivamente, não integra nosso plano de estudo. Por outro lado, limitar o nosso olhar apenas à aferição dos repertórios linguísticos e literários das coleções constitutivas do nosso corpus culminaria na negação da

(22)

complexidade do livro didático enquanto objeto de análise. Concordamos com Bunzen quando ele ressalta que reduzir esse tipo de investigação a uma pura “avaliação de conteúdos” pode resultar na compreensão de apenas uma “de suas diferentes dimensões” (BUNZEN, 2005, p. 558). Ao invés disso, o pesquisador sugere, em diálogo com Latour, ser “necessário não nos centramos apenas no produto final, mas no processo de construção, no movimento, nos flashbacks” (ibidem), pois

Se encararmos o LDP desta forma, estaremos automaticamente mais interessados em compreendê-lo como uma fonte interessante para o estudo da construção dos saberes escolares do que propriamente um objeto de estudo utilizado apenas para apontar “defeitos” à luz de uma concepção de ciência moderna como algo universal, objetiva e preditiva; por isso mesmo, essencialmente avaliativa. O olhar que normalmente é lançado para “entender” o LDP é sempre a procura do homogêneo, do fio “uno” e claro. Defendemos justamente uma visão diferenciada, pois acreditamos que ele se caracteriza muito mais por uma incompletude e por uma heterogeneidade de saberes, de crenças e de valores sobre a língua e seu ensino/aprendizagem do que num saber-fazer homogêneo e sem conflitos. (BUNZEN, 2005, pp. 558-559).

Podemos afirmar que a adoção dessa perspectiva, ou seja, a ideia de admitir o livro didático como um “objeto complexo” (BUNZEN, 2005, p. 559) trouxe duas implicações práticas a nossa pesquisa, as quais dialogam, em maior ou menor grau, com o “posicionamento de cunho epistemológico e metodológico” (ibidem) reivindicado por Bunzen. Primeiramente, desprendemo-nos de quaisquer modelos pré-concebidos de educação intercultural a fim de nos abrir ao aprendizado que as escolhas editoriais identificadas nas coleções analisadas possam nos proporcionar. Em outras palavras, buscamos nos afastar dos imperativos de uma “vigilância epistemológica” (BUNZEN, 2005, p. 557)  responsável, com frequência, por apontar somente “defeitos” (p. 558) naquilo que foge a determinados modelos e conceituações científicas/acadêmicas  em prol do reconhecimento dos materiais escolares como fonte de conhecimento, uma vez que “o trabalho do autor do livro didático [...]” (o qual tem, não raro, experiência na rede básica de ensino) “não consiste apenas em reproduzir\transpor as teorias acadêmicas, mas em agir sobre elas, modificando-as” (BUNZEN, 2005, p. 561). É certo que nos norteamos por uma fundamentação teórica específica e que, previamente, formulamos hipóteses e elencamos expectativas, contudo, em se tratando da análise de leis educacionais em processo de implantação, negociação e consolidação, como o são as leis por nós estudadas, entendemos que o levantamento crítico

(23)

das propostas didático-pedagógicas de um total dez coleções didáticas pode tanto nos abrir a novas percepções acerca dos significados e dos efeitos da introdução escolar de conteúdos representativos da diversidade cultural, quanto indicar caminhos produtivos para se atender, pedagogicamente, aos saberes requeridos pela recente legislação. Não nos interessa, portanto, a velha dicotomia do “certo” e “errado”, mas o entendimento das rupturas e das permanências, das similaridades e das discrepâncias etc. que marcam a inserção das literaturas afro-brasileira, africanas e indígena realizada por diferentes autores e editoras  “assumir tal posicionamento nos fez procurar não a lógica da totalidade, mas ‘da multiplicidade, das rupturas e do movimento’ como defende a autora [Signorini (1998:103)]”. Nossa pesquisa encontra-se, então, mais interessada em regularidades locais (e não universais) e nas relações contigenciais (e não estáticas)” (BUNZEN, 2005, p. 558).

Como segunda implicação da admissão da complexidade do nosso corpus, destacamos a necessidade de conjugarmos o estudo dessa transposição didática a uma análise do processo que denominamos de transposição política, concernente, por sua vez, à transmutação de demandas dos movimentos sociais em leis oficializadas pelo poder público; ou, neste caso, em leis educacionais de recorte intercultural. Trata-se, assim, de um “flashback”  para recuperarmos a expressão de Bunzen  primordial à compreensão dos significados das mudanças recentemente instauradas nos livros didáticos nacionais. Dados como os por nós retirados dos anais do “Seminário Educação e Discriminação dos Negros”, de 1987, ajudam-nos a perceber que a descolonização da educação, como um todo, e da educação literária, em específico, insere-se num longo processo de lutas e de negociações, bem como nos alertam quanto ao protagonismo dos movimentos sociais nessas conquistas. Anteriormente à etapa de transposição didática dos conteúdos relativos às culturas indígenas brasileiras, afro-brasileira e africanas para as escolas, observamos uma importante produção e disseminação de conhecimento conduzida pelos próprios membros dos movimentos negro e indígena, iniciativas estas que podem ser interpretadas como o embrião das políticas públicas posteriormente aprovadas. Em outras palavras, partimos da premissa de que

Os movimentos sociais são produtores e articulares dos saberes construídos pelos grupos não hegemônicos e contra-hegemônicos da nossa sociedade. Atuam como pedagogos nas relações políticas e sociais. Muito do conhecimento emancipatório produzido pela sociologia, antropologia e educação no Brasil se deve ao papel desempenhado por esses movimentos, que indagam o conhecimento científico, fazem emergir novas temáticas,

(24)

questionam conceitos e dinamizam o conhecimento. (GOMES, 2017b, p. 16).

Por conseguinte, investigar as ações sociais que antecedem a conquista e a implementação das leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008 configura-se, para os fins deste trabalho, um passo necessário a uma leitura mais aprofundada do nosso corpus. Isso porque o livro didático, em sua estreita relação com os currículos, não está alheio às relações sociais e de poder, mas ao contrário, pois “o currículo é o espaço onde se concentram e se desdobram as lutas em torno dos diferentes significados sobre o social e sobre o político. É por meio do currículo, concebido como elemento discursivo da política educacional, que os diferentes grupos sociais, especialmente os dominantes, expressam sua visão de mundo, seu projeto social, sua ‘verdade’” (SILVA, 2001, p. 11). Em suma, não se pode olhar para dentro dos livros didáticos sem levar em conta o que ocorre para além de suas margens.

Para desenvolvermos todas as propostas aqui expostas, organizamos este trabalho em quatro capítulos. No Capítulo 1, intitulado Descolonizar é preciso: significados de uma perspectiva pós-colonial de educação, tem-se a fundamentação teórica desta pesquisa. Já o Capítulo 2 - Leis federais brasileiras nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 dedica atenção ao que chamamos anteriormente de movimento de transposição política, dado que, nele, revisamos a história da educação do negro e do indígena no Brasil, alinhada às lutas que deram origem à conquista de ambas as leis (cada qual em uma subseção correspondente, a saber, subseção 2.1. e 2.2.). O Capítulo 3 - Educação literária e colonialidade de poder: sobre a (des) colonização do ensino de Língua Portuguesa no Brasil, por sua vez, serve de introdução ao nosso corpus na medida em que se volta ao teor dos documentos oficiais de educação no que diz respeito aos discursos sobre diversidade cultural que orientam o ensino de Português (subseção X), assim como à contextualização dos significados e do contexto do PNLD 2015; também nesse capítulo detalhamos e justificamos a metodologia e as categorias adotadas no estudo dos livros didáticos. Finalmente, o processo de transposição didática ganha especial atenção no capítulo das análises das coleções didáticas, Capítulo 4 – Literaturas indígenas brasileiras, afro-brasileira e africanas nas coleções do PNLD 2015; nele, apresentamos as análises propriamente ditas (subseção 4.1.) e uma síntese comparativa dos dados levantados (subseção 4.2.).

Sintetizados, portanto, os caminhos pelos quais o nosso trabalho ganhou forma e clareza, reafirmamos sua inscrição na área de Linguística Aplicada (LA) com base, sobretudo,

(25)

em seu caráter “indisciplinado” (MOITA LOPES, 2013). O trânsito entre diferentes disciplinas, como Estudos Literários, Sociologia, História, Educação, foi, certamente, o eixo fundador desta pesquisa. E a partir da inter/transdisciplinaridade, associo os nossos objetivos gerais a algo que li em 2014, quando, recém mestra em Teoria Literária, buscava fontes que me explicassem o que seria, afinal, “Linguística Aplicada”. Segundo Moita Lopes, para além dos estudos mais tradicionais, apoiados em teorias linguísticas e focados no estudo das línguas, a LA foi/vem se afirmando “uma área transgressora”, não havendo mais margem a pesquisas pautadas por um “vácuo social” (ibid., p. 22). Sob esse prisma, o autor associa à área o objetivo de colaborar na “construção de uma agenda anti-hegemônica” (p. 27). É à luz dessa premissa que o norte do nosso estudo foram os saberes subalternizados, e não os saberes escolares canônicos de viés de eurocêntrico.

(26)

CAPÍTULO 1. Descolonizar é preciso: significados de uma perspectiva

pós-colonial de educação

O eurocentrismo é uma questão não de geografia, mas de epistemologia. Aníbal Quijano

Na primeira fase de seu Vestibular 2018/2, a Universidade Federal de Uberlândia (UFU) apresentou uma questão de História relacionada à imprensa e ao movimento negro. Apesar de este capítulo pretender-se “teórico”, parece-me produtivo iniciá-lo com o relato de um exemplo “prático” dos contornos daquilo que entendemos por “descolonização do ensino”. Proponho uma reflexão sobre a reação de alguns dos meus alunos e das minhas alunas (do Ensino Médio) a esta questão:

QUESTÃO 18 Observe a imagem.

Na década de 1930, um dos mais atuantes grupos do movimento negro surgiu no Estado de São Paulo, durante a crise constitucionalista. Esse grupo empenhou-se em campanhas beneficentes, buscando angariar apoio material e humano entre a comunidade negra, que apoiava o exército paulista. Tinha como liderança e criador Joaquim Guaraná de Santana que também contribuiu para a fundação do PRN (partido para negros). Uma de suas sucursais regionais criou o Jornal A Raça.

Também conhecido como Pérolas Negras, esse movimento se intitulava: A) Frente Brasileira Negra.

B) Panteras Negras.

C) União dos Homens de Cor. D) Legião Negra.

(UFU, Processo Seletivo UFU/2018/2 – 2ª Prova Comum, Tipo 1, Questão 18, 2018).

(27)

No dia subsequente à prova da UFU, não havia outro assunto pelos corredores. Ninguém, afinal, tinha ouvido falar sobre “Legião Negra” ou “jornal A raça”, nem nas escolas, nem nos cursinhos. Esses comentários bastariam para ilustrar o porquê de a lei 10.639/2003 ter tornado obrigatório o ensino da História e da Cultura da população afrodescendente no Brasil. As lacunas curriculares, nesse caso, ficam bastante evidentes. Ademais, a atividade por si só exemplifica parte dos efeitos das leis na educação, visto que não apenas a UFU, mas outros Exames Vestibulares passaram a cobrar conteúdos relacionados aos negros e aos indígenas. No entanto, a fala (indignada) de uma aluna em particular expôs outras nuances do ocorrido e mereceu, ainda mais, a minha atenção. Ela disse algo como: “eu pesquisei depois da prova e verifiquei que o grupo ‘Legião Negra’ tem a ver com a Revolução Constitucionalista de 1932, em São Paulo... O que eu não entendo é por qual razão o professor fulano falou tanto sobre a Revolução e não mencionou nada a respeito desse movimento! Ao invés de repetir todos os anos o que estamos cansados de saber, ele deveria ensinar o que a gente não sabe”.

“Ensinar o que não se sabe”. Talvez seja esta a síntese do presente capítulo e, por que não, a síntese do que pretendem as leis 10.639/2003 e 11.645/2008. Com base nos subsídios fornecidos pelas teorias pós-coloniais, objetivamos, de certo modo, dar desdobramento a questões similares às levantadas pela minha aluna adolescente. Contudo, ao contrário dela, propomos um debate mais amplo sobre o projeto e a organização curricular nacional em detrimento de questionamentos diretos e específicos sobre a ação de um ou de outro docente. Trata-se, pois, de reconhecermos que a descolonização da educação aponta para um problema estrutural (que não é, portanto, nem pontual nem eventual), cujos efeitos podem ser observados não apenas na formação dada aos alunos do ensino básico, mas, inclusive, nos cursos de licenciatura responsáveis por formar os educadores  afinal, o professor ao qual a minha aluna se referia optou por não ensinar a história do movimento negro brasileiro ou, tanto quanto seus alunos, ele mesmo nunca teve acesso a essa versão dos fatos?8

Por que ensinamos, ano após ano, as mesmas histórias e estórias nas escolas? O que, historicamente, ocultamos e por que o fazemos? A exemplo da versão única da Revolução Constitucionalista, onde mais o repertório escolar e os materiais didáticos fabricaram lacunas?

8A respeito da lei 11.645/2008 e suas implicações e possibilidades no que tange à formação de professores, vide

(28)

A título de exemplificação: qual seria o tamanho da surpresa desses estudantes se as provas de literatura para ingresso nas grandes universidades passassem a admitir as produções do grupo literário Quilombhoje, fundado por escritores negros na década de 1980, como parte integrante da historiografia literária brasileira?

Se ao nos valermos do termo “pós-colonial” pretendemos fazer referência ao que, do colonialismo, permanece após a conquista da independência política e geográfica  negando, então, qualquer ideia ingênua de superação total desse violento processo de dominação , entendemos que elaborar respostas para tais perguntas demanda explorar o que há de colonial no projeto educacional brasileiro. Consideramos que pensar a descolonização do currículo e das práticas escolares impõe, assim, o reconhecimento e o questionamento do legado colonial em nosso modelo de ensino, ou, em outras palavras, exige que a educação seja encarada como parte constitutiva do projeto de matriz colonial que marca a história do país. Trata-se de um processo descolonizador a ser consolidado no plano simbólico, isto é, no plano dos saberes, dos imaginários e dos discursos, os quais, no contexto escolar, se mostram historicamente guiados pelo eurocentrismo e, consequentemente, pela negação das culturas subalternizadas.

A seguir, aprofundamos esse debate conceitual.

***

Originária do contexto anglo-saxônico e vinculada a um questionamento do domínio colonial sofrido por ex-colônias britânicas, a expressão “pós-colonial” passa a designar a partir de 1970 não mais um “conceito histórico ou diacrónico”, mas um “termo usado pela crítica, em diversas áreas de estudo, para discutir os efeitos culturais da colonização” (LEITE, 2013, p. 11). Desse modo, o termo “pós-colonialismo” passa a ser entendido, por sua vez, como o conjunto de estratégias (discursivas e performativas) “que frustram a visão colonial”, que resistem “às ideologias colonialistas” (ibidem). Sob esse prisma, enfatiza-se, portanto, o viés ideológico dos processos de colonização, visto que, para além da dominação política, econômica e geográfica, admite-se a existência de uma dominação simbólica (ou de uma «colonização do pensamento») a ser, igual e necessariamente, combatida.

Concomitantemente ao crescente interesse da academia pelos Estudos Pós-Coloniais, são diversas as críticas dirigidas a suas conceituações, entre elas a de que seu prefixo, “pós-”, sugeriria uma superação histórica e cronológica rígida e, portanto, questionável. Acerca desse apontamento, Stuart Hall esclarece que, ao contrário, o pós-colonial não se afirma um fato em

(29)

si, restrito a determinados espaços e tempos, mas engloba um conjunto amplo de processos e dinâmicas sócio-históricas, que dizem respeito, por sua vez, tanto às sociedades colonizadoras quanto às colonizadas.

O “pós-colonial” certamente não é uma dessas periodizações baseadas em “estágios” epocais, em que tudo é revertido ao mesmo tempo, todas as antigas relações desaparecem definitivamente e outras, inteiramente novas, vêm substituí-las. Obviamente, o rompimento com o colonialismo foi um processo longo, prolongado e diferenciado, em que os movimentos recentes do pós-guerra pela descolonização figuram como um, e apenas um, “momento” distinto. Neste caso, a “colonização” sinaliza a ocupação e o controle colonial direto. Já a transição para o “pós-colonial” é caracterizada pela independência do controle colonial direto, pela formação de novos Estados-nação [...]. É igualmente significativo o fato de ser caracterizada pela persistência dos muitos efeitos da colonização e, ao mesmo tempo, por seu deslocamento do eixo colonizador/colonizado ao ponto de sua internalização na própria sociedade descolonizada. (HALL, 2003, p. 109). Hall também esclarece que o “pós-colonial” revela-se útil para entender as relações de poder estabelecidas com o fim dos Impérios, servindo de ferramenta para se pensar, entre muitos outros aspectos, “a multiplicação em sociedades antes coloniais das desigualdades associadas às diferenças coloniais” (HALL, 2003 p. 109). Devido a isso, concepções como a de “entrelugar” (Bhabha), “desconstrução-reconstrução” (Gramsci) ou “dupla inscrição” (Derrida) são recordadas em seus ensaios, a fim de reforçar, entre outros pontos, a compreensão da colonização como um “acontecimento de significância global – pelo qual seria assinalado não o seu caráter universal e totalizante, mas seu caráter deslocado e diferenciado” (HALL, 2003 p. 123).

Nos Estudos Literários, as teorias pós-coloniais convergem para o reconhecimento das novas dinâmicas discursivas e simbólicas associadas ao colonialismo. Elas servem, ao mesmo tempo, à abordagem crítica das obras literárias produzidas antes, durante e, sobretudo, após esse contexto de dominação, abarcando desde escritos representativos do poder dos colonizadores até produções dos colonizados dotadas de “certo grau de diferenciação” ou de “uma total ruptura com os padrões emanados pela metrópole” (BONNICI, 1998, p. 11-12). Para tanto, esses estudos postulam uma crítica literária igualmente “pós-colonial”, isto é, “uma abordagem alternativa para compreender o imperalismo e suas influências” (9), que não sirva somente à leitura dessas obras, mas a uma releitura crítica de um corpus também inscrito na lógica colonial, e até então incontestado. Na visão de Mata (2008, p. 28), em alusão a esse repertório, “pode entender-se o pós-colonial no sentido de uma temporalidade que agencia a

(30)

sua existência após um processo de descolonização – o que não quer dizer, a priori, tempo de independência real e de liberdade, como prova a literatura que tem revelado e denunciado a internalização do outro no pós-independência”.

Ao transpormos esse debate para o contexto do ensino-aprendizagem, é possível concluir que uma perspectiva pós-colonial de educação pauta-se pelo reconhecimento da persistência de um legado colonial na esfera escolar, assim como pela necessidade de formulação de teorias e de práticas didático-pedagógicas que contestem os resquícios de tal dominação simbólica. Em síntese, ela se configura uma visão de ensino orientada por duas premissas fundamentais: (i) a Educação  em países de passado colonial, em geral, e no Brasil, em particular  encontra-se inscrita, ao longo da História, em uma lógica colonial sendo, portanto, influenciada pelo colonialismo; e (ii) contestar essa lógica requer tanto novos repertórios escolares quanto novas ferramentas pedagógicas.

No contexto brasileiro, as leis federais nº 10.639/03 e nº 11.645/08, que, devido a lutas dos movimentos indígena e negro, tornam obrigatório, em toda a educação básica, o ensino da História e da Cultura indígena e afro-brasileira (com destaque ao lugar das culturas africanas na formação da sociedade nacional), servem de exemplo dessa contestação de heranças coloniais na educação, uma vez que elas questionam a violência simbólica e o silenciamento sofridos pelas culturas historicamente subalternizadas no Brasil, as quais foram/são alijadas dos currículos escolares. Embora cerca de 50% da população brasileira se declare negra ou parda, e ainda que os povos indígenas do país se distribuam entre mais de 200 etnias, nota-se nos repertórios e nos manuais escolares uma acentuada ausência de suas histórias e estórias, que perdem lugar para uma visão eurocêntrica de organização escolar. É, pois, à luz de medidas como as leis supracitadas, marcadas pela busca de uma revisão e de uma ampliação do repertório escolar, de modo a torná-lo mais plural, que conduzimos nossas reflexões.

Em nossa leitura, o principal aspecto a ser desestabilizado por uma educação descolonial9é o eurocentrismo, uma perspectiva de mundo e de cultura que mantém a esfera

9 Há nos Estudos Pós-coloniais o uso frequente da expressão “decolonial”/ “decolonialidade” no lugar de

“descolonial”/ “descolonização”. Mota Neto (2018) explica que “por descolonização se indica um processo de superação do colonialismo, geralmente associado às lutas anticoloniais no contexto de estados concretos, ao passo que decolonialidade se refere ao processo que busca transcender historicamente a colonialidade, isso é, subverter o padrão de poder colonial, que permaneceu mesmo após o fim da situação colonial” (p. 3). Todavia, para os fins deste trabalho, é pouco relevante essa distinção, visto que ao fazermos referência à “descolonização” estamos negando, do mesmo modo, a superação do colonialismo, não havendo a necessidade de adoção de outro conceito/termo. Em nossa argumentação, “descolonial” e “decolonial” operam como sinônimos.

(31)

escolar pressa às amarras do que Semprini (1999, p. 81) denomina de “epistemologia monocultural”. No Brasil, uma proposta pedagógica formulada e divulgada pelo Departamento de Ciências Sociais do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro (BA) em conjunto com a Universidade Federal da Bahia (UFBA) ainda na década de 1980, ou seja, num contexto bastante anterior à aprovação das leis 10.639/03 e 11.645/08, chamava a atenção, justamente, “[ao] etnocentrismo e [ao] racismo transmitidos pelo processo educacional” (CRUZ, 1987, p. 74), questionando, pois, o monoculturalismo escolar. Entre diretrizes curriculares e metodológicas, a denominada “Pedagogia Interétnica” (1978)10, resultado de pesquisas coordenadas pelos sociólogos Roberto Santos e Manoel de Almeida Cruz, apresentava caminhos para se valorizar as culturas dos “grupos dominados”, no caso, os negros e os indígenas, em resposta à hegemonia do “grupo dominante” no campo do saber, sob o argumento de que “o mundo ocidental sempre se colocou no centro do universo, julgando-se senhor da verdade, atribuindo a si a exclusividade do pensamento e da cultura” (CRUZ, 1987, p. 76).

Novamente pensando uma articulação com as teorias de viés pós-colonial, é previsto que esse tipo de resposta “prática” à hegemonia do pensamento europeu/ocidental (não apenas na ciência, mas também na política, na economia etc.) voltem-se, entre outros aspectos, à exaltação dos “saberes subalternos” (ou das intituladas “epistemologias/vozes do Sul”, em oposição a um Norte menos geográfico e mais metafórico, branco e imperial [DE SOUSA SANTOS & MENESES, 2010]). É nesse sentido que os Estudos Pós-Coloniais, enquanto aporte teórico, mostram-se como importantes referenciais para a análise de ações educacionais transgressoras, a exemplo do teor do modelo didático-pedagógico supracitado e das leis por nós estudadas. A ideia de descolonização epistêmica, tal qual debatida por essa vertente teórica, faz-se importante à medida que nos serve a uma reflexão mais específica acerca da filosofia do conhecimento que orienta a validação dos saberes escolares. Em síntese, nas palavras de Homi Bhabha:

A crítica pós-colonial é testemunha das forças desiguais e irregulares de representação cultural envolvidas na competição pela autoridade política e

10A dissertação de mestrado de Lima (2004), intitulada “Uma proposta pedagógica do movimento negro no

Brasil: pedagogia interétnica de Salvador, uma ação de combate ao racismo” e defendida junto à Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) , menciona, para além da “Pedagogia Interétnica”, outras duas propostas pedagógicas formuladas em diálogo com o movimento negro: a Pedagogia Multirracial, no Rio de Janeiro (1986) e a Pedagogia Multirracial e Popular do NEN, em Santa Catarina (2001). Pesquisa disponível em <http://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/86988>. Acesso em <07/01/2019>.

(32)

social dentro da ordem do mundo moderno. As perspectivas pós-coloniais emergem do testemunho colonial dos países do Terceiro Mundo e os discursos das “minorias” dentro das divisões geopolíticas do Leste e Oeste, Norte e Sul. Elas intervêm naqueles discursos ideológicos da modernidade que tentam dar uma “normalidade” hegemônica ao desenvolvimento irregular e às histórias diferenciadas de nações, raças, comunidades, povos. [...]. (BHABHA, 2007, p. 239).

Dessarte, o acesso à literatura de matriz ou de inspiração europeia nas escolas figura um problema a partir do momento em que se torna sinônimo de “normalidade”. O silenciamento não apenas histórico, mas também literário dos negros e dos indígenas no Brasil contribuiu e contribui para uma marcação negativa do “Outro”, que se consolida como inexistente ou desimportante. Nas Ciências Sociais, Boaventura de Sousa Santos vale-se da ideia de um abismo metafórico para descrever essa impossibilidade de coexistência entre o imperial e o colonizado. Segundo ele, o pensamento ocidental moderno é um “pensamento abissal”, o que remete à subsistência, na contemporaneidade, das “linhas cartográficas ‘abissais’ que demarcavam o Velho e o Novo Mundo na era colonial” (DE SOUSA SANTOS, 2007, p. 3), responsável por excluir o “Outro”:

O pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal. Consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis. As distinções invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo “deste lado da linha” e o universo “do outro lado da linha”. A divisão é tal que “o outro lado da linha” desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro. A característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da copresença dos dois lados da linha. Este lado da linha só prevalece na medida em que esgota o campo da realidade relevante. Para além dela há apenas inexistência, invisibilidade e ausência não-dialéctica. (destaque nosso). (DE SOUSA SANTOS, 2007, pp. 3-4)

Embora o pesquisador centre sua discussão em torno da constituição e do funcionamento da ciência (em contraposição aos conhecimentos populares) e do direito (em especial, do direito internacional) na modernidade, não é difícil articular suas ideias à produção de inexistência no campo literário. A necessidade de se impor, através de leis, a introdução curricular de um repertório que se mostrasse representativo da pluralidade cultural brasileira confirma o “não existir” histórico desses textos, considerados não legítimos frente a

(33)

um cânone majoritariamente eurocêntrico. Nesse sentido, descolonizar o ensino de literatura requer explorar quais são os autores e as obras relegados, nos livros didáticos, por exemplo, ao espaço que Santos denomina de “zona colonial” (hoje, uma zona não mais territorial, mas metafórica), situada no “outro lado da linha”, que figura, por excelência, como “o universo das crenças e dos comportamentos incompreensíveis, que de forma alguma podem ser considerados como conhecimento [...]” (DE SOUSA SANTOS, 2007, p. 8).

Ao encontro de nossos apontamentos, observa-se que pesquisadores da área de Educação têm buscado se apropriar desses e de outros pensamentos de Boaventura de Sousa Santos para aprofundar o debate sobre a educação intercultural. No que concerne especificamente ao contexto educacional brasileiro, merece destaque o livro O movimento negro educador (2017), de Nilma Lino Gomes, prefaciado, inclusive, pelo pensador português. Nele, sua autora, ao defender o argumento de que o movimento negro brasileiro afirma-se “um importante ator político que constrói, sistematiza e articula saberes emancipatórios” (GOMES, 2017b, p. 24), inspira-se nas teorias de De Sousa Santos e propõe, por exemplo, uma “pedagogia das ausências e das emergências” (p. 41), que, de forma simplificada, corresponderia, por um lado, ao reconhecimento da “produção de não existência” de determinados saberes na esfera escolar  em específico, os saberes dos grupos não hegemônicos e contra-hegemônicos , e, por outro, ao inconformismo ante a tais lacunas e às expectativas de que estas sejam superadas através da abertura a um campo de possibilidades concretas de novos saberes (pp. 40-46). Analogamente a Gomes, Candau (2016), a partir da conjugação de diferentes conceituações do mesmo autor, sintetiza justamente que:

A educação intercultural na perspectiva crítica supõe identificar o que foi produzido como “ausências”, tanto no plano epistemológico como das práticas sociais e, ao mesmo tempo, reconhecer as “emergências” de conhecimentos, práticas sociais e perspectivas orientadas à construção de sociedades equitativas e justas. Esta não é uma capacidade espontânea, que brota “naturalmente”. Em geral, estamos socializados para reforçar aspectos que são confluentes com a lógica dominante. (CANDAU, 2016, p. 28). No Brasil, essas lacunas consequentes da “confluência com a lógica dominante”, mencionada por Candau, foram e continuam sendo (como nos mostram as origens e os desdobramentos das leis 10.639/03 e 11.645/08) bastante discutidas, por exemplo, em relação ao ensino de História. Grupioni (1995), a partir da análise das imagens e das informações

(34)

sobre as sociedades indígenas contidas em materiais didáticos da disciplina, chama a atenção para o fato de haver “dificuldades em lidar com a existência de diferenças étnicas e sociais na sociedade brasileira atual” (p. 487), isto é: segundo o pesquisador, os índios, assim como os negros, quando recordados pelas narrativas histórias, costumam figurar como personagens inscritos no passado, e não como sujeitos contemporâneos, o que corrobora, precisamente, a versão do colonizador.

Pois bem, chegamos à primeira crítica ao livro didático: índios e negros são quase sempre enfocados no passado. Falar em índios é falar do passado, e fazê-lo de uma forma secundária: o índio aparece em função do colonizador. Mas que passado é este?

E aqui a segunda crítica: não se trata de uma história em progresso, que acumula e que transforma. É uma história estanque, marcada por eventos, eventos significativos de uma historiografia basicamente européia (Cf. Telles, 1987).

Vejamos dois exemplos: poucos livros mencionam a questão da origem dos povos indígenas no continente americano. Para a maioria dos manuais, "a presença do índio neste continente não é um problematizada, é um fato consumado" (Pintoe Myazaki, 1985:170). [...]

Como entender, e aqui apresentamos o segundo exemplo, a data de 1492 ou 1500 como uma descoberta? O continente americano havia sido descoberto e habitado há milhares de anos atrás, quando as primeiras levas de homens saíram da Eurásia, passando pelo estreito de Bering e adentrando o continente americano pelo Norte. [...] quando os europeus aqui chegaram, o continente americano vivia uma dinâmica própria, que foi substancialmente alterada com sua chegada. Mas não havia um mundo a ser criado ou à espera de seu descobridor. O conceito de descoberta só faz sentido se o entendermos dentro da perspectiva da historiografia européia.

Ao desconsiderar a história do continente, os manuais didáticos erram pela omissão, redução e simplificação ao não considerar como relevante todo o processo histórico em curso no continente. Chegamos, assim, a uma terceira crítica à forma como os livros didáticos tratam os índios. Como isto se dá? Primeiramente pela forma como estas sociedades são tratadas: geralmente pela negação de traços culturais considerados significativos: falta de escrita, falta de governo, falta de tecnologia para lidar com metais, nomadismo, etc. Um segundo modo de operação deste mecanismo de simplificação é a apresentação isolada e des-contextualizada de documentos históricos que falam sobre os índios. Assim, cartas, alvarás, relatos de cronistas e viajantes são fragmentados, recortados e, porque não dizer, adulterados e apresentados como evidências, como relatos do passado, sem que sejam fornecidos ao aluno instrumentos para que ele possa filtrar aquelas informações e reconhecê-las dentro do contexto no qual elas foram geradas. (GRUPIONI, 1995, pp. 487-488).

Ao relacionarmos as reflexões de Grupioni (1995) aos debates específicos sobre o ensino de literatura no Brasil, também o lugar não reservado na historiografia literária

(35)

nacional à escritora negra maranhense Maria Firmina dos Reis (1835-1917), por exemplo, considerada a primeira romancista brasileira, parece-nos um caso ilustrativo da ideia de “linha abissal”, de “zona colonial” e/ou de “produção de ausências”, dado que recuperar seu percurso nas “histórias [/fontes documentais] da literatura brasileira dos séculos XIX e XX não é tarefa fácil” (MENDES, 2006, p. 43). De forma análoga, a abordagem escolar de dois escritores afro-brasileiros canônicos do século XIX, Cruz e Sousa (1861-1898) e Machado de (1839-1908), revela-se igualmente próxima da dita “zona colonial” do ensino11. Hoje, não são

poucos os trabalhos acadêmicos que refutam a ideia de que ambos teriam permanecido parcial ou completamente alheios a questões raciais e/ou abolicionistas (vide CUTI, 2009; PINTO, 2014; CHALHOUB & PINTO (Orgs.), 2016; DUARTE, 2007; MAGALHÃES JÚNIOR, 1957). Todavia, percebe-se na apresentação que os manuais escolares brasileiros fazem desses escritores algumas das implicações dos apagamentos históricos que debatemos até então, pois tanto a introdução de suas biografias quanto a coletânea de seus textos costumam ocultar produções atreladas a suas atuações e/ou a seus posicionamentos sociais e políticos, em nome de uma seleção que ecoe somente pontos de contato com as escolas literárias europeias ou, mais precisamente, com a literatura portuguesa. Durante a triagem dos livros didáticos que viriam a compor o nosso corpus de análise, etapa em que tivemos acesso às coleções aprovadas pelas edições de 2012 e de 2015 do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), notamos que a introdução de Cruz e Sousa, por exemplo, permanece bastante restrita à máxima “maior escritor do Simbolismo no Brasil”, sendo poucos os livro que apresentam o autor como um poeta negro. Vê-se, nos saberes escolares, uma naturalização da ausência da negritude e de discursos políticos de resistência. Também o modo segundo o qual Lima Barreto (1881-1922) e sua obra são historicamente abordados no Brasil atesta apagamentos. Na ocasião de lançamento da biografia mais recente do autor, intitulada Lima Barreto – um triste visionário (2017), a pesquisadora Lilia Moritz Schwarcz relatou, em distintas ocasiões, o “imenso branqueamento” por ela notado nas fotografias disponíveis no acervo do escritor: “Ele definia sua cor como ‘azeitona escura’. Na primeira imagem do manicômio, ele aparece

11 No artigo “A abordagem da temática racial no ensino da literatura canônica: Algumas reflexões”, a

pesquisadora Nara Lasevicius Carreira (2018) aprofunda tal debate, com base, inclusive, na análise das mesmas coleções por nós estudadas, ou seja, os livros didáticos aprovados pelo PNLD 2015.

Referências

Documentos relacionados

No entanto, maiores lucros com publicidade e um crescimento no uso da plataforma em smartphones e tablets não serão suficientes para o mercado se a maior rede social do mundo

No código abaixo, foi atribuída a string “power” à variável do tipo string my_probe, que será usada como sonda para busca na string atribuída à variável my_string.. O

Neste estudo foram estipulados os seguintes objec- tivos: (a) identifi car as dimensões do desenvolvimento vocacional (convicção vocacional, cooperação vocacio- nal,

Os principais objectivos definidos foram a observação e realização dos procedimentos nas diferentes vertentes de atividade do cirurgião, aplicação correta da terminologia cirúrgica,

O relatório encontra-se dividido em 4 secções: a introdução, onde são explicitados os objetivos gerais; o corpo de trabalho, que consiste numa descrição sumária das

2 - OBJETIVOS O objetivo geral deste trabalho é avaliar o tratamento biológico anaeróbio de substrato sintético contendo feno!, sob condições mesofilicas, em um Reator

Após a colheita, normalmente é necessário aguar- dar alguns dias, cerca de 10 a 15 dias dependendo da cultivar e das condições meteorológicas, para que a pele dos tubérculos continue

Alves (2001) ressalta que a variável custos da qualidade ambiental decorrente de gastos para manter o padrão de emissão dos resíduos, em conformidade com as leis que regulamentam