• Nenhum resultado encontrado

Efeito negativo da convenção de arbitragem e cooperação das cortes

No documento Tutelas de urgência e processo arbitral (páginas 155-159)

5. COMPETÊNCIA PARA AS TUTELAS DE URGÊNCIA ARBITRAIS

5.8. Tutelas de urgência arbitrais e convenção de arbitragem

5.8.1. Efeito negativo da convenção de arbitragem e cooperação das cortes

A existência de convenção de arbitragem acarreta dois efeitos principais: (a) o efeito positivo, que faz com que as partes sejam obrigadas a solucionar litígio existente ou futuro pela jurisdição arbitral; e (b) o efeito negativo, cuja função é afastar a competência das cortes estatais para o conhecimento e solução de litígio existente ou futuro.531 Neste momento interessa a análise do efeito negativo.

Quando se menciona que o efeito negativo da convenção de arbitragem acarreta a incompetência das cortes estatais, isso quer dizer que a competência é afastada para todos os assuntos relacionados àquele litígio que possam surgir?

530. Y

ESILIRMAK, Provisional measures in international commercial arbitration, par. 3-88, p. 108.

531. C

ARMONA, Arbitragem e processo, p. 79; GUERRERO, Convenção de arbitragem e processo arbitral, p. 121 e ss. Conforme indica a doutrina, são “due gli effetti più rilevanti della convenzione arbitrale. Il primo, positivo, concerne l´obbligazione delle parti di sottoporsi alla decisione dell´arbitro in alternativa al giudizio del giudice ordinario; il secondo, negativo, è quello di escludere la giurisdizione del giudice ordinario, e, quindi, di inibire alle parti il ricorso a tale giudice prescrivendo a quest´ultimo, ove adito da una delle parti, di diclinare la propria giurisdizione e di rinviare le parti davanti all´arbitro” (cf. PIERO BERNARDINI, L´arbitrato nel commercio e negli investimenti internazionali, p. 107)

A resposta só pode ser negativa. Não se pode superdimensionar o efeito negativo da convenção de arbitragem, sob pena de distorcer todo o campo de proteção existente para o sistema arbitral.532

Por meio do efeito negativo da convenção de arbitragem, afasta-se o mérito da controvérsia, isto é, a própria crise de direito material.533 As cortes estatais continuam competentes, por exemplo, para medidas assecuratórias de constituição do tribunal arbitral, auxílio aos árbitros durante o processo arbitral, tutelas de urgência em casos excepcionais e, por fim, mas não menos importante, para o controle de eventuais vícios da sentença arbitral a posteriori.534

O objetivo da cooperação da justiça estatal, no que diz respeito às tutelas de urgência arbitrais, é propiciar que haja uma decisão final efetiva do tribunal arbitral, como esperado pelas partes ao estabelecerem a convenção de arbitragem. Em nenhum momento se espera a usurpação da competência do tribunal arbitral.535

Conforme observado por Lord MUSTILL, a cooperação das cortes estatais em circunstancias particulares não é apenas “permitida, mas altamente benéfica”, pois sem essa cooperação pode ocorrer denegação de justiça.536

532. P

OUDRET-BESSON, Comparative law of international arbitration, par. 611, p. 524; CHARLES PRICE, “Conflict with state courts”, p 39; CARLEVARIS, La tutela cautelare nell’arbitrato internazionale, p. 32.

533. De fato, um dos principais efeitos da convenção de arbitragem, em seu aspecto negativo, é afastar a

competência estatal para apreciação do mérito do litígio (cf. FOUCHARD-GAILLARD-GOLDMAN, on

International comercial arbitration, par. 662, p. 401 e ss.). GUERRERO, Convenção de arbitragem e

processo arbitral, p. 126. 534. S

ALLES, Arbitragem em contratos administrativos, p. 37 e ss. CLÁVIO VALENÇA FILHO menciona, com razão, que um “efeito negativo absoluto, capaz de subtrair toda possibilidade de internvenção estatal, inclusive no que tange à tutela de urgência, não atende às expectativas dos operadores do direito que, em verdade, não querem uma arbitragem tão distante do Judiciário” (cf. “Tutela judicial de urgência e a lide objeto de convenção de arbitragem”, p. 159).

535. Nesse sentido, Y

ESILIRMAK aponta que “the unavailability of judicial provisional measures in arbitration proceedings would normally be one of the most important reasons for not choosing arbitration as a dispute resolution mechanism” (cf. Provisional measures in international commercial arbitration, par. 3-26, p. 75).

536. Cf. L

IRA GOSWAMI, “Interim reliefs: the role of the courts”, pp. 112-113, citando decisão de relatoria do Lord MUSTILL no caso Coppee-Lavalin v. Ken-Ren Chemicals and Fertilizers Ltd. (1994) 2 All ER 449. Cf. ainda CARLEVARIS, La tutela cautelare nell’arbitrato internazionale, p. 244.

A Lei Modelo da UNCITRAL, cuja relevância já foi analisada (supra, n. 5.3.1), parece reconhecer a importância de eventuais intervenções das cortes estatais quando, em seu art. 9.º, afirma que “não será incompatível com uma convenção de arbitragem que uma parte, antes ou durante o processo arbitral, solicite de uma corte estatal a adoção de uma medida cautelar, nem que a corte estatal a conceda”.537

Essa interpretação, todavia, não está restrita a países que possuem previsão expressa sobre a compatibilidade da cooperação das cortes estatais para tutelas de urgência, pois decorre do próprio sistema arbitral.538

A França, por exemplo, durante muito tempo não teve nenhuma previsão legal nesse sentido, mas isso não impedia que suas cortes estatais chegassem, por interpretação, a idêntica conclusão, afirmando de forma reiterada que “a competência dos árbitros não impede que um juiz adote medidas cautelares, incluindo medidas executórias”.539

Recentemente, a França modificou a sua legislação arbitral e adotou de forma expressa o entendimento de que a existência de convenção de arbitragem não impede, até o momento de constituição do tribunal arbitral, a parte de solicitar às cortes estatais medidas relativas à instrução ou medidas provisórias ou conservatórias.540 Trata-se de incorporação legislativa de regra consolidada pela prática arbitral francesa.

A despeito de tudo isso, já houve entendimento, nas cortes americanas, com base em interpretação do art. II(3) da Convenção de Nova Iorque, no sentido de

537. Eis a redação original: “It is not incompatible with an arbitration agreement for a party to request,

before or during arbitral proceedings, from a court an interim measure of protection and for a court to grant such measure”.

538. Caso contrário, haveria verdadeira denegação de justiça, conforme lembra, dentre outros, J

OSÉ MIGUEL JÚDICE, “As providências cautelares e a arbitragem: em que estamos?”, p. 4.

539. Citando decisões do Poder Judiciário da França e chegando a essa conclusão, cf. R

OSA ALCAMÍ,

Medidas cautelares en el arbitraje internacional, p. 84 e nota de rodapé n. 110.

540. Eis a redação do art. 1449 do Nouveau Code de Procédure Civile: “L'existence d'une convention

d'arbitrage ne fait pas obstacle, tant que le tribunal arbitral n'est pas constitué, à ce qu'une partie saisisse une juridiction de l'Etat aux fins d'obtenir une mesure d'instruction ou une mesure provisoire ou conservatoire”. Essa previsão aplica-se tanto a arbitragens domésticas quanto internacionais.

que as cortes estatais seriam sempre incompetentes para a concessão de tutelas de urgência arbitrais.541 Apesar de a Convenção não tenha previsão específica sobre o assunto, entendeu-se que a determinação de envio das partes à arbitragem significaria a incompetência das cortes estatais inclusive para tutelas de urgência.542

Esse entendimento, porém, corretamente não prevaleceu.543 A Convenção de Nova Iorque, em nenhum momento dá indício de que haveria incompetência das cortes estatais especificamente para tutelas de urgência arbitrais. Em vez de beneficiar o instituto da arbitragem, esse entendimento equivocado o prejudicaria.544

Restringir totalmente o campo de competência das cortes estatais não aumentará, artificialmente, a efetividade da arbitragem.545 Muito ao contrário: visando à efetividade do processo arbitral, a cooperação das cortes estatais não apenas é possível, mas sim essencial em casos excepcionais.546

541. Eis a redação do artigo da Convenção de Nova Iorque, conforme consta do Decreto n. 4.311 de 23 de

julho de 2002: “O tribunal de um Estado signatário, quando de posse de ação sobre matéria com relação à qual as partes tenham estabelecido acordo nos termos do presente artigo, a pedido de uma delas, encaminhará as partes à arbitragem, a menos que constate que tal acordo é nulo e sem efeitos, inoperante ou inexeqüível”.

542. Em especial, esse entendimento foi adotado, conforme relato de L

EW-MISTELIS-KRÖLL, no paradigmático caso McCreary Tire and Rubber Co. v. CEAT, S.p.A., 501 F.2d 1032 (3 Cir. 1974) (cf.

Comparative international commercial arbitration, par. 23-111, p. 618). Sobre o caso, ainda, cf. GARY BORN, International commercial arbitration, vol. II, p. 2031 e ss.

543. Cf. o também paradigmático caso Carolina Power and Light Co. v. Uranex, 451 F.Supp. 1044 (N.D.

Calif. 1977), no qual a corte estatal entendeu que nada na Convenção de Nova Iorque indicaria essa proibição: “This court … does not find the reasoning of McCreary convincing. As mentioned above, nothing in the text of the New York Convention itself suggests that it precludes prejudgment attachment. The [Federal Arbitration Act] … which operates much like the Convention for domestic agreements involving maritime or interstate commerce, does not prohibit maintenance of a prejudgment attachment during a stay pending arbitration. … There is no indication in either the text or the apparent policies of the Convention that resort to prejudgment attachment was to be precluded.” (cf. transcrição em GARY BORN,

International commercial arbitration, vol. II, p. 2031 e ss.). 544

. FOUCHARD-GAILLARD-GOLDMAN, on International commercial arbitration, par. 1307, pp. 710-711 (“The position taken in McCreary ostensibly upholds the arbitrators' jurisdiction, but in fact it may render the subsequent award ineffective and is plainly wrong. (…) The New York Convention does not contradict that principle, and its authors never intended to prevent the courts from ordering protective measures”).

545. B

ERNARDO CREMADES, “Is exclusion of concurrent courts' jurisdiction over conservatory measures to be introduced through a revision of the Convention?”, p. 110.

546. São relevantes os argumentos apresentados por Lord M

USTILL,na famosa decisão do caso Channel

Não se pode duvidar, assim, que (a) o efeito negativo da convenção de arbitragem afasta apenas o mérito de eventual litígio da competência das cortes estatais; e (b) a despeito da convenção de arbitragem, as cortes estatais possuem competência para ordenar tutelas de urgência quando o tribunal arbitral estiver material ou juridicamente impossibilitado de assim proceder.

No documento Tutelas de urgência e processo arbitral (páginas 155-159)