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A educação nas prisões, os marcos normativos resultantes da mobilização de diferentes agentes

e seus impactos no estado de São Paulo

em 2005, os ministérios da Justiça e da educação iniciaram uma articulação conjunta para mobilizar os estados e a sociedade civil com vistas à promoção da educação nas prisões e à regulamentação de sua oferta. essa articulação culminou com a aprovação de duas resoluções normativas, a resolução n. 03 de 2009, do Conselho nacional de Política Criminal e Penitenciária e a resolução n. 02 de 2010, do Conselho nacional de educação. ambos os documentos têm como propósito a institucionalização de parâmetros para a oferta de educação nas pri- sões brasileiras. dentre esses parâmetros, a transferência da responsabilidade por essa oferta para as secretarias estaduais de educação e a necessidade de dotar os sistemas de ensino na prisão de profissionais do quadro do magistério.

seguindo trajetória distinta a esse movimento, o estado de são Paulo, por intermédio da funap, ampliou consideravelmente o uso de monitores presos para a execução de seu programa de educação e, em abril de 2011,7 o total de presos

atuantes como monitores no programa da funap era de 482.

no entanto, ao passo que era possível constatar, por meio de pesquisa de campo, a distinção dos monitores presos enquanto uma nova identidade social no

7. o número de monitores variava a cada mês, em decorrência de desligamentos e novas contra- tações.

seio das relações estabelecidas nos presídios paulistas, alguns dados objetivos indi cavam o sucateamento daquilo que fora proposto pela fundap e que estava consubstanciado em seu projeto político-pedagógico. assim, ao mesmo tempo que ocorria um crescimento vertiginoso no número de monitores presos,8 a fun-

dação abandonava a realização de encontros de formação e a alocação de moni- tores orientadores9 para coordenação pedagógica dos grupos de monitores presos,

itens previstos no “Tecendo a liberdade”. Por seu turno, a diretora executiva da funap declarara em diversas ocasiões que a opção pelo monitor preso constituía uma alternativa economicamente interessante: “precisar ter um professor licen- ciado em cada sala de aula seria um desperdício de dinheiro público”.10

a opção, portanto, pelo monitor preso, passara a ser, segundo a direção da funap nomeada em meados de 2006, uma estratégia econômica para baratea- mento de seus investimentos num programa de educação, deixando de constituir um investimento pela “reintegração social”11 das pessoas em privação de liber-

dade. essa visão, no entanto, se contrapõe ao valor que, no diálogo com educa- dores e alunos das unidades prisionais, eu percebia ser dado aos monitores presos, indicando que a visão do corpo diretivo não correspondia às relações estabe- lecidas no interior dos estabelecimentos penais. Por outro lado, os monitores presos passam a sentir os reflexos dessa precarização:

a gente se sente meio abandonado sem ter o orientador aqui pra nos auxiliar. eu até tento seguir o livro, mas fico sem saber o que fazer com a rotatividade dos alunos. um monitor orientador poderia me ajudar a planejar melhor as ativi- dades e entender como usar o material. (denis, monitor preso de unidade da coordenadoria central. Caderno de campo, novembro de 2010.)

8. os números saltam de algo em torno de 150 monitores, em 2006, para cerca de 300 em 2007 e supera a casa dos 400 em 2008, oscilando, nos anos seguintes, sempre para cima desse piso. 9. os educadores da funap são concursados como monitores de educação básica, tendo como

atribuição o planejamento e execução de aulas de ensino fundamental. À época da implemen- tação do projeto “Tecendo a liberdade”, a diretoria da funap indicou que iria designar uma macroatribuição aos monitores, acompanhada de gratificação salarial para o exercício da função de monitor orientador. a macroatribuição, que permitiu aos monitores exercerem outra função, foi publicada por meio de portaria interna da funap. a gratificação nunca foi concretizada. 10. entrevista de lucia Maria Casali de oliveira concedida à revista Carta Fundamental, n.22,

p.35, out. 2010.

11. as funções normativas e os usos sociais de uma suposta oposição empírica entre “reintegração social” e “reincidência penitenciária” são abordadas em Melo (2012). aqui, uso a expressão “reintegração social” como um conjunto de ações que devem ser oferecidas nas unidades pri- sionais com vistas ao cumprimento da finalidade legalmente prevista de “preparar os indiví- duos para a harmônica reintegração à sociedade”, conforme a lei de execução Penal (Brasil, 1984).

ESTUDOS EM POLÍTICAS PÚBLICAS 185

a questão toma nova dimensão com as responsabilidades impostas pela legis lação federal. em 2 de março de 2011, o governo de são Paulo publica o decre to n. 56.800, instituindo “grupo de Trabalho para desenvolver estudos e propor políticas e ações voltadas para a educação no sistema Prisional do es- tado de são Paulo”. o grupo de trabalho é nomeado e, conforme determinado pelo decreto de sua criação, conclui suas atividades num prazo de trinta dias, apresentando uma proposta de modelo para educação nas prisões.

em termos gerais, o modelo denominado “educação presencial distribuída” propunha a oferta de atividades educacionais em salas de aula regidas por moni-

tores presos, sendo que estes ficariam subordinados pedagógica e hierarquica-

mente a educadores da funap, os quais, por seu turno, seriam subsidiados por conteúdos e metodologias desenvolvidos por grupos de professores ligados à secre taria de educação. diz o relatório:

as atividades educacionais dos detentos serão realizadas pelos professores da funap de forma diária e presencial nas salas de aula de cada unidade prisional, com apoio dos monitores presos. (vogt et al., 2011, p.12.)

o relatório expressa ainda o fruto de um jogo político presente no bojo do governo paulista: a proposta de criação da escola virtual de Programas educa- cionais do estado de são Paulo (evesp), que tinha como finalidade original ofe- recer suporte ao Programa de educação nas Prisões.

instituída pelo decreto n. 57.011, de 23 de maio de 2011, a evesp foi conce- bida por um grupo liderado pelo prof. Carlos vogt, ex-secretário de ensino supe rior do governo de José serra (2009-2010) e assessor especial do governador geraldo alckmin. Trata-se de um grupo que pensa políticas de inovação e criati- vidade, em contraponto ao perfil conservador das secretarias de educação e da administração Penitenciária.

seguindo o modelo da universidade virtual do estado de são Paulo (uni- vesp), também criada pelo prof. vogt, o lançamento da evesp se insere num pro- jeto político que tem como finalidade instituir uma fundação pública voltada para a oferta de educação a distância. o projeto, porém, gera um conflito de responsa- bilidades com a secretaria de educação, uma vez que compete a esse órgão a gestão e operacionalização de quaisquer programas de educação básica. assim, ao pu- blicar o decreto n. 57.011/2011, o governo instituiu a evesp como um programa ligado à secretaria de educação e subordinado à Coordenadoria de gestão da educação Básica. a fundação do prof. vogt seria posteriormente instituída como fundação univesp, cujo Projeto de lei n. 264/12, foi aprovado pela assembleia legislativa em 19 de junho de 2012, confirmando a força política desse grupo.

Também como resultado do grupo de trabalho, após aprovação de seu rela- tório final pelo governador de estado, foi publicado o decreto n. 57.238/2011, instituindo o Programa estadual de educação nas Prisões do estado de são Paulo (PeP). Tal decreto foi anunciado pessoalmente pelo governador durante a inauguração da Penitenciária feminina de Tupi Paulista, no dia 17 de agosto de 2011. o decreto define que “a educação nos estabelecimentos penais será pre- sencial e ministrada, preferencialmente, com metodologias baseadas no uso in- tensivo das tecnologias de informação e de comunicação” (são Paulo, 2011b), afirmando ainda que “a universidade virtual do estado de são Paulo (univesp) prestará orientação acadêmica e metodológica, em seu campo de atuação, para a execução do PeP”.

o choque de interesses toma, então, ares oficiais: por um lado, a secretaria de educação, órgão responsável legalmente pela oferta de educação básica e pela oferta de programas de aprimoramento do quadro do magistério paulista;12 por

outro, a univesp, aparecendo no decreto como responsável pela orientação aca- dêmica e metodológica para execução do PeP. nos meandros da disputa, um programa recém-criado e em busca de definições institucionais – a evesp; uma fundação com acúmulo histórico sobre o tema “educação nas prisões”, mas com uma gestão que relega a esse programa uma importância minoritária; dezenas de educadores que desconhecem seu futuro profissional – os monitores do quadro da funap; monitores presos e alunos que desconhecem como funcionarão as es- colas nas unidades prisionais.

a efetividade de um programa de educação nas prisões pouco importa nesse momento: nos gabinetes onde se tomam as decisões e onde se desenrolam as dispu tas políticas, o que vale é a simbologia do poder de ser responsável pela “reintegração social” de mais de 200 mil homens e mulheres em privação de liber dade.

De uma agenda participativa e de mobilização