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Poder instituído, poder negociado: os acordos e as estruturas de controle na Administração Penitenciária

segundo o secretário de administração Penitenciária, sr. lourival gomes, os presídios devem ser compreendidos como “instrumento de combate ao crime

19. no mesmo dia da reunião, ocorrida em 26 de junho de 2012, foi realizada a primeira reunião do grupo de articulação de ações de educação, instituído pela resolução saP 074, motivo pelo qual eu estive na sede da saP, quando ouvi os relatos acerca de sua satisfação por ter desquali- ficado a diretora executiva da funap.

20. os aspectos patrimonialistas e personalistas da política brasileira e suas manifestações na admi- nistração penitenciária são objeto da pesquisa Encarceramento em massa no estado de São Paulo: uma análise sobre a expansão do sistema penitenciário paulista, que iniciei em março de 2014, no Programa de Pós-graduação em sociologia, nível doutorado, universidade federal de são Carlos.

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organizado”.21 o discurso representa uma visão policialesca do sistema peniten-

ciário, em clara afronta às suas finalidades legalmente estabelecidas pela lei de execução Penal. Tal visão, por um lado, produz efeitos cotidianos importantes; por outro, mascara práticas corriqueiras da gestão prisional.

em termos operacionais, o discurso policialesco se dissemina entre o corpo funcional da administração penitenciária. em abril de 2012, durante visita a um CdP na região norte do estado, observei pela primeira vez agentes de segurança penitenciária utilizando uniformes distintos daqueles que são oficiais, sobretudo camisetas com inscrições e símbolos. numa delas, o desenho de uma caveira sendo atravessada por duas pistolas; noutra, uma logomarca com um nome: kombato.org.22 embora não deixe claro se se trata de uma empresa privada, de

uma organização não governamental ou de qualquer outra natureza jurídica, o sítio da “kombato” na internet traz como slogan: “kombato, autodefesa, política de segurança, armamentos e espírito de tribo”!

a visão manifesta pelo secretário da administração Penitenciária assume o centro de um movimento de dupla determinação: de certa forma, é uma visão que representa o modus operandi dos servidores da saP e, nesse sentido, dá ao secretário o respeito e a credibilidade desses servidores; por outro lado, é uma visão que se configura enquanto discurso de incentivo e promoção desse modus

operandi, permitindo sua reprodução, retroalimentando-o.

assim, o surgimento de grupos distintos de servidores – tribos, segundo o incentivo da kombato.org – dificulta, para as diretorias das unidades prisionais, o controle sobre as ações do próprio corpo funcional. não sem frequência, dire- tores-gerais de unidade manifestam sua dificuldade em estabelecer padrões de procedimentos e é comum ouvir que “dependendo do plantão a coisa funciona bem”. essa dificuldade decorre do próprio regime de contratação e das formas de organização institucional da administração Penitenciária.

os agentes de segurança penitenciária são concursados para trabalhar em regime de plantão, com jornada de trabalho de doze horas e descanso de 36 horas, tendo direito a uma folga mensal. não obstante, muitos servidores optam por trabalhar em regime de “diarista”, com jornada de oito horas diárias. em cada unidade, os servidores são divididos em quatro grupos, sendo dois para o plantão diurno e dois para o noturno. Cada plantão é liderado por um “chefe de turno”, subordinado ao diretor de segurança e disciplina. o sistema hierárquico diretor-

21. a expressão é comumente utilizada pelo sr. lourival gomes em discursos e reuniões, ocasiões em que o secretário insiste em afirmar que o sistema prisional “está combatendo o crime orga- nizado dia e noite, noite e dia”.

-geral, diretor de disciplina, chefe de turno e demais servidores não garante, contudo, que as decisões e ordens administrativas sejam cumpridas conforme emanadas em sua origem – o diretor-geral. É comum a expressão “no fundão da cadeia a coisa é diferente”, que expressa as diferenças de visão e de procedimento entre o corpo diretivo e os funcionários subalternos que lidam diretamente com a segurança no interior das unidades prisionais.

Tem-se assim uma múltipla fragmentação do corpo funcional. dividido em tarefas especializadas e em turnos, o conjunto de servidores de cada unidade se reparte também em grupos de afinidades ideológicas. funcionários que privile- giam a “reintegração social” voltar-se-ão para as tarefas de promoção da edu- cação, do trabalho, dos atendimentos e benefícios previstos pela legislação. a maioria dos agentes penitenciários, no entanto, dedicará boa parte de seu tempo para elaborar estratégias e práticas de contenção e de repressão, o que, no en- tanto, abrirá caminhos para as práticas veladas de negociação e de compartilha- mento – com a própria população prisional – da gestão do cotidiano das prisões. Por outro lado, a forma de ocupação dos cargos diretivos na secretaria de administração Penitenciária e nas unidades prisionais favorece a necessidade de acordos e a prevenção de conflitos. Todos os cargos de direção são ocupados por nomeação. assim, o secretário nomeia os coordenadores e estes têm também autoridade para manter ou substituir diretores de unidades prisionais de suas coordenadorias. e, dentro de cada unidade, o diretor-geral nomeia sua equipe, que inclui diretorias de área e diversas chefias. dessa sistemática decorre um sis- tema de obediência dos diretores-gerais de unidades para seus superiores – coor- denador, secretário – e dos diretores de áreas para seus diretores-gerais.23 Porém,

com os servidores subalternos instaura-se um mecanismo de negociação cons- tante, pois, como adverte o diretor de um presídio da região oeste paulista, “é necessário ter o guarda do seu lado, senão diretor nenhum toca a cadeia” (Melo, 2006-2012).

assim, as dissonâncias entre eventuais ordens e procedimentos transferidos pelo diretor-geral para o corpo funcional da unidade e as práticas efetivamente percebidas no cotidiano das prisões fazem parte de um equilíbrio frágil que per- meia a administração penitenciária em toda sua estrutura, abrindo caminhos para outros tipos de acordos que põem em xeque o próprio discurso de “combate ao crime organizado” propagado pelo secretário de estado.

23. não é absurdo compreender essas dinâmicas nos termos foucaultianos da coexistência entre práticas de soberania, de disciplina e de difusão das formas de poder. no entanto, tal coexis- tência acaba por incorrer em complexas formas de interdependência, subjugando a suposta racio nalidade da administração do estado e favorecendo negociações cujas finalidades são, sobre tudo, de ordem pessoal.

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nas dinâmicas de administração das unidades prisionais, a negociação de espaços e as responsabilidades compartilhadas entre o corpo diretivo e a popu- lação prisional surgem como as principais estratégias para “manutenção da ordem”. Como expressou N., então diretor de segurança e disciplina de unidade prisional da região oeste de são Paulo,

aqui tá tudo sob controle, mas sob controle dos cara. Pra manter a ordem é assim: a gente finge que tá no controle e os caras fazem o controle deles lá dentro. só que o ladrão sabe que se aprontar alguma, a gente vai com tudo lá pra cima deles. (ibidem.)

dessa forma, o cotidiano é marcado por regras de convívio não estabelecidas oficialmente, mas que permitem aos diretores tocar a cadeia e evitar conflitos que ultrapassem os limites das muralhas. ao longo dos anos em que atuei no sistema prisional paulista pude perceber a diversificação dessas formas de nego- ciação, que também mudam dependendo do perfil de população prisional de cada unidade. atualmente, o principal marcador de diferenciação das relações entre corpo diretivo e população prisional decorre da estratificação produzida pela existência dos diferentes coletivos de presos presentes nas cadeias paulistas.

segundo relatos de diferentes diretores de presídios, a cadeia do PCC, em- bora mantenha a tensão constante da iminência de atos de oposição ao estado (Biondi, 2010; Marques, 2009), torna-se mais facilmente administrada em decor- rência da presença de lideranças locais: “em cadeia do PCC a gente conversa com um, dois caras, e resolve como a cadeia anda. antes não, a gente negociava no va- rejo, conversava com um monte de gente e mesmo assim sempre tinha confusão, porque ninguém mandava na cadeia e todo mundo queria ser fodão”, contou-me

C., diretor de unidade prisional que em 2008 passou por mudança de perfil da

população prisional, deixando de ser cadeia neutra (aquela em que os presos não pertencem a nenhum coletivo) e recebendo presos tidos como ligados ao PCC.

o que se observa, então, é que, diferentemente do que afirmam em público o secretário da administração Penitenciária e, seguindo sua linha, os servidores daquela secretaria que ocupam cargos de direção, longe de “combater o crime organizado dia e noite, noite e dia”, o estado estabelece relações permanentes, embora tensas, de negociação e acertos que possibilitem a gestão dos conflitos e a manutenção da cadeia em pé, utilizando-se, sobretudo, da própria clivagem exis- tente entre os diferentes coletivos de presos e, dentro de cada um desses, do seu modelo de organização interna.

É esse sistema permanente de negociações não oficiais, bem como a estru- tura hierárquica de controle e determinação, que permite a compreensão sobre a

falta de mobilização dos operadores do sistema prisional diante da tomada de decisões pessoais impostas pelo alto escalão da administração penitenciária, em direta oposição à agenda de participação que fora anteriormente desenvolvida.

Apontamentos finais: algumas decorrências da Resolução