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S IMONDON : EM DIREÇÃO A UMA CORPOREIDADE MATERIAL INTENSIVA

A UNIVOCIDADE DA PRODUÇÃO DESEJANTE A PARTIR DE UMA LÓGICA DOS FLUXOS

2.6 S IMONDON : EM DIREÇÃO A UMA CORPOREIDADE MATERIAL INTENSIVA

Em sua resenha da obra O indivíduo e sua gênese físico-biológica (1964), Deleuze (2008, p.117) reconhece o grande mérito de Simondon no tocante à criação de uma ―teoria profundamente original da individuação‖. O princípio ontogenético que baliza tal teoria parte da premissa de que o indivíduo não é dado. De acordo com Simondon, desde Platão e Aristóteles24, as aplicações do ―esquema hilemórfico‖

24Como assinala Orlandi, ―numa resumida e abusiva história de conceitos, a individuação aparece- me como problema explícito quando a questão da realidade do ser se contrai, se encolhe numa viva atenção ao individuo, ao ente que se apresenta como dado em sua imediatidade, este cristal, este vegetal, esta mulher ou esta voz de cristal em Gal. Cada um desses entes, pensado como essência inferior em Platão ou como substância primeira em Aristóteles, fundamento e sujeito real dos

supõem uma ―sucessão temporal‖, em que se parte do ―princípio de individuação‖ para chegar ao indivíduo constituído, sem tematizar o que se passa nesse entremeio que concerne à ―operação de individuação‖. Simondon se empenha justamente nessa ―operação‖, isto é, ―nesse intervalo, nesse meio, nessa zona obscura, um entremeio que certa tradição teria maltratado em suas maneiras de ligar o indivíduo pronto e princípio de individuação‖ (ORLANDI, 2015, p.76).

Essa operação de individuação remete à ―condição prévia da individuação‖, qual seja, ―a existência de um sistema metaestável‖. Este sistema define-se essencialmente pela ―existência de uma disparação [disparation]‖. Quer dizer, em todo sistema metaestável ―existe ao menos duas ordens de grandeza, de duas escalas de realidade díspares, entre as quais não existe ainda comunicação interativa‖ (DELEUZE, 2008, p.118). Nesse sentido, o sistema implica uma ―diferença fundamental‖ cuja existência se dá como ―energia potencial, como

diferença potencial repartida em tais ou quais limites‖ (Ibidem, p.118). Daí a

distinção que Simondon faz entre singularidade e individualidade. O metaestável é definido como ―ser ´pré-individual‘, perfeitamente provido de singularidades que correspondem à existência e à repartição dos potenciais [...]. Singular sem ser individual, eis o estado do ser pré-individual. Ele é diferença, disparidade, disparação‖ (Ibidem, p.118). É isto que constitui a primeira condição da individuação ou o ―primeiro momento do ser‖.

Ao proceder a partir desta primeira condição, a individuação aparece como advento de um ―novo momento do Ser‖. Deleuze analisa este ―novo momento‖ com base em algumas características fundamentais: em primeiro lugar, Simondon considera que – diferentemente do primeiro momento do ser – agora é estabelecida a ―comunicação interativa entre as ordens díspares de grandeza ou de realidade‖. A individuação, nesse sentido, consiste no processo que ―atualiza a energia potencial ou integra as singularidades‖ (Ibidem, p.118-119).

Simondon pensa esse segundo momento a partir da categoria do ―problemático‖. Considerando o ―sistema metaestável‖ no qual um indivíduo é

predicados, foi considerado como indivíduo pronto, como individuum, como não-dividido, como atomon‖ (ORLANDI, 2015, p.76).

tomado no exercício de sua própria individuação, deve-se perguntar pela ―ação‖ e pelo ―problema colocado pelos díspares‖ (ORLANDI, 2015, p.78). Dá-se que o campo de singularidades pré-individuais é um ―sistema objetivamente problemático‖, no qual este segundo momento do ser, ―resolve25

o problema posto pelos díspares,

organizando uma dimensão nova na qual eles formam um único conjunto de grau superior‖ (DELEUZE, 2008, p.119)26

. Nas palavras de Orlandi (2015, p.79), a ―operação de individuação‖ consiste numa espécie de ―passagem que resolve, na composição do indivíduo, um campo problemático pré-individual, campo distendido na agitação dos díspares‖.

Esse processo de resolução acopla, com efeito, o ser pré-individual sem fases (também chamado de ―reserva‖) ao ser individuado ou ―ser fasado‖27

(resultante da ―operação de individuação‖) (DELEUZE, 2008, p.119-120). Não se trata de dois seres, mas de um mesmo ser duplo. Nessa passagem do ser desprovido de fases ao ser fasado, há ―como que uma barreira, mas também, necessariamente, continuidade, porosidade‖ incessante. Sendo assim, ―o indivíduo ‗fasado‘ não reabsorve a reserva nem a abole, esta permanece e coexiste com ele, inclusive como um excesso ali presente e disponível‖ (PELBART, 2013, p.58). O indivíduo permanece mergulhado na realidade pré-individual, o que o torna um ―ser defasado e polifasado‖ (DELEUZE, 2008, p.119-120). Portanto, ao acoplar o ser a si mesmo, identificando individuação e devir do ser, Simondon mostra que o indivíduo nunca está completo; pelo contrário, trata-se de ―um precário, mutante e mutagênico, revestimento de uma individuação que se agita por ser ‗organização de uma

solução‘‖ (ORLANDI, 2015, p.79). Por essa razão, Deleuze (2008, p.121) insistirá

25 Segundo a leitura deleuziana, Simodon concebe esta ―resolução‖ de duas maneiras complementares, a saber: como ―ressonância interna‖ e como ―informação‖. A ―ressonância interna‖ diz respeito ao ―‗modo mais primitivo da comunicação entre realidades de ordens diferentes‘‖; por outro lado, a ―informação estabelece uma comunicação entre dois níveis díspares, um definido por uma forma já contida no receptor, o outro definido pelo sinal trazido do exterior‖ (DELEUZE, 2008, p.119).

26 A individuação de um cristal (―individuação física‖), por exemplo, se faria fisicamente pela ―resolução de uma diferença de potencial‖ própria a um sistema problemático (SAUVAGNARGUES, 2006, p.88).

27 Pelbart (2013, p.58-62) chama a atenção para o ―sentido físico-químico‖ da noção simondoniana de ―fase‖. Falar em ser ―sem fases‖ significa falar numa ―parte homogênea com limites definidos e que pode ser separada das demais partes constituintes do sistema heterogêneo‖. Todavia, esse momento do ser não pode ser inscrito no domínio da representação, já que o ―pré-individual‖ se caracteriza por ser ―informado‖, ―irrepresentável, invisível e indeterminado‖. É a ―operação de individuação‖ que torna o ―ser fasado‖, isto é, ―com forma, estrutura e coerência‖.

que, na ontologia de Simondon, ―o Ser nunca é Uno: pré-individual, ele é mais que um metaestável, superposto, simultâneo a si mesmo; individuado, ele é ainda múltiplo porque ‗polifasado‘, ‗fase do devir que conduzirá a novas operações‖.

A ontologia simondoniana, tal como Deleuze a analisa, abre um caminho fecundo para explorar a noção de uma corporeidade material intensiva anterior ao processo de individuação. Ao adentrar nessa ―zona obscura‖, própria à operação de individuação, Simondon divisa uma ―matéria indeterminada, o ser pré-individual, rico em energia mas pobre em estrutura, povoado de potências, tensões, feixes de relações quânticas, limiares de intensidade‖ (PELBART, 2013, p.53). É neste ―campo de singularidades pré-individuais‖, enquanto ―sistema metaestável‖, que Deleuze e Guattari encontram elos seminais para pensar um corpo material intensivo do desejo ressoante com o ―corpo sem órgãos‖ de Artaud.