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Tutela de urgência e terceiros

No documento Tutelas de urgência e processo arbitral (páginas 125-131)

5. COMPETÊNCIA PARA AS TUTELAS DE URGÊNCIA ARBITRAIS

5.5. Limitações materiais e jurídicas à competência dos árbitros

5.5.3. Tutela de urgência e terceiros

Eventual necessidade de tutelas de urgência no que diz respeito a terceiros é questão interessante e também deve ser levada em consideração para estabelecer os limites de atuação do tribunal arbitral.

É amplamente aceito que a arbitragem é mecanismo de resolução de litígios vinculante apenas aqueles que manifestam a sua vontade (consenso) em tal sentido.430 Por isso afirma-se que o processo arbitral possui um intrínseco limite ratione personae e que os árbitros não possuem, em regra, autoridade sobre terceiros.431

Melhor explicando: se a fonte de jurisdição do árbitro é exatamente a manifestação de vontade, sem que esta exista o árbitro não passa de um indivíduo qualquer, cujas ordens ou decisões são juridicamente irrelevantes em relação aqueles que não consentiram com o método de resolução de litígio.432

Na esfera arbitral, portanto, no momento em que se estabelece a convenção de arbitragem, as partes contratantes possuem a liberdade prévia de determinar quem poderá participar do processo arbitral. Embora um terceiro possa ter

430. L

EW-MISTELIS-KRÖLL, Comparative international commercial arbitration, par. 7-3; FOUCHARD- GAILLARD-GOLDMAN, on International commercial arbitration, par. 498, p. 280.

431. Cf., dentre outros, L

EW-MISTELIS-KRÖLL, Comparative international commercial arbitration, par. 23.31, p. 593; FOUCHARD-GAILLARD-GOLDMAN, on International commercial arbitration, par. 1336, p. 726; BLACKABY-PARTASIDES-REDFERN-HUNTER, Redfern and Hunter on international arbitration, par. 7.19, p. 446; GARY BORN, International commercial arbitration, vol. II, p. 1964; CRAIG-PARK- PAULSSON,International Chamber of Commerce arbitration, par. 26.05, p. 460; YESILIRMAK, Provisional

measures in international commercial arbitration, par. 3-24 p. 68; DONALD DONOVAN, “The allocation of authority between courts and arbitral tribunals to order interim measures: a survey of jurisdictions, the work of UNCITRAL and a model proposal”, p. 204; ROSA ALCAMÍ, Medidas cautelares en el arbitraje

comercial internacional, p. 162; CARLEVARIS, La tutela cautelare nell’arbitrato internazionale, p. 10; LIRA GOSWAMI, “Interim reliefs: the role of the courts”, p. 111. Sobre o tema na doutrina nacional, cf. PEDRO BATISTA MARTINS, “Da ausência de poderes coercitivos e cautelares do árbitro”, p. 362; NATHALIA MAZZONETTO, Partes e terceiros na arbitragem, passim.

432. De acordo com D

ONALD DONOVAN, “since an arbitral tribunal's authority depends on the consent of the parties, the arbitrators have no authority over third parties. For that reason, arbitral tribunals will lack the power to order third parties such as banks to act or refrain from acting in relation to certain property, even if that property is the subject matter of the arbitration” (cf. “The allocation of authority between courts and arbitral tribunals to order interim measures: a survey of jurisdictions, the work of UNCITRAL and a model proposal”, p. 204).

interesse jurídico ou econômico em determinada demanda arbitral, esse interesse é em regra irrelevante.433

Não se pretende, com base nas afirmações acima, ignorar elegante debate doutrinário e jurisprudencial existente sobre terceiros na arbitragem, com discussões sobre falsos terceiros, “extensão” subjetiva da convenção de arbitragem,434 desconsideração da personalidade jurídica etc.435 Essas discussões, porém, fugiriam completamente do objeto deste trabalho e, ao final, acabariam por desembocar na questão do consentimento.436

Além da questão dos limites subjetivos do processo arbitral em decorrência da convenção de arbitragem, ainda há o crucial problema da impossibilidade de atingir-se diretamente a esfera jurídica daqueles que não participam do processo arbitral. A ausência absoluta de contraditório impede a legitimidade da decisão arbitral.437

433. Conforme bem anota S

TAVROS BREKOULAKIS: “The principle of procedural party autonomy provides parties with the freedom to determine in their contract the circle of the persons that can participate in the arbitral proceedings. Parties not bound by an arbitration agreement, i.e. third parties, are excluded from the arbitration process. Any legal or financial interest that a third party might have in the dispute between the parties bound by the arbitration agreement is in principle irrelevant” (cf. Arbitration and third parties, p. 5).

434. O vocábulo extensão é utilizado aqui entre aspas porque, na realidade, não se tratar de extensão da

convenção de arbitragem, mas sim da definição de quem realmente é parte. Sobre o assunto, inclusive fazendo a mesma observação, cf. CRISTINA JABARDO, “Extensão” da cláusula compromissária na

arbitragem comercial internacional: o caso dos grupos societários, passim. 435. Sobre o assunto, dente outros, cf. S

TAVROS BREKOULAKIS,Arbitration and third parties, passim;

BERNARD HANOTIAU, Complex arbitrations: multiparty, multicontract, multi-issue and class actions,

passim. 436

. Essa é a conclusão de CARMONA, ao afirmar, categoricamente, que a “convenção arbitral, que produz efeitos contundentes, tem como contrapartida que demonstrar cabal, clara e inequívoca vontade dos contratantes de entregar a solução do litígio (atual ou futuro, não importa) à solução dos árbitros. O efeito severo de afastar a jurisdição do estado não pode ser deduzido, imaginado, intuído ou estendido. O consentimento dos interessados é essencial” (cf. Arbitragem e processo, p. 83).

437. Conforme opinião de C

ARLEVARIS, “l’applicabilità soggettiva della convenzione arbitrale è condizione necessaria, ma non sufficiente, dell’efficacia vincolante del provvedimento cautelare nei confronti di un soggetto, efficacia che richiede tuttavi anche l’effetiva partecipazione al procedimento” (cf. La tutela cautelare nell’arbitrato internazionale, pp. 103-104)

Trata-se, portanto, de dois tipos de terceiros: (a) aqueles que não são partes da convenção de arbitragem; (b) aqueles que, independentemente de serem partes ou não da convenção de arbitragem, não são partes do processo arbitral.438

Por outro lado, é inquestionável que, em determinadas situações, as tutelas de urgência precisarão ter alcance mais amplo do que aquele estabelecido pela convenção de arbitragem para serem efetivas.

É o caso, por exemplo, de pedido de tutela de urgência que envolva alguma ação ou omissão no que diz respeito a garantias bancárias. A instituição financeira, que não é parte da convenção de arbitragem nem do processo arbitral, não está legalmente obrigada a cumprir a decisão dos árbitros.439

Como relatado por ROSA ALCAMÍ, foi isso que ocorreu no caso CCI, laudo n. 5721/1990, no qual o próprio tribunal arbitral se declarou incompetente para determinar à instituição financeira “que negue uma determinada garantia bancária porque se tratava de terceiro alheio à convenção de arbitragem”.440 A autora também relata mais um caso CCI, laudo n. 7889/1994, no qual uma das partes buscou nas cortes estatais tutelas de urgência para assegurar o recebimento de comissões relacionadas à venda de determinados produtos, com o “embargo de depósitos bancários do devedor”. A corte estatal concedeu as medidas. A parte adversa apresentou ao tribunal arbitral pedido de responsabilização da parte autora pelas medidas solicitadas nas cortes estatais, mas esse pedido foi negado pelo tribunal arbitral sob o fundamento de que,

438. É relevante estabelecer esse esclarecimento sobre os termos “parte” e “terceiro” com relação ao

processo arbitral porque, como afirma LIA BATISTA, “não existem partes e terceiros em termos absolutos porque parte só é parte em relação a um todo”. E completa com precisão: “nenhum sentido há em dizer ‘sou parte’. Sempre surgirá a pergunta ‘de quê’?’” (cf. Assistência no processo civil brasileiro, n. 5.6, p. 100).

439

. Conforme observação de BLACKABY-PARTASIDES-REDFERN-HUNTER, especificamente com relação ao exemplo da instituição financeira: “A third party order, for example, addressed to a bank holding deposits of a party would not be enforceable against the bank” (cf. Redfern and Hunter on international

arbitration, par. 7.19, p. 445). 440

como as medidas eram contra terceiros, os juízes estavam legitimados para a sua concessão.441

O mesmo problema ocorre caso o árbitro determine, por exemplo, à junta comercial que se abstenha de registrar determinada alteração de contrato social ou aos órgãos de proteção ao crédito que sustem um protesto.

A efetividade de uma tutela de urgência arbitral acaba sempre limitada quando recai sobre bens ou direitos de terceiros. Na prática, “os efeitos que a decisão arbitral produz sobre a posição de terceiros não são mais do que consequências indiretas do provimento”.442 É o que a doutrina denomina de eficácia reflexa do julgado.443

É exatamente por conta dessa eficácia reflexa que os árbitros poderão conceder tutelas de urgência, embora com grau de efetividade prática supostamente menor, satisfatoriamente efetivas para determinadas situações.444 Com isso não se pretende negar e possibilidade de a parte interessada defender o seu interesse perante as

441

. ROSA ALCAMÍ, Medidas cautelares en el arbitraje comercial internacional, pp. 132-133.

442. C

ARLEVARIS, La tutela cautelare nell’arbitrato internazionale, pp. 100-101. Eis o trecho completo no original: “Tavolta gli effeti che una decisione arbitrale produce sulla posizione di terzi non sono che conseguenze indirette del provedimento, como nel caso di decisione relativa all’esistenza di un’obbligazione dedotta in arbitrato, che necessariamente si ripercuote sulla posizione del terzo garante, o della decisione che accerti la responsabilità dell’assicurato, i cui riflessi coinvolgono gli obblighi del terzo assicuratore”. Essa é a afirmação também de YESILIRMAK “despite the fact that an arbitral tribunal does not have any power, as indicated above, to issue a provisional measure over a guarantor who is not a party to the arbitration agreement, an arbitral decision on the main obligation unavoidably affects the guarantor” (cf. YESILIRMAK, Provisional measures in international commercial arbitration, par. 3-24, p. 69).

443. Conforme explica C

RUZ E TUCCI, em raciocínio aplicável ao processo arbitral, “verifica-se a possibilidade de repercussão menos ou mais intensa da eficácia da sentença ou mesmo da coisa julgada a um terceiro”, denominados terceiros titulares de um interesse de fato ou esses terceiros “sofrem prejuízo jurídico decorrente da eficácia da sentença inter alios, quando são titulares de um interesse incompatível com o objeto da decisão (terceiros juridicamente interessados)” (cf. Limites subjetivos da eficácia da

sentença e da coisa julgada, p. 347). CARMONA, ao falar sobre dificuldades no cumprimento das decisões arbitrais, ressalta que a “decisão arbitral certamente afetará terceiros de forma mais ou menos intensa, de forma que o estudo ampliado da extensão subjetiva da coisa julgada é de rigor para a solução dos problemas que nesse campo inevitavelmente serão criados” (cf. Arbitragem e processo, p. 59). Sobre o assunto, cf. ainda PARENTE, Processo arbitral e sistema, p. 291 e ss.

444. Os efeitos reflexos da sentença, como diz D

INAMARCO, se projetam a terceiros “como consequência natural da vida em sociedade e dos intrincados modos como pessoas e as próprias relações jurídicas interagem e reciprocamente interferem uma nas outras” (cf. Intervenção de terceiros, p. 15). Pode-se dizer que esse raciocínio é integralmente válido para as tutelas de urgência.

cortes estatais, mas simplesmente demonstrar a viabilidade de provimentos arbitrais para algumas situações que envolvam terceiros.

Utilizando-se do mesmo exemplo acima indicado, em vez de a instituição financeira ser ordenada a negar determinada garantia bancária, o tribunal arbitral pode proferir decisão para que a parte se abstenha de executar ou praticar atos que possam ter como consequência a efetivação de determinada garantia bancária, sob pena de sanção pelo descumprimento (v.g., multas coercitivas e responsabilidade por danos e custas processuais).445

Caso haja colaboração da parte afetada pela tutela de urgência proferida (e o dever de colaboração e boa-fé assim o determina), a questão estará resolvida. Aliás, a instituição financeira poderá tomar as precauções devidas e até mesmo recusar o pedido ao tomar conhecimento, por informação do tribunal arbitral ou da parte beneficiada, de que existe essa ordem do tribunal arbitral.446

Com relação ao exemplo da junta comercial ou de órgão de proteção ao crédito, o tribunal arbitral pode ordenar que a parte se abstenha de levar a registro alteração de contrato social ou a protesto determinado titulo de crédito, também sob pena de sanção.

Além disso, não se pode negar a viabilidade de a medida ser deferida contra pessoa jurídica, mas que pessoas físicas sob o controle dessa pessoa jurídica também devam cumprir a decisão arbitral. Ou seja, conforme o caso, a medida pode afetar empregados, funcionários, agentes e representantes no exercício da função.447

445. Existem tópicos específicos neste trabalho sobre a questão das sanções aplicáveis pelos árbitros (infra,

n. 10.2 e ss).

446. R

OSA ALCAMÍ, Medidas cautelares en el arbitraje comercial internacional, pp. 134-135.

447. Y

ESILIRMAK, Provisional measures in international commercial arbitration, par. 3-24, p. 69. GARY BORN,embora reconhendo a excepcionalidade, defende inclusive hipótese em que a tutela de urgência é concedida contra a sociedade controladora para que esta emita ordem para cumprimento pela sociedade controlada: “a corporate entity could be ordered to direct its subsidiary to take certain steps (e.g., return or preserve specified property, deliver or safeguard funds). Such orders test the limits of arbitral powers, but, in appropriate cases, where necessary to accomplish justice, a tribunal should be prepared to issue them” (cf. International commercial arbitration, vol. II, p. 1965).

Obviamente que, em caso de descumprimento da ordem, a parte é quem será responsabilizada (infra, n. 10.2).448

Como se pode perceber, os argumentos aqui expostos, com relação ao processo arbitral, divergem de modo substancial da forma como o mesmo fenômeno é visto sob a ótica do processo estatal. Por mais que as decisões judiciais devam respeitar os limites subjetivos da demanda, todos possuem o dever de não criar embaraços às determinações dos juízes.

O Código de Processo Civil estabelece, no seu art. 14, inc. V, que são “deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo (...) não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final”. Com essa ampla redação, explicitou-se, no processo estatal, o dever de colaboração que deve haver entre todos os participantes para que o processo alcance a sua finalidade de justa eliminação do litígio.449 Não se pode esquecer que o dever de “não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais” refere-se a “qualquer modalidade de tutela jurisdicional e diz respeito tanto a decisões antecipatórias quanto finais”.450

Em razão de previsão expressa do art. 341 do Código de Processo Civil, o terceiro também possui a obrigação de colaborar com o Poder Judiciário para, por exemplo, exibir coisa ou documento que esteja em seu poder.451

448. A título de exemplo, não se pode esquecer que o Código Civil, em seu art. 932, dispõe sobre a

responsabilidade civil do empregador por atos de seus empregados no exercício do trabalho ou em razão dele. Essa responsabilidade, como cita SERGIO CAVALIERI FILHO, é objetiva (cf. Programa de

responsabilidade civil, n. 9.3, p. 38).

449. Sobre o dever de colaboração sob a perspectiva do processo estatal, mas que pode ser utilizada de

forma semelhante no processo arbitral, cf. MITIDIERO, Colaboração no processo civil, p. 69 e ss.

450

. BEDAQUE, Código de Processo Civil interpretado, p. 54. BARBOSA MOREIRA, ao lecionar especificamente sobre tutelas mandamentais proferidas no processo estatal, afirma que “Em certos casos, bastará ao julgador dirigir a ordem a auxiliares do juízo; noutros, terá de endereçá-la a algum órgão da Administração Pública, competente para executar o ato (v.g., interditar estabelecimento industrial ou comercial). Não fica excluída, porém, a hipótese de determinação a terceiro, pessoa física ou jurídica de direito privado (por exemplo: empresa jornalística, de radiodifusão ou de televisão, à qual se ordene suspender a publicação ou a transmissão de anúncio encomendado pelo réu” (cf. “A sentença mandamental: da Alemanha ao Brasil”, pp. 67-68).

451

O mesmo não ocorre com árbitros. Se determinado documento, de interesse das partes no processo arbitral, estiver em poder de terceiros, o árbitro até pode pedir a sua colaboração, mas o descumprimento da medida ordenada não lhe acarretará nenhuma consequência direta.452

Em resumo, na esfera arbitral, a despeito de notadamente existir o dever de colaboração, este está limitado aqueles que concordaram com o método de resolução de litígios, pois o poder jurisdicional dos árbitros advém do consentimento das partes. Caso um terceiro venha a ter a sua esfera jurídica atingida por decisão arbitral, poderá utilizar-se dos mesmos mecanismos regulares de defesa que teria caso a decisão fosse de um juiz, exercendo os seus interesses perante a via estatal.453

No documento Tutelas de urgência e processo arbitral (páginas 125-131)