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CAPÍTULO VI: EFEITO DO TRATAMENTO ORAL COM EXTRATO AQUOSO DAS FOLHAS DE Jatropha gossypiifolia FRENTE À TOXICIDADE

CONCLUSÃO GERAL

5. EFEITOS SISTÊMICOS DO ENVENENAMENTO BOTRÓPICO

5.1 Efeitos na hemostasia sanguínea e hemorragia sistêmica

Os efeitos hemostáticos são os mais comuns e característicos efeitos sistêmicos após um acidente botrópico. Muitos pacientes apresentam apenas sintomatologia leve, limitando-se a sangramentos no local da picada ou em sítios de canulação. No entanto, alguns pacientes podem apresentar quadro mais grave, caracterizado por sangramento espontâneo nas gengivas, no trato gastro-intestinal e/ou genito-urinário, nos pulmões, na conjutiva ocular e no cérebro, sendo o sangramento craniano frequentemente fatal (MADUWAGE; ISBISTER, 2014; SLAGBOOM et al., 2017). A hemorragia sistêmica é um dos responsáveis pela hipovolemia, hipotensão, choque cardiovascular e graves acidentes cerebrovasculares nas vítimas, o que faz da hemorragia sistêmica uma das mais graves manifestações em envenenamentos botrópicos graves (GUTIÉRREZ; ESCALANTE; RUCAVADO, 2009).

Esses efeitos ocorrem principalmente como consequência de distúrbios na coagulação sanguínea, como resultado de um processo complexo denominado coagulopatia de consumo induzida por peçonha (VICC) (SLAGBOOM et al., 2017). A VICC, uma síndrome semelhante à coagulação intravascular disseminada (CIVD), é caracterizada por baixos ou quase indetectáveis níveis de fibrinogênio plasmático, resultando em incoagulabilidade sanguínea. SVMPs e SVSPs são as principais toxinas ofídicas responsáveis por essa síndrome, podendo exercer seu efeito agindo como enzimas semelhantes à trombina (SVTLEs) ou como enzimas fibrinogenolíticas, além de ativarem fatores da coagulação ou atuando diretamente sobre plaquetas (KORNALÍK, 1985; SAJEVIC; LEONARDI; KRIŽAJ, 2011). Consequentemente, pacientes sofrendo com VICC apresentam, além do quadro de depleção dos níveis de fibrinogênio, deficiências de diversos fatores da coagulação devido ao seu consumo e trombocitopenia (SLAGBOOM et al., 2017). Toxinas afetando a hemostasia e/ou a função plaquetária, em geral, por si só não são hemorrágicas. Entretanto, a coagulopatia produzida por essas toxinas potencializa o sangramento sistêmico, principalmente no contexto do dano vascular induzido por SVMPs (GUTIÉRREZ et al., 2016).

SVTLEs tratam-se de SVSPs detentoras de atividade semelhante à trombina, no entanto, apenas no que diz respeito à sua capacidade de coagular o fibrinogênio, uma vez que SVTLEs geralmente não ativam o Fator XIII, o que resulta na formação de um coágulo de fibrina anormal, extremamente friável e quebrável, composto de pequenos polímeros não estabilizados pela ligação intercruzada catalisada pelo Fator XIII, facilmente susceptível ao sistema fibrinolítico (MARKLAND, 1998; SAJEVIC; LEONARDI; KRIŽAJ, 2011; ULLAH et al., 2018). Ao contrário da trombina, as SVTLEs geralmente liberam apenas um único tipo de fibrinopeptídio (A ou B) (HUTTON; WARRELL, 1993). Inibidores da trombina, como a antitrombina, heparina e hirudina geralmente não inibem SVTLEs (SAJEVIC; LEONARDI; KRIŽAJ, 2011). SVTLEs agem in vitro com pró-coagulantes convertendo o fibrinogênio em fibrina, enquanto que in vivo causam quadro defibrinogenante por meio de coagulopatia de consumo (KORNALÍK, 1985; STOCKER; FISCHER; MEIER, 1982). SVTLEs, juntamente com as enzimas fibrinogenolíticas, são as principais toxinas responsáveis pelo aumento no tempo de coagulação sanguínea observado em pacientes picados por serpentes (BRASIL, 2001; KINI; KOH, 2016; MARKLAND, 1998; SAJEVIC; LEONARDI; KRIŽAJ, 2011).

Enzimas fibrinogenolíticas clivam geralmente as regiões C-terminais das cadeias Aα, Bβ e γ do fibrinogênio, isto é, em sítios diferentes dos que a trombina age, fazendo com que o fibrinogênio se torne incoagulável e contribuindo para a coagulopatia e distúrbios hemorrágicos. Dessa forma, contrariamente às SVTLEs, as enzimas fibrinogenolíticas não formam fibrina como resultado da ação proteolítica sobre o fibrinogênio (SWENSON; MARKLAND JR, 2005). A maioria das enzimas fibrinogenolíticas são SVMPs e apenas uma pequena parcela trata-se de SVSPs. Algumas SVMPs fibrinogenolíticas também exibem atividade fibrinolítica, sendo, portanto, denominadas enzimas fibrin(ogen)olíticas (GUTIÉRREZ; ESCALANTE; RUCAVADO, 2009; KINI; KOH, 2016).

Proteases ativadoras de fatores da coagulação, que ao ativarem zimogênios de fatores específicos acabam acelerando a formação de coágulos, são frequentemente detectadas em peçonhas ofídicas (OUYANG; TENG; HUANG, 1992; SAJEVIC; LEONARDI; KRIŽAJ, 2011). Tais toxinas contribuem fortemente para o quadro de VICC pelo consumo exarcebado dos fatores da coagulação fisiologicamente disponíveis via sua ativação contínua (SLAGBOOM et al., 2017). Enzimas ativadoras de Fator V, X, XI e XII, bem como ativadores da protrombina, já foram identificados em peçonhas ofídicas (KINI, 2005; MARKLAND, 1998). De forma geral, diferentes SVSPs agem em diferentes zimogênios da coagulação sanguínea, enquanto SVMPs agem principalmente sobre o Fator X e a protrombina, sendo em sua maioria P-III SVMPs (KINI; KOH, 2016).

Diversas toxinas (tais como algumas SVMPs, CTLs e desintegrinas) são conhecidas por agirem sobre plaquetas, sendo capazes tanto de induzir a agregação plaquetária (por exemplo, via ativação mediada por fator de von Willebrand ou colágeno), quanto de inibi-la (por exemplo, bloqueando receptores de integrinas na superfície de plaquetas) (SLAGBOOM et al., 2017). Ambos os efeitos contribuem para o sangramento sistêmico através da depleção dos níveis de plaquetas funcionais, o que é visto clinicamente nos pacientes como um marcante quadro de trombocitopenia (SLAGBOOM et al., 2017). Os mecanismos envolvidos na trombocitopenia induzida por peçonhas botrópicas podem variar de acordo com a peçonha estudada, porém, é provável que o dano microvascular induzido por SVMPs promova agregação plaquetária, com consequente sequestro de plaquetas da corrente sanguínea para os microvasos afetados (GUTIÉRREZ; ESCALANTE; RUCAVADO, 2009). Além disso, SVMPs são capazes de inibir a interação de plaquetas com o colágeno e/ou fator de von Willebrand através de vários mecanismos, como por exemplo, ligando-se tanto aos ligantes como aos receptores nas plaquetas, contribuindo, assim, para o sangramento sistêmico (KAMIGUTI, 2005). Desintegrinas, bem como domínios dis-like de P-III SVMPs processadas proteoliticamente, são capazes de se ligar a integrinas, impedindo assim a ligação do fibrinogênio às plaquetas e inibindo a agregação plaquetária (SLAGBOOM et al., 2017). CTLs afetam a função plaquetária inibindo ou ativando agregação plaquetária pela sua interação com fator de von Willebrand ou receptores de colágeno (LU et al., 2005).

As SVMPs são as principais responsáveis pelos quadros hemorrágicos produzidos em envenenamentos botrópicos e, em geral, P-III SVMPs apresentam maior potencial hemorrágico que P-I SVMPs, devido a presença de exosítios nos domínios adicionais das P- III SVMPs, que permitem a ligação dessa classe a alvos da lâmina basal (SLAGBOOM et al., 2017). Por não sofrerem inibição pelo inibidor proteolítico plasmático α2-macroglobulina (contrariamente às P-I SVMPs), as P-III SVMPs conseguem atingir a circulação sistêmica, causando danos na microvasculatura de diferentes órgãos. Além disso, P-III SVMPs são capazes de agir sobre a agregação plaquetária, o que contribui para o forte sangramento sistêmico (GUTIÉRREZ; ESCALANTE; RUCAVADO, 2009).