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Por que os agentes públicos são responsáveis?

Pesquisa desenvolvida nas cidades de araraquara, Bauru, ribeirão Preto, são Carlos e são José do rio Preto sobre a capacidade de agentes públicos atuarem na prevenção, na atenção social e no tratamento médico de meninas ví- timas de abuso sexual indica a existência de políticas públicas, mas também aponta a ausência de responsabilidade pública dos agentes envolvidos na for- mação de redes sociais locais de prevenção. indica, ainda, uma compreensão des- conexa entre o fenômeno do abuso sexual, o aliciamento de menores para práticas sexuais e sua conversão em exploração sexual.

Por sua vez, a competência decorre da capacitação acadêmica e técnica dos profissionais, submetidos a intensa formação e a concursos públicos. em se- gundo momento, do conhecimento, por parte desses agentes, das normas insti- tucionais das unidades da administração pública municipal a que se vinculam. em seguida, de sua disposição individual de acolher meninas menores de idade para serem integradas em serviços de atendimento especializados existentes. além disso, devem saber da impossibilidade de enfrentar redes de criminalidade constituídas para envolvimento dessas menores em práticas de exploração sexual.

1. doutor em Ciências sociais – universidade estadual de Campinas. Professor do departa- mento de sociologia e do Programa de Pós-graduação em Ciências sociais – faculdade de Ciências e letras, unesP/campus araraquara. líder do grupo segurança urbana, Juven- tude e Prevenção de delitos, CnPq.

essa impossibilidade deve ser enfrentada a partir da identificação dos obstá- culos objetivos e subjetivos desses próprios agentes, bem como de cientistas, aqui denominados intelectuais acadêmicos, em atuar de maneira articulada, entre si e como representantes da cidadania, junto a instituições públicas locais, de maneira a produzirem redes sociais de prevenção de delitos e sistemas integrados de informação e comunicação. identifica-se uma ausência de responsabilidade, que se diferencia de prática de omissão profissional ou de negligência.

esse aspecto da responsabilidade pública é expressão da consciência sobre dimensões sociais e coletivas, sobre processos que atingem indivíduos indiferen- ciados que chegam aos serviços na condição de pessoas procurando apoio, trata- mento, proteção, entre muitas expectativas. ou crianças e adolescentes levados por adultos, seus responsáveis.

segundo nossa compreensão, a responsabilidade pública poderá se consti- tuir no interior de instituições, a partir da definição de protocolos que indiquem prioridades e passos concretos no enfrentamento dessa prática desintegradora de personalidades em formação. isso, através de funções técnicas especializadas e voltadas para minimizar agravos à integridade de pessoas e grupos que buscam serviços públicos percebidos pela cidadania, até por intuição, como referência de proteção social.

em âmbito maior, encontramos a prática da prostituição e intervenções pú- blicas para regulá-la, o que pode iluminar aspectos do tema que aqui se apre- senta, em especial sobre possíveis intervenções orgânicas da polícia militar.

em países como a itália, policiais se constituíram como agentes responsáveis pelo acompanhamento de práticas de prostituição adulta em cidades como ve- neza, ponto turístico internacional. lá, eles mapeiam os pontos de prostituição urbanos, identificam a representação de comunidades de moradores, reúnem-se com seus representantes para identificar a aceitação dessa prática local e ca- dastram mulheres prostitutas adultas nos serviços de assistência social, e polícia e assistentes sociais atuam coesos. identificando contrariedade dos mora dores diante da presença das prostitutas, entram em contato com elas, através dessas assistentes sociais ou psicólogas integradas a essa unidade especializada, e pro- põem seu deslocamento para outras regiões urbanas, que passarão pelo mesmo crivo das representações comunitárias. além disso, as prostitutas são chamadas a refletir sobre alternativas profissionais, ao longo de seis meses, sob a coorde- nação de serviço social integrado às unidades policiais. a exploração de menores de idade ou exploração associada ao crime organizado é combatida abertamente pela polícia. aqui se evidencia o nexo entre abuso sexual e exploração sexual, mediado por práticas de aliciamento de menores (Carchedi; Tola, 2006).

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Participam dessa empreitada pesquisadores acadêmicos, vinculados às uni- versidades do estado, públicas e privadas, que buscam com frequência as insti- tuições públicas locais de serviço social e segurança, que são referências empíricas de muitas pesquisas por reunirem expressivas bases de dados. em 2002, a decla- ração do fórum italiano para a segurança urbana esclareceu esse contexto, nos termos que seguem, expondo até tensões presentes:

o mundo acadêmico e as administrações se apresentam como dois âmbitos muito diversos entre si, pelos procedimentos normativos, sistemas de análise, critérios de avaliação e, sobretudo, disposição no enfrentamento de um tema complexo e articulado como a segurança da cidade. a relação frequentemente forçada entre as duas posições, marcadamente distantes, produziu desconfiança nos confrontos de certa teoria abstrata, de uma parte, e esnobismo intelectual, de outra. a ocasião para um confronto crítico resulta, assim, necessária a fim de redimensionar a rigidez de certos comportamentos e possibilitar um diálogo claro e aberto entre dois mundos que, sobre o tema da segurança, são interde- pendentes. (università, 2002, p.1-2.)

essa experiência internacional de constituição de polícia especializada, como afirmamos anteriormente, em prevenção de exploração sexual de mulheres é compartilhada com equipes de assistentes sociais e psicólogas. essas atuam em conjunto com policiais que indicam formas de prevenção de desrespeito a direitos constituídos e de mobilização de comunidades urbanas, como na região norte da itália, onde se encontram veneza, Pádua e outros centros urbanos com intensa presença de turistas.

nesse sentido, especial atenção devemos ter para com o documento “Mo- delli legislative nazionali e governo del fenomeno della prostituzione e della trata nei territori urbani” divulgado no portal citado por esse fórum (Carchedi; Tola, 2006). Mas serão as concepções de sociedade democrática, de igualdade de con- dições de existência e de comunidade urbana ativa, de moradores, que devem se constituir em princípios norteadores da reflexão, no âmbito das pesquisas acadêmicas, assim como das intervenções cotidianas, sob a responsabilidade de agentes públicos de proteção da infância e adolescência femininas (ibidem).

de algum modo, encontramos dificuldades no entrelaçamento de cientistas sociais vinculados a universidades e agentes públicos locais para investigação dos aspectos assistidos junto a meninas, menores de idade, vítimas de abuso sexual, para investigação de um tema tão intrincado e comprometedor quanto o da prostituição.

o abuso sexual deve ser considerado prática de maus-tratos, que indica si- tuações sociais adversas nas famílias das vítimas. a primeira classificação de maus-tratos infantis resultou de pesquisa realizada entre os anos de 1983 a 1986, por cientistas do estado de Missouri, nos estados unidos. realizada em caráter pioneiro por ewigman, Kivkhan e land (1993 apud schintzer, 2011, p.5), com crianças mortas até 5 anos de idade, contribuiu para formular essa primeira defi- nição. o estudo circunscreveu as crianças como vítimas possíveis, prováveis e improváveis; e os maus-tratos como físicos, sexuais e decorrentes de negligência.

Pensamos poder agregar a essa constatação que o abuso sexual se constitui em maus-tratos físicos e psicológicos de uma criança, que pode ser possível, pro- vável, ou improvável. e se ocorre, implica reconhecer que sua família encontra- -se em situação de desamparo, desajuste, desagregação ou transtorno, em processo que envolve um ou vários de seus membros.

dos 75 agentes públicos ouvidos em entrevistas, pudemos extrair que eles trazem as mesmas dúvidas e incertezas que estão presentes em profissionais que a eles se assemelham. nesse contexto, julgamos sensato centrar as pesquisas num território bem próximo das práticas especializadas cotidianas para, num se- gundo momento, pensarmos a constituição de redes sociais de prevenção dessas práticas agressoras da integridade infantil. essa ponderação vem do reconheci- mento do alerta de sheree Toth e Jody Manly, quando afirmaram que as pes- quisas devem envolver o estudo do universo das práticas de maus-tratos e a mobilização de recursos financeiros públicos com vistas a “apoiar o desafio de recrutar e manter próxima uma população que rotineiramente está se confron- tando com múltiplos problemas”. em síntese, dizem ser “necessária [a] am- pliação de investimentos em estudos que correspondam à complexidade da vida das crianças agredidas e de suas famílias” (Toth; Manly, 2011, p.634).

nesse caminho, vem ao encontro uma revisão do processo de atendimento a vítimas de abuso e exploração sexual realizada por equipe brasileira. nela é apre- sentada a dimensão dos serviços prestados, dentre eles “abordagem de rua em situações de exploração infanto-juvenil […] ações de prevenção e promoção de direitos de crianças e adolescentes” em rede (santos, g. et al., 2011, p.96). essa avaliação foi realizada a partir de protocolo de gestão do Centro de referência especializado de assistência social (Creas). Mas esse tipo de abordagem é ímpar, no sentido de restringir-se a experiência a uma capital de estado, Curitiba. o es- tudo destacou a importância de se projetar o atendimento das vítimas, do início ao fim; o início, dado pelo primeiro encontro de agentes públicos com a vítima; o fim, identificado no processo de integração das crianças nas práticas conce- bidas como direitos seus, protegidas por núcleos familiares estruturados, reco-

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nhecidos como unidades íntegras e protetoras da infância e adolescência. isso demanda ampliação dos horizontes da responsabilidade dos agentes públicos envolvidos.

a responsabilidade como intelectuais acadêmicos também se impõe, desde os pesquisadores e estudantes em formação até movimentos de enfrentamento dessa prática indigna, urbana, local e pública. em nossa pesquisa buscamos produ zir, como resultado, a arquitetura de uma rede social de prevenção de deli tos de abuso e exploração sexual, a ser formada nas cidades, pesquisadas ao longo de 2013 e primeiro semestre de 2014. Para tanto, vimos realizando rigo- roso levantamento bibliográfico, nacional e internacional; identificação de con- ceitos e princípios éticos que sedimentem o caminho inicial do trabalho de campo; identificação da solidez, ou da fragilidade, de conceitos apresentados nas referências acadêmicas levantadas, no país e no exterior.

iniciado em agosto de 2011, já avançamos no levantamento de dados sobre bairros e regiões urbanas com elevado índice de vulnerabilidade, através de infor mações oficiais oferecidas pelas unidades administrativas locais. Já entre- vistamos técnicos em serviço social, em atendimento psicológico, profissionais da saúde vinculados a programas locais de prevenção em rede, além de conse- lheiros tutelares e delegadas que presidem a delegacia de defesa dos direitos da Mulher, nas cinco cidades citadas. Também já iniciamos entrevistas com poli- ciais militares e guardas municipais, mulheres e homens.

É relevante registrar que mapeamos as bases bibliográficas indicadas no portal da Capes, como também na base scielo e nas bibliotecas das unidades aca- dêmicas da unesP, usP, unicamp e ufscar. nelas encontramos poucas teses e dissertações disponíveis sobre o tema, nas suas bases eletrônicas ou mesmo na forma de texto impresso. em seguida, nos aproximamos de centenas de refe- rências bibliográficas internacionais através do programa de busca bibliográfica científica temática (scival), disponível na unesP.

dos levantamentos decorreram a identificação de trabalhos acadêmicos e obras publicadas que tratam sobretudo do tema do abuso sexual. no Hemisfério norte, em especial nos estados unidos, o tema é associado à experiência violenta do estupro – rape –, como é concebido na academia científica e na indústria cine- matográfica. essas referências constam da base bibliográfica ampliada do pro- jeto, e será objeto de estudo e análise ao longo de toda a sua vigência.

Mas um tema se destaca e deve ser objeto de reflexão teórica maior: a consi- deração do abuso sexual como delito, sobre o qual há uma expressiva produção associada ao trabalho do jurista eugenio raúl Zaffaroni, professor titular de direi to Penal, na universidade de Buenos aires. ele trata da responsabilidade

dos agentes judiciais como os primeiros que devem configurar os delitos, dentre eles, o de abuso ou exploração sexual de crianças e jovens. É a partir da definição do que é injusto que a responsabilidade torna-se matéria da chamada agência judiciária, que, diga-se, tem poder reduzido de conter e limitar a injustiça prati- cada, uma vez que o Poder Judiciário “deve responder perante o processado e a comunidade, dando conta da forma com que exerce ou administra a sua reduzida quota de poder limitador” (Zaffaroni, 1991, p.264). o poder maior estaria, a nosso ver, na articulação de agentes públicos de distintas instituições do Poder executivo local, envolvendo desde as assistentes sociais até as delegadas da mu- lher e conselheiros tutelares. e, para o início dessa longa jornada, devemos ter clareza das referências metodológicas, dos princípios éticos e sujeitos relevantes. os conselheiros tutelares têm a peculiar função de representar comunidades de moradores, eleitos num processo normatizado e que atuam de forma inde- pendente, sem subordinação a qualquer autoridade pública constituída, seja esta tal local, ou estadual, ou federal. esses conselheiros possuem atribuições es- pecíficas, como se verá a seguir.

Constituído a partir da resolução n. 75, de 22 de outubro de 2001, que forma lizou os parâmetros para a atuação desses agentes públicos comunitários, os conselhos tutelares tiveram nova configuração a partir da resolução n. 139, de 17 de março de 2010. no documento que lhe deu origem, o conselho tutelar é definido no artigo 5o como “órgão público autônomo, no desempenho de suas

atribuições legais [e] não se subordina aos Poderes executivo e legislativo Muni cipais, ao Poder Judiciário ou ao Ministério Público”. foi concebido para ser autônomo perante as autoridades locais constituídas, exatamente aquelas respon sáveis pela proteção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes, em cada cidade brasileira (resolução n. 139/2010, artigo 5o). Também desempe-

nharia “funções administrativas direcionadas ao cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, sem integrar o Poder Judiciário” (artigo 6o). e o mais

importante é a definição da autoridade, e decorrente responsabilidade dos conse- lheiros tutelares, diante de delitos praticados contra crianças e adolescentes: “auto ridade do Conselho Tutelar para aplicar medidas de proteção deve ser enten dida como a função de tomar providências, em nome da sociedade e fun- dada no ordenamento jurídico, para que cesse a ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente”; e responsabilidade “ao tomar conhecimento de fatos que caracterizem ameaça e/ou violação dos direitos da criança e do adoles- cente” recorrendo a procedimentos legais cabíveis e, se for o caso, aplicar as medi das de proteção previstas na legislação. (ibidem, artigo 7o).

Mas os conselhos tiveram nova configuração a partir da resolução n. 139/2010, após o reconhecimento da “inexistência de Conselhos Tutelares em

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cerca de 10% dos municípios brasileiros e graves deficiências no funcionamento da maioria dos já constituídos”. a nova resolução permitiria aos conselheiros a requisição de serviços públicos “nas áreas de educação, saúde, assistência social, dentre outras, com a devida urgência, de forma a atender ao disposto nos artigos 4o, parágrafo único, e 136, inciso iii, alínea ‘a’, da lei n. 8.069, de 1990”. e o que

diz a lei citada?

art. 4o – É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder

Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionali- zação, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo único. a garantia de prioridade compreende:

a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;

c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.