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R EGIME DA PRODUÇÃO DESEJANTE E A LÓGICA DOS OBJETOS PARCIAIS

A UNIVOCIDADE DA PRODUÇÃO DESEJANTE A PARTIR DE UMA LÓGICA DOS FLUXOS

2.3 R EGIME DA PRODUÇÃO DESEJANTE E A LÓGICA DOS OBJETOS PARCIAIS

No regime da produção desejante, o funcionamento das sínteses pode ser explicitado pela descrição dos mecanismos de operação das ―máquinas desejantes‖21

, um dos conceitos medulares de O anti-Édipo. Para mergulhar no coração das máquinas e nessa estranha linguagem que as conceitua, podemos partir da leitura singular que Deleuze e Guattari fazem do conceito psicanalítico de objetos parciais, cuja grande descoberta eles atribuem a Melanie Klein. Por que privilegiar esse caminho? Porque, como veremos, nossos autores subvertem o estatuto psicanalítico dos objetos parciais em favor de um pensamento das multiplicidades.

Os primeiros delineamentos do conceito de objetos parciais já se encontram em Freud, ainda que ele não o tenha assim denominado e formalizado. Vemos bem

21 Vale lembrar que o conceito de máquina foi, originalmente, exposto por Guattari em ―Máquina e estrutura‖, texto integrante da obra Psicanálise e transversalidade (1972). Desde esta produção teórica preliminar, o conceito de máquina aparece como um importante operador que permite pensar o desejo em termos de produção, fora do registro de representações que determinariam a ação dos sujeitos.

isso quando Freud (1992a, p.362), já em seu Projeto de psicologia científica (1895), descrevia a ―vivência de satisfação‖ [Befriedigungserlebnis] do bebê. Trata-se de um tipo de vivência originária, própria ao ―processo primário‖ de constituição do aparelho psíquico. Freud partia da hipótese de que as exigências da vida confrontam o bebê, primeiramente, sob a forma de estímulos endógenos provenientes das necessidades somáticas. O excesso de excitações internas criadas por tais necessidades perturba o estado de repouso do bebê, produzindo ―alteração interior‖ ou ―expressão emocional‖ como forma de ―descarga‖ por via motora, por exemplo: o choro e o espernear de um bebê com fome. O problema é que, quando as excitações provêm de necessidades internas e não por ação de uma força externa que produz um impacto momentâneo, o estímulo endógeno persiste restabelecendo a tensão e o ―desprazer‖. Isso porque o aparelho psíquico, nesse estágio de desenvolvimento, é incapaz de produzir uma ―ação específica‖ para suprimir um estímulo endógeno (Ibidem, p.362); o bebê necessita do auxílio externo para pôr fim ao estímulo e chegar, então, à ―vivências de satisfação‖. Esta é a marca fundamental do ―estado de desamparo‖ humano. Seguindo nosso exemplo, podemos dizer que a fome seria, então, satisfeita pelo leite vindo do seio.

Na Interpretação dos sonhos (1900), Freud retoma o problema da ―vivência de satisfação‖ e ressalta que a noção de ‗satisfação‘ não se reduz à satisfação da necessidade enquanto supressão de tensão e desprazer. A conexão da boca do bebê com o seio da mãe é, sobretudo, uma experiência de ―prazer‖. Além disso, a vivência de satisfação, diz Freud (1991a, p.557), evoca um componente essencial, a saber: ―a aparição de uma certa percepção‖, cuja ―imagem mnêmica permanece, daí em diante, associada ao traço que deixou na memória a excitação produzida pela necessidade‖. Estabelece-se, então, uma conexão entre este ‗traço‘ ou vestígio que a excitação endógena deixou na memória, neste caso a fome, e a ‗imagem mnêmica‘ da amamentação que afastou a tensão e produziu prazer. Quando uma necessidade interna reaparece, a hipótese freudiana é a de que ―surgirá de imediato um impulso psíquico que buscará investir novamente a imagem mnêmica daquela percepção e produzir outra vez a mesma percepção, vale dizer, na verdade, restabelecer a situação da satisfação primeira‖ (Ibidem, p.557). Esse ‗impulso psíquico‘ que busca a experiência originária de uma satisfação real é o que Freud chama de ―desejo‖. E, nesse sentido, é a ativação do desejo que produz a

percepção ligada à experiência de satisfação, num movimento de repetição alucinatória. Em outras palavras, o bebê ―alucina‖, de certa forma, os objetos ‗perdidos‘ que outrora estavam ligados às vivências de satisfação. Tendo isso em vista, Laplanche e Pontalis (2001, p.531) concluem que a concepção freudiana de desejo ―tem efetivamente a sua origem numa procura de satisfação real, mas constitui-se segundo o modelo da alucinação primitiva‖.

Sob a ótica da teoria da libido, desenvolvida na Introdução ao narcisismo (1914), Freud observa que as primeiras vivências de satisfação são experimentadas com ―as pessoas encarregadas da nutrição, cuidado e proteção da criança‖; estas tornam-se ―os primeiros objetos sexuais: são, sobretudo, a mãe ou seu substituto‖ (FREUD, 1992b, p.84). Portanto, dentro da perspectiva freudiana, a criança se relaciona, desde as primeiras relações objetais, com pessoas globais, isto é, a mãe ou quem a substitui desempenhando a função materna.

O que Karl Abraham, psicanalista e discípulo de Freud, percebeu é que, no interior de uma perspectiva psicogenética do desenvolvimento das relações objetais, esses objetos com os quais o bebê se relaciona nas suas primeiras vivências de satisfação não são ainda representações de pessoas globais, isto é, ―objetos totais‖ ou completos; são, antes, ―objetos parciais‖ (seio, excrementos, olhar, voz etc.), uma vez que se referem a representações de partes de corpos introjetados pelo bebê. A relação com os objetos parciais estaria, segundo Abraham, na base de um complexo processo de incorporação do objeto total (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p.531).

Melanie Klein segue o excurso aberto por Abraham situando os objetos parciais na ―posição esquizoparanoide‖ e indicando sua função numa dialética das fantasias, marcada por pares de oposições qualitativas como ―objeto bom/objeto mau‖, introjeção/projeções. Todavia, na ótica de Klein, os objetos parciais não pertencem a uma etapa específica do desenvolvimento das relações objetais. Para ela, mesmo depois de estabelecidas as representações de objetos totais, os objetos parciais continuam desempenhando um papel fundamental (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p.526). O problema é que, segundo Deleuze e Guattari (AOE, 1972, p.52), Klein ainda se manteve enredada numa ―concepção idealista do objeto parcial‖, na medida em que o pensou como ―fantasma‖ e conservou o ―ponto de vista do todo, das pessoas globais e dos objetos completos‖ e, por isso, não percebeu que a ―lógica dos objetos parciais‖ traz em seu bojo elementos fundamentais para

dinamitar toda pretensão de encerrar o processo de produção das máquinas desejantes num esquema representativo edipiano (pai – mãe – eu).

Mas como explicar que ela [Melanie Klein] deixa escapar, todavia, a lógica desses objetos? É que, em primeiro lugar, ela os pensa como fantasmas, e os julga do ponto de vista do consumo [consommation], não de uma produção real. Ela indica mecanismos de causação (assim a introjeção e a projeção), de efetuação (gratificação e frustração), de expressão (o bom e o mau), que lhe impõem uma concepção idealista do objeto parcial. Ela não o liga a um verdadeiro processo de produção, que seria o das máquinas desejantes. Em segundo lugar, não se desembaraça da ideia de que os objetos parciais esquizo-paranóides remetem a um todo, seja este original numa fase primitiva, seja por vir na posição depressiva ulterior (o Objeto completo). (AOE, 1972, p.52-53).

A contrapelo das posições kleinianas, Lacan concebe os objetos parciais longe das perspectivas psicogenéticas das relações objetais. É a elaboração do conceito de ―objeto a‖ que evidencia o tratamento lacaniano dos objetos parciais, fora do campo da representação. Segundo Lacan, os ―objetos a” são também ―fragmentos do corpo‖ (seio, excremento, olhar, voz), ou seja, objetos que não tendem logicamente para uma integração ulterior, como numa representação global de pessoa. Todavia, ressalta Safatle (2006, p.202), Lacan compreende os objetos parciais não no ―sentido representativo da palavra objeto‖, mas como uma ―forma

relacional encarnada pelo tipo de ligação afetiva do sujeito ao seio, à voz, ao olhar

etc‖. O sujeito, não procura, por exemplo, o seio como objeto representado, mas o ―modo de relação‖ que liga seu desejo ao seio. O que nos explica por que nunca se deseja pessoas globais ou objetos completos, mas os objetos a que portam como um referencial latente. Para Lacan, uma pessoa é suporte de ‗formas relacionais‘ que sustentam o movimento do desejo; donde ele dirá que ―o a é causa, causa do desejo‖ (LACAN, 2005, p.307). O desejo, portanto, é causado pelas formas do a, isto é, as formas relacionais afetivas representadas22 pelos objetos (oral, anal, fálico, olhar e voz) nos diferentes estágios de constituição do sujeito (Ibidem, p.320).

A despeito das variadas formulações que o conceito recebeu ao logo da obra lacaniana23, Deleuze e Guattari salientam que, no interior da ―admirável teoria do

22

Considerando esse aspecto representativo, Guattari chega a dizer, em seus Écrits pour L‟anti- Oedipe (2004, p.214), que ―o ‗a‘ de Lacan não é ―causa do desejo‖ como ele repete, mas representação do desejo‖. Daí a necessidade de uma ―interpretação maquínica do ‗a‘ lacaniano‖. 23 No que se refere às distintas conceptualizações lacanianas do ―objeto a‖, cf. MIJOLLA, Alain. Dicionário internacional de psicanálise. Trad. Álvaro Cabral. Rio de janeiro: Imago, 2005.

desejo em Lacan‖, o objeto a situa-se num polo que ―define o desejo em termos de uma produção real, ultrapassando qualquer ideia de necessidade ou fantasma‖, diferentemente do polo no qual o desejo ainda se define ―em relação ao ‗grande Outro‘ como significante, que reintroduz uma certa ideia de falta‖ (AOE, 1972, p.34). O objeto pequeno-a concerne, portanto, a esse polo do desejo que não se deixa representar, nem se inscreve completamente numa dimensão estrutural, a qual remete todas as produções do desejo a um significante despótico – o falo. Na verdade, dizem os autores, ―o objeto a irrompe [fait irruption] no seio do equilíbrio estrutural à maneira de uma máquina infernal, a máquina desejante‖ (AOE, 1972, p.43). Isso porque ele diz respeito à ―inorganização real do desejo‖ que forma o avesso da estrutura (AOE, 1972, p.435). Para alçar-se a esse plano, como bem percebeu Serge Leclaire, citado por Deleuze e Guattari (AOE, 1972, p.521), seria preciso ―‗conceber um sistema cujos elementos estão ligados entre si precisamente pela ausência de todo liame, e entendo por isso todo liame natural, lógico ou significativo‘‖, ―‗um conjunto de puras singularidades‘‖.

É isso o que autores de O anti-Édipo incorporam da teoria lacaniana: o desejo definido em termos de uma ―produção real‖, na qual o conceito de objeto a evidencia a dimensão ―inorganizada‖ e ―maquínica‖ de um desejo que não se reduz nem se subordina à ―organização simbólica da estrutura‖. Deleuze e Guattari não só assimilam esta dimensão como a radicalizam em proveito de um campo transcendental sem sujeito, ou melhor, de um ―inconsciente transcendental‖ (AOE, 1972, p.89). Vejamos, doravante, como essa concepção renovada de inconsciente é criada a partir da descrição que eles fazem acerca da operatividade ―máquinas desejantes‖ e do sistema de ―cortes-fluxos‖ que elas implicam.