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2. Metodologia e entrelaçamento da pesquisa

2.4 Educação Popular na Escola Pública

As propostas educativas, ao longo de nossa história, encontram-se pautadas pela escola como espaço de desvalorização de saberes cotidianos. Nesse sentido, às classes populares destinamos uma educação, aquela que convém a sua domesticação, impondo seu lugar social no mundo. Em análise de Fernandéz (1989), podemos observar a intencionalidade empregada à educação desde sua difusão. Como proposta pública, ressaltamos esta passagem já mencionando a reforma da educação:

O movimento de reforma da educação foi abrangente [1913]. Frank Spaulding personificou melhor que ninguém a introdução da análise de custo-benefício em termos de produção escolar. Ele propôs que se avaliasse o produto das escolas com medidas tais como a proposição de jovens de determinada faixa de idade nela matriculados, os dias de frequência por ano, o tempo necessário por aluno para realizar um determinado trabalho, a porcentagem de promoções, etc. Tudo isto, obviamente, sem prestar nenhuma atenção ao contexto social ou às peculiares características pessoais ou grupais dos alunos. (FERNANDÈZ, p.126-127, 1989)

No Brasil, podemos observar um novo contexto, que se reflete em políticas educacionais, principalmente nas últimas décadas, trazendo a marca do neoliberalismo e de sua intencionalidade educativa, relacionado à política e a economia mundiais. Na análise de Paludo (2001, p.118):

O abalo sofrido pela derrota nas eleições de 1989, a disseminação das teses do fim das utopias (Fukuyama, 1992) a queda do socialismo real (1989), e o decorrente abalo mundial da esquerda, o encantamento (transformismo, segundo Gramsci) dos setores do campo Democrático e Popular pela figura do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, a hegemonia política/ideológica do projeto de modernidade, a crise sociocultural vivida desde 1980, o direcionamento excludente dado ao processo de desenvolvimento, principalmente nas últimas décadas são alguns dos fatores mencionados pela literatura para explicar o CDP. Igualmente, estes são alguns dos fatores usados para explicar as dificuldades de elaboração de alternativas para esta mesma crise.

Nesta perspectiva, ou seja, no neoliberalismo, o Estado exerce papel de executor de políticas de estabilidade, estrutura formas flexíveis de organização do trabalho e, em consequência, faz acontecer políticas educacionais que reproduzem necessidades de mercado, vinculadas aos interesses internacionais. Em análise de Warde:

Os postulados trabalhados para intervir no sistema de ensino são: todo poder ao mercado e, em contrapartida, minimização do Estado; e

qualificação da escola básica de modo a torná-la capaz de formar recursos humanos necessários ao mercado, ao mesmo tempo que mais imune às diferenças sociais (1994, p.12).

Estratégias que deem conta da educação como proposta popular, alicerçadas nas necessidades de comunidades e não nos interesses de uma maioria vão se construindo ao longo da história como categorias de luta do povo, por sua organização em busca de condições dignas de existência. Paludo salienta as raízes da educação popular na seguinte passagem:

Os estudiosos da educação brasileira que se orientam por uma perspectiva crítica nem sempre deixam claro que a “Educação Popular” representa uma concepção de educação que inicia sua gestação com o projeto de

modernidade brasileiro e latino-americano, cujos contornos se inovam e

começam a delinear de forma mais clara, ganhando adesões importantes, no início dos anos 1960. Aprofundando-se nos anos de 1970/80, esta concepção sofre críticas contundentes no final dos anos 1980 e continua, com ganhos no âmbito de sua formulação e práticas, presente nos anos 1990 (2001, p.65).

A tentativa de instauração da educação popular, ou seja, aquela que nasce com o povo e não para o povo vem desafiando a escola, em seu sentido mais amplo, na construção do conhecimento. Barros (2005) nos alerta a respeito do extenso debate em busca de metodologias que abarcam os problemas impostos à sociedade no campo educacional, bem como as carências e deficiências produzidas pelos modelos educacionais, no tocante à escola pública. E a conclusão a que chegamos parece ser a de que está neles imposto a cicatriz da ineficiência.

Educação como política pública funda-se em um movimento de origem repressora, ancorado nas necessidades de produção da sociedade, como já exposto em nosso trabalho. E a escola pública vista como projeto de uma sociedade desigual, fruto do sistema capitalista e sua lógica destrutiva, reproduz essa relação em seu interior, tornando-se assim um objeto alheio ao meio onde está inserido, ou seja, o território das comunidades.

Pensando a relação entre a escola e o contrato que estipulamos com sua construção, Danilo Streck retoma Rousseau, em sua obra Emílio, apresentando as críticas com relação à proposta de uma educação cidadã, concluindo:

A educação para um outro contrato social deve ser também uma educação para além do contrato. Ou seria aquém do contrato? Ou paralela a ele? O contrato pode buscar garantir relações sociais justas, mas não a solidariedade; pode garantir acesso a uma escola bem aparelhada e a um professor competente na sua área, mas não pode garantir a ternura de que falava José Martí, a amorosidade referida por Paulo Freire ou a beleza

como ingrediente necessário da ação educativa, conforme Gabriela Mistral (2010, p.288).

A escola pública apresenta ações pedagógicas centralizadoras, mediadas pelo interesse do capital, que se desenvolvem e trazem a marca da seletividade nas relações sociais. Destacamos Freitas:

Essa função social seletiva, incorporada pela escola, faz com que ela seja vista como um local de preparação de recursos humanos para os vários postos de trabalho existentes na sociedade. Neste sentido, se não houver resistência, a escola traduz as desigualdades econômicas em desigualdades educacionais e, depois, retraduz tais desigualdades educacionais em desigualdades econômicas (2003, p.96).

A educação não é a única forma de transformação radical da sociedade, porém desempenha imenso papel na direção das mudanças sociais. Cabe lembrar a necessidade de considerar a escola como espaço de educação popular, voltada para a reflexão-ação e transformação.

É de extrema necessidade para a escola o vínculo com a comunidade, na medida em que esta unidade promove o conhecimento libertador que possibilita ao educando compreender o seu estar no mundo. Trata-se de uma relação que deve acontecer desde o início da escolarização, mesmo nos métodos de alfabetização escolhidos pela escola e na compreensão por parte da escola dos problemas da comunidade em que esta se encontra.

A relação entre escola e comunidade parece não se estabelecer devido a um tipo de ideologia que perpassa o modo de pensar a educação, ou seja, a id elogia de uma classe dominante, pautada pelo Estado e que representa o capital e a política neoliberal, diminuindo em grande parte a possibilidade de avanços na discussão e qualificação dos processos educativos. Trabalhar tais questões é reconhecer o papel da escola frente à realidade que a circunda. Porém, quanto mais se dá o distanciamento entre comunidade e escola, mais difícil torna-se trabalhar a realidade. Entretanto, trata-se de um caminho que precisa ser realizado, pois compreender a situação em que os educandos encontram-se parece ser o primeiro passo para a libertação:

Em resumo, as situações-limite implicam na existência de pessoas que são servidas direta ou indiretamente por estas situações, e outras para as quais elas possuem um caráter negativo e domesticador. Quando estas últimas percebem tais situações como fronteira entre ser e ser mais humano, melhor que a fronteira entre ser e não ser, começam a atuar de maneira mais e mais crítica para alcançar o possível não experimentado contido nesta percepção. Por outra parte, aqueles que são servidos pela situação-

limite atual vêem o possível não experimentado como uma situação-limite ameaçadora, que deve ser impedida de realizar-se, e atuam para manter o

status quo (FREIRE, 2001, p.34).

Quando voltamos nosso olhar para a escola pública do campo, é possível perceber a urgência da instauração de um novo modo de ensinar na escola, que, como proposto por Freire, possibilite ao educando uma formação mediada pelo diálogo, entre os diferentes saberes e que leva em conta suas condições existenciais, de forma a construir algo promissor desde as experiências dos estudantes, por meio da problematização, do aprofundamento e oferecendo condições de realização de uma nova síntese, agora enriquecida com o conhecimento historicamente acumulado.

A proposta de uma educação popular do campo surge da luta dos povos oriundos do campesinato (Paludo, 2010). Se, na forma usual, a educação formal, na escola pública, contou com um montante de fatores que contribuem para a manutenção da educação bancária, no tocante à educação do campo, pesquisas dão conta de que ao longo de sua história, ela se constrói como um movimento de luta pela qualidade e pela identidade do povo do campo com os projetos de educação. Podemos dizer que ela surge como uma proposta crítica frente à educação deslocada da realidade, indo além de uma política pública:

A Educação do Campo nasceu como mobilização/pressão de movimentos sociais por uma política educacional por comunidades camponesas: nasceu como uma combinação da luta dos Sem Terra pela implantação de escolas públicas nas áreas de Reforma Agrária com as lutas de resistência de inúmeras organizações e comunidades camponesas para não perder suas escolas, suas experiências de educação, suas comunidades, seu território, sua identidade. [...] E ao nascer lutando por direitos coletivos que dizem respeito à esfera do público, nasceu afirmando que não se trata de qualquer política pública: o debate é de forma, conteúdo e sujeitos envolvidos. A Educação do Campo nasceu também como crítica a uma educação pensada em si mesma ou em abstrato; seus sujeitos lutaram desde o começo para que o debate pedagógico se colocasse à sua realidade, de relações sociais concretas, de vida acontecendo em sua necessária complexidade (CALDART, 2010, s/d, p.3).

Com a preocupação de construir meios de educar de forma a dar vazão à questão cultural e à democratização da educação, Freire, por meio de seu método de alfabetização, prioriza a relação entre escola e comunidade.

O homem, através de seu agir, pode libertar-se. Por meio de uma educação voltada para as necessidades reais da comunidade em que está inserido, pode transformar conteúdos regulados pela repetição e simples assimilação, em formas

de compreensão da vida e tentativas de superação da desigualdade social. Para, assim procedendo, utilizar-se da construção do conhecimento e tornar-se sujeito de sua história.

Nessas condições:

A invenção da existência envolve, repita-se, necessariamente, a linguagem, a cultura, a comunicação em níveis mais profundos e complexos do que o que ocorria e ocorre no domínio da vida, a “espiritualização” do mundo, a possibilidade de embelezar como de enfear o mundo e tudo isso inscreveria mulheres e homens como seres éticos. Capazes de intervir no mundo, de comparar, de ajuizar, de decidir, de romper, de escolher, capazes de grandes ações, de dignificantes testemunhos (FREIRE, 1999, p.65).

A educação que se pretende é aquela em que o educando é sujeito de sua história, uma educação que ocorre como afirmação da subjetividade, como construção do conhecimento significativo. Não existe a pretensão de colocar esta ou aquela realidade como melhor do que a outra, mas trata-se de considerar a possibilidade de que, juntas, tais realidades, homens conscientes de sua condição tenham possibilidade de dizer sua palavra e afirmar-se por sua condição, como construção da dimensão concreta da vida.

O que antes já existia como objetividade, mas não era percebido em suas implicações mais profundas e, às vezes, nem sequer era percebido, “destaca”-se e assume o caráter de problemas e desafios a enfrentar. A partir desse momento, o “percebido destacado” já é objeto da “admiração” dos homens, e, como tal, de sua ação e de seu conhecimento. (Freire, 1987, p.71)

As classes sociais, historicamente, representam-se através de seus padrões educativos. Sempre houve um modelo para a elite, ou seja, para a classe dominante e outro para as massas. A respeito do modelo de educação, Freire enfatiza:

Os projetos educativos existem somente para oferecer algumas indicações necessárias para se obter uma maior eficiência na produção. Os trabalhadores devem transformar-se em bons produtores e o serão tão melhores quanto melhor introjetem as razões do sistema e se tornem dóceis aos interesses da classe dominante (FREIRE, 1971, p.36).

A educação que se propõe educação libertadora passa pela construção do sujeito, como protagonista de sua história. No campo da educação, o papel de coadjuvante desvaloriza as raízes existenciais e contribui para a alienação, pois reifica as relações sociais e as reproduz no interior da escola. A luta por uma sociedade igualitária e democrática impõe esforços a serem seguidos no processo

de emancipação humana. O veículo fundamental para essa transformação é a própria sociedade.

E o conhecimento que se constrói no espaço escolar está longe de transgredir as amarras da sociedade capitalista, por se constituir como objeto de perpetuação do status dominante. Cabe à escola propor uma revisão na sua estrutura curricular, para desta forma, partindo da realidade, construir um conhecimento significativo.

Segundo Freire:

O conhecimento, pelo contrário, exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ação-transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante. Implica em invenção e em reinvenção. Reclama a reflexão crítica de cada um sobre o ato mesmo de conhecer, pelo qual se reconhece conhecendo e, ao reconhecer-se assim, percebe o “como” de seu conhecer e os condicionamentos a que está submetido seu ato (FREIRE, 1983 p.16).

Surge das necessidades de nosso tempo uma educação de qualidade que supre a carência de integração entre mundo vivido e saberes desenvolvidos na escola. Porém, a escola, por representar a própria sociedade, não permite a valorização da participação comunitária, como agente efetivo do despertar de sua escolarização. Por esta razão, a educação escolar, historicamente, vem sendo aquela que dissocia saberes dados pela vivência das comunidades a que esta pertence.

Compreendemos que perceber o papel da escola no desvelamento da realidade cria oportunidade de esta fazer parte do mundo vivido pelos alunos, cumprindo assim seu papel de educar em um sentido forte, impregnado pelo papel conscientizador do ato de aprender. Nas palavras de Freire:

A conscientização é isto: tomar posse da realidade; por esta razão, e por causa da radicação utópica que a informa, é um afastamento da realidade. A conscientização produz a desmitologização. É evidente e impressionante, mas os opressores jamais poderão provocar a conscientização para a libertação: como desmitologizar, se eu oprimo? Ao contrário, porque sou opressor, tenho a tendência a mistificar a realidade que se dá à captação dos oprimidos, para os quais a captação é feita de maneira mística e não crítica. O trabalho humanizante não poderá ser outro senão o trabalho de desmistificação. Por isso mesmo, a conscientização é o olhar mais crítico possível da realidade, que a des-vela para conhecê-la e para conhecer os mitos que enganam e que ajudam a manter a estrutura dominante (2001, p.33).

A metodologia proposta por Freire destaca o relacionamento entre a investigação da realidade dos alunos com o fazer pedagógico e enfatiza a tarefa

como de extrema importância para que seja possível, a partir da análise existencial, oportunizar a qualificação de conteúdos, através da exploração do contexto histórico, por meio dos temas geradores, que fazem parte do universo cultural no qual o educando está inserido.

Cabe, assim, pensar o papel da escola pública, frente à proposta de uma educação popular, feita com o povo, tendo na metodologia freiriana, – mais precisamente na possibilidade dialógica do espaço educativo, – o horizonte de busca.

A construção de um referencial que oferece chances de visão dos limites da escola, pelas complexas relações que compõem o sistema educacional brasileiro, vem de encontro à melhoria das condições materiais de existência das comunidades escolares, levando em conta a realidade pedagógica. Cabe analisar a organização dos sistemas escolares e, em relação a essa questão, Saviani esclarece:

As redes escolares são organizadas segundo determinada concepção que, normalmente, é instituída por meio da legislação, embora contenham também, às vezes de forma contraditória, elementos implícitos derivados de concepções que penetram no cotidiano das escolas, constituindo aquilo que poderíamos chamar de “senso comum educacional” (2003, p.119).

Compreender e reconstruir a relação entre comunidade e escola torna-se um desafio necessário para qualificar a prática docente de modo que esta se volte para a realidade e ajude a minimizar o distanciamento gerador do antagonismo (oprimido/opressor).

Na metodologia proposta por Freire (1982), encontramos o horizonte da possibilidade no diálogo, composto por quatro elementos de fundamental importância para a superação das contradições, o amor, a fé a esperança e a humildade, construídos de forma crítica, orientando mudança de conteúdo programático. Para conseguir alcançar tal dimensão, segundo o autor, é indispensável adentrar a cultura, que se constrói a partir do trabalho.

Na edificação do mundo, o homem constrói-se e reconstrói-se permanentemente como um ser de relações. Sendo assim, a educação desempenha papel primordial na transição entre consciência ingênua e consciência crítica. Daí, a importância de valorizar a construção do conhecimento e o papel da escola, enquanto espaço de desvelamento da realidade.

3 O diálogo no espaço escolar e suas implicações no fazer pedagógico

Anteriormente, discutimos a fundamentação que constitui as bases teóricas, históricas e sociais da pesquisa. Neste capítulo, buscamos refletir sobre a categoria diálogo, seus desafios e sua relação com o fazer pedagógico. O diálogo não pode ser reduzido a um instrumento metodológico, mas deve ser utilizado como forma de comunicação, onde as questões da diferença do lugar de enunciação, em nosso entendimento, podem ser superadas pela qualificação da escola como espaço democrático, em um movimento que possibilita o entrecruzamento de saberes e a reflexão sobre a prática pedagógica.

Nessa perspectiva, a análise das possibilidades de ocorrência do diálogo no espaço escolar, bem como a reflexão sobre suas consequências articulam-se de modo a contribuir para o ‘inédito-viável’, nas palavras de Freire:

O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu. “O diálogo é uma exigência existencial, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro nem tampouco tornar-se simplesmente troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes” (1987, p.78-79).

Na perspectiva freiriana, o diálogo acontece como resultado da relação do homem com o mundo e com os outros homens. Nesse sentido, perceber o entendimento do diálogo na escola junto à comunidade escolar demanda a retomada de alguns aspectos que contribuem para nossa pesquisa.

Em um primeiro momento, faremos a leitura empírica através da análise do Regimento de referência, proposto pelo Secretária Estadual de Educação, bem como as observações realizadas no transcorrer da pesquisa nos espaços destinados à participação e diálogo da comunidade, tendo como objetivo analisar as relações que se estabelecem na escola e que condicionam a possibilidade de diálogo. No item seguinte, faremos a análise interpretativa das respostas dos entrevistados e

algumas reflexões e apontamentos do “diário de campo” acerca da categoria escolhida para análise na escola.

3.1 O sistema estadual de educação e suas implicações na construção do