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2 HISTÓRIA DO PROGRAMA DE EDUCAÇÃO EM CÉLULAS COOPERATIVAS

2.4 Projeto Educacional Coração de Estudante

O PRECE surgiu em 1994 com a força de um movimento social, sem rigor formal, sem o peso institucional, mas movediço; informe, sem nome; porém, principalmente, a partir de 1998, foi ganhando uma cara nova, ficando mais formalizado, e se transformando em uma Organização Não Governamental (ONG), nomeada de projeto Educacional Coração de Estudante e, posteriormente, em 2004, recebeu reformulação estatutária e a mudança para outra razão social, nomeado de Instituto Coração de Estudante. Porém, o nome PRECE permanece nas práticas educativas dos seus agentes fundadores e de tantos outros novos agentes que foram se unindo ao grupo pioneiro; e acima de tudo, ele permanece no imaginário das pessoas de Pentecoste, e de alguns municípios vizinhos que tiveram estudantes participando e de outros lugares inimagináveis que receberam a boa influência desse nome, nesses 25 anos de existência do Programa.

Dentro de um contexto em que a educação poderia ser um instrumento para o processo de transformação da desigualdade social em inclusão social dos jovens de origem popular de Pentecoste, foi que Rodrigues; Andrade; Andrade Neto; Bezerra (1999, p. 01) em um trabalho apresentado nos encontros universitários de título “Escola Alternativa”, dizem que o PRECE desenvolvia atividades educativas, com o objetivo geral de proporcionar a jovens e adultos, a oportunidade de terem uma educação de melhor qualidade, possibilitando ao educando, o desenvolvimento de uma consciência crítica para exercerem o seu direito de cidadão.

Eles afirmam que as atividades desenvolvidas eram “aulas interativas, debates, estudos individuais e em grupo, palestras, seminários e eventos culturais”, com vistas a “uma participação ativa do educando, estabelecendo um ambiente interativo em que o mesmo fosse estimulado a pensar, criar e aprender, apropriando-se da cultura produzida e legitimada socialmente”. Ainda apresentaram resultados quantitativos dos primeiros cinco anos que foram seis alunos aprovados em vários cursos da UFC, “fato que alterou de forma substancial a realidade local” o que os fez

terem “novas perspectivas de vida”, destacando ainda que os mesmos passaram a atuar “como professores” dos novos estudantes do projeto. (ibidem).

O líder Manoel, ao falar sobre o PRECE em alguns momentos de reuniões, (figura 9) costumava dizer “estamos contrabandeando educação”, talvez essa expressão significasse impossibilidade, porque era isso mesmo que passava em nossa mente, era como nos sentíamos naquele momento dificil. O sentimento era de não sermos autorizados a trabalhar na educação. Mas esse momento dificil foi passando a medida que fomos ganhando bons resultados nas aprovações dos vestibulares da UFC e ouvíamos vários testemunhos de pais, homens e mulheres que consideravam e consideram ainda hoje, o PRECE como algo de muita importância para as familias desses lugares onde o PRECE esteve ou está.

O PRECE foi e é necessário à juventude que precisava e precisa estudar e se desenvolver na vida, porém, o movimento não conseguiu dar conta de fazer, sozinho tudo o que projetou e sonhou realizar pela juventude pentecostense. Por outro lado, as pessoas enxergavam o PRECE como algo que deveria trabalhar sempre independente do governo e na luta por direitos, muitas vezes, negados por esse. A demanda cresceu numerosamente e sem os recursos necessários, algo que é dever do Estado realizar, foi preciso buscar as parcerias com os setores públicos da área educacional, tema discutido um pouco mais adiante. A (figura 9) compõe o grupo pioneiro em uma de nossas reuniões:

Figura 9 – Agentes Fundadores do PRECE: reunião de gestão na IPI Fortaleza

Fonte: Arquivo do Memorial do PRECE.

Estar envolvido com o PRECE é como embarcar em uma viagem em que acertamos os caminhos, mas, outras vezes, erramos e assim vamos caminhando sempre abertos a novas possibilidades. A experiência começou de uma ideia e se constituiu em um movimento educacional que congregou estudantes, pais, irmãos e irmãs, líderes comunitários, todos unidos, cotidianamente, agindo e partilhando o saber para lograrem o êxito pessoal e social.

Essa união deu mostra de que, quando o poder público não vem cumprindo o seu papel na construção de uma educação de qualidade para a sociedade, dentro de suas diversas culturas, seja do campo, do mar, da serra ou de áreas urbanas; respondendo pela grande diversidade cultural existente em nosso país, a sociedade civil se levanta para fazer o que precisa ser feito e como deseja que as coisas aconteçam.

Na década de 1980, segundo (GOHN, 2005, p.8) ocorreu uma baixa na qualidade da educação pública brasileira e, a partir disso ocorreu “o ressurgimento de novas formas de educação informal através de trabalhos na área da educação popular, e de experiências na área da educação não formal, geradas a partir da prática cotidiana de grupos sociais organizados em movimentos e associações populares” (ibidem). Esse contexto anterior a década de surgimento do PRECE ainda

predominava, especialmente na zona rural como vimos, as deficiências do nível de escolarização da juventude. Percebo que com essa mesma tônica e objetivos, surgiu o PRECE, da inquietude que os tempos requereram dos agentes do campo educacional não formal, em destaque, o campo educacional precista. Compreendo que o PRECE pode ser configurado como um movimento social surgido nesse contexto para responder a uma demanda de jovens populares que estavam nesse grupo que não recebia uma educação de qualidade por estar o país imerso em uma crise educacional que atingia, principalmente, a educação pública.

O PRECE surgiu, de modo revolucionário, distante geograficamente dos olhos da oficialidade das instituições educacionais e se originou dentro do contexto social do problema para o qual foi a solução posteriormente. Gohn (2005, p.16) diz que “a educação ocupa lugar central na acepção coletiva da cidadania. Isto porque ela se constrói no processo de luta que é, em si próprio, um movimento educativo”. Eu teria alguns motivos para sugerir que o PRECE continua sendo um movimento social, educativo, onde nele e em sua construção, fomos aprendendo. Apesar de o seu processo histórico o colocar no âmbito da instituição, ao meu ver, sempre residirá latente uma chama acesa que simboliza o ímpeto presente em um movimento social organizado.

Sustentada pelo que diz a autora, vejo que na história do PRECE, desde seus primórdios, sempre houve a preocupação constante em se garantir cidadania ao público ávido por mudança de vida que, em fileiras, procurava o movimento. Lutar e agir para levar educação para quem precisava e queria e ainda promover o desenvolvimento local sempre foram alguns objetivos do PRECE. Ele buscou alternativas práticas, ajustadas a realidade e viáveis para se manter como uma opção inovadora de inclusão social.

Antes de garantir sua institucionalidade, o PRECE foi um movimento social forte em sua origem e ainda permanece nessa última década, não deixando de mostrar o seu potencial de luta e engajamento. Vale destacar o interesse de parte do grupo em reiniciar ações com caráter de movimento para, novamente, interferir positivamente, com dinamicidade e amplitude nos espaços de luta por direitos negados ao jovem popular. Sobre esse tema urge a necessidade de uma pesquisa mais aprofundada para conhecermos suas raízes e histórias de movimento social organizado. Portanto, o PRECE surgiu como resposta a esse contexto difícil para o jovem que precisava concluir a educação básica e entrar na universidade.

De acordo com Andrade (2014) em 1994, o PRECE se constituiu nesse contexto social como um movimento de educação feito por estudantes, filhos de agricultores, fora da faixa etária

e desprovidos de condições para continuarem seus estudos básicos. Esses jovens ficavam sem rumo diante das adversidades desse espaço distante, sem recursos, assolado pela seca e esquecidos pelo poder público. Esses eram os maiores obstáculos para o avanço deles em sua vida estudantil.

Desse modo, o PRECE procurou solução para os problemas apresentados e buscou novas configurações, criou instituições e fez parcerias públicas ou não para responder a uma demanda crescente e dinâmica. Vi que ele se transformou e caminhou junto com parceiros como a UFC por meio de programas universitários, como as Escolas Populares Cooperativas, e outros, sempre em movimento. Quando se trata de movimento social, como o termo já significa, movimentar-se, nada é imutável, nada é somente uma coisa, tudo pode se transformar, tudo pode se reconfigurar.

Voltando a realidade educacional do contexto da comunidade, tais dificuldades encontradas em Cipó repercutiam em inúmeras outras, sobretudo, na área educacional: analfabetismo, abandono escolar, dificuldades de aprendizagem, alto índice de repetência, pessoas fora da faixa etária escolar, etc. Uma realidade ainda longe de ser modificada, como mostraram os dados de Ximenes (2017). Diante disso, os jovens da localidade, sem perspectivas nos estudos também não encontravam melhores possibilidades profissionais e migravam para as cidades em busca de oportunidades de trabalho. Mais uma vez, Cipó seguia o padrão típico de comunidades problemáticas dos municípios sertanejos que, diante dos problemas citados, a solução encontrada por alguns, foi o êxodo rural que esvaziou o campo e aumentou o volume de pessoas em miséria nas favelas urbanas.

Diante desse quadro desalentador, o PRECE emergiu da união de sete estudantes pioneiros (figura 10), do líder e professor universitário, Manoel Andrade, de mim e do líder comunitário Adriano Andrade, todos com disposição solidária e acolhedora, se posicionaram sempre como líderes e estudantes que tomaram, sob a coordenação de Manoel Andrade, a iniciativa de muitas ações, como sempre fizeram até hoje. Os jovens estudantes, com o mínimo de condições, se reuniram em uma casa de farinha, em grupos de estudo cooperativo e solidário que consistiram em uma alternativa para os que desejavam melhores oportunidades através da educação.

Dessa forma, romperam o ciclo do êxodo rural descontrolado que gera as favelas e os mendigos da cidade. No PRECE, inicialmente, os estudantes foram, pela circunstância do atraso de suas comunidades, orientados a estudarem na capital, porém de forma organizada e com um objetivo pontual que garantia a eles, uma transformação de vida para melhor: a formação

universitária, um processo inclusivo socialmente, que os impulsionaria para a realização profissional. Dessa forma, quando eles passavam no vestibular da UFC, morariam em residências estudantis e se alimentariam no restaurante universitário.

Posteriormente, foram desafiados a retornarem às suas comunidades de origem para ajudarem os outros estudantes do programa que também estudavam em grupo com o sonho de fazerem universidade. A fotografia na (figura 10) mostra a liderança do PRECE constituída a partir de 1994 que, ao entrarem na universidade retornaram para o interior com o objetivo de manter o funcionamento das células de estudo:

Figura 10 – Os sete estudantes fundadores do PRECE (2009)

Fonte: Arquivo do Memorial do PRECE.

A proposta feita pelo professor Manoel consistiu na formação de grupos de estudos onde os jovens se reuniriam, diariamente, e estudariam juntos para se escolarizarem e entrarem na universidade, se assim desejassem. Reuniam-se em células de estudo na casa de farinha desativada, sede dos encontros e a qual servia de moradia para aqueles que viviam distantes de Cipó. Manoel Andrade convidou outros jovens da circunvizinhança de Cipó, mas apenas sete aderiram à ideia, formando, assim, a primeira Célula3 de estudo precista (PRECE, 2014).

3Termo criado por Manoel Andrade para designar grupos de estudo. Segundo ele, o termo trazia uma ideologia da

força da união, da aglomeração com o propósito de crescimento, de multiplicação, assim como a célula do corpo humano. A partir da ideia dele, faço uma metáfora comparativa entre o grupo de estudo e a célula do corpo humano:

A rotina da célula de estudo era bem simples. Durante a semana o grupo se reunia por conta própria, sem nenhum tipo de supervisão de professor. Cada participante ficava responsável por estudar e ensinar para os demais a disciplina que mais gostava de maneira que todos do grupo contribuíam com o pouco que sabiam em um processo de mútua educação. Inicialmente, aos finais de semana, eles contavam com a presença do professor Manoel de quem recebiam o estímulo e apoio para continuarem.

Após a multiplicação da experiência para outras comunidades, o coordenador de célula atuou fortemente. Trata-se de um membro do grupo que estuda, com antecipação, o conteúdo da disciplina escolhida para coordenar no encontro da célula. Ele direcionava o registro de frequência, via o tempo de estudo e se comunicava com os líderes do PRECE para fazer um relato dos estudos. Depois de ter vivido esse processo e refletido sobre essa figura do coordenador de célula, caracterizo ele como um “gestor de célula”.

No começo, os estudantes não conseguiam perceber que havia algo mais, além da conclusão do ensino médio, mas a convivência com o professor Manoel que falava sobre o valor de uma universidade na vida de um jovem, e ainda mais que ele era um exemplo vivo ali no meio deles, fez com que fossem percebendo que poderiam chegar ao nível superior.

Quando o grupo completou dois anos de existência, em 1996, o primeiro estudante Francisco Antonio Alves Rodrigues ingressou na UFC, obtendo o primeiro lugar da segunda fase do vestibular. Essa aprovação triplicou a dose de estímulo que serviu de grande motivação para os demais estudantes e assim foram galgando degraus da vida estudantil com o apoio do movimento PRECE.

A partir daí muitos jovens se interessaram em fazer parte das Células de Estudo do PRECE, aumentando o número de aprovados em universidades. Esses universitários “precistas” tornaram-se multiplicadores da metodologia, pois retornavam aos finais de semana, para

O grupo de estudo pode ser visto nessa metáfora como uma unidade estrutural e funcional onde há uma conexão entre todos no grupo o qual passa por um direcionamento dado pelo coordenador de célula que dá instruções vitais para o bom funcionamento da célula que resulta no aprendizado. Além disso, se algo não vai bem, as células podem reconectar suas ideias tomando outra direção para atingir os objetivos. Assim como o corpo humano, o PRECE é esse corpo composto por muitas células que dão existência a ele. As funções vitais de um organismo ocorrem dentro das células e tal quais os grupos de estudo têm funções vitais que mantêm o sistema PRECE vivo e saudável para fazer o bem à sociedade. Por fim, na célula há uma informação genética que regula todas as outras e como essa, na célula de estudo do PRECE há informações genéticas que se autorregulam as quais são seus princípios: a cooperação, a solidariedade e o protagonismo; essas informações são impressas no código genético de cada célula de estudo. (Fonte: construído pela autora desse trabalho)

acompanharem o desenvolvimento de novas células, que foram surgindo em outras localidades. Eles realizaram a “pedagogia do retorno” que se retroalimentou no espaço precista, permitindo assim, a novos estudantes, a entrada e permanência no programa e, consequentemente, na universidade. Dessa forma, novos retornos se dariam porque nós líderes e estudantes líderes sempre trabalhamos a conscientização da importância do retorno.

Acerca desse momento em que a maioria retornava, o registro mais organizado que fizemos foi o relatório do Instituto Coração de Estudante (2007; 2008), que se constitui em fonte, juntamente com a minha narrativa de vida na experiência, realizando também esse retorno por todos esses 25 anos de existência do Programa.

Como consta no relatório sobre a pedagogia do retorno, a mesma é uma prática que sustentou o PRECE e disseminou os valores precistas, pois retornar é sinal de entendimento do princípio da cooperação e solidariedade precista: “após o ingresso no Ensino Superior, os novos universitários continuaram retornando às suas comunidades e criaram projetos de desenvolvimento comunitário nas mais diversas áreas, de seu interesse”. (ibidem, p.08).

A (figura 11) ilustra um encontro, em 2000, da liderança principal do PRECE quando estavam presentes os seis estudantes pioneiros, Adriano, eu e mais os dois professores do Centro de Educação de Jovens e Adultos (CEJA), de Itapipoca, parceiro do programa, sobre o qual falarei mais adiante. Sobre a figura, vemos que depois de quatro anos de vida do programa, houve um crescimento satisfatório para o tipo de ação educativa não formal, em espaço rural.

Figura 11 – Estudantes do PRECE na casa de farinha (2000)

Fonte: Arquivo do Memorial do PRECE.

A iniciativa dos sete primeiros estudantes ganhou notoriedade nas localidades da região, ficando conhecida em todo o munícipio de Pentecoste e em cidades adjacentes. Devido a isso, houve um movimento de deslocamento de muitos estudantes da sede do município e de outras comunidades para Cipó, que não tinha condições suficientes para acolher a nova demanda, por isso, alguns estudantes foram desafiados a implantarem a metodologia do estudo em célula em suas próprias comunidades, dando origem a partir de 2003 à rede de Escolas Populares Cooperativas, sobre as quais falarei um pouco mais adiante.

Assim, criou-se um novo ciclo; agora de protagonismo, cooperação e solidariedade em um contexto de escassez, no qual os esforços individualistas e solitários tornavam-se ínfimos para efetivas mudanças. Os estudantes do PRECE trouxeram uma fórmula que deu muito certo numa circunstância de pobreza. Essa estratégia valorizou o que havia de potencialidade local, estimulando a formação de um ambiente, onde cada um poderia usufruir de um mútuo benefício.