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A UNIVOCIDADE DA PRODUÇÃO DESEJANTE A PARTIR DE UMA LÓGICA DOS FLUXOS

3.2 O PROCESSO DE INTEGRAÇÃO DO DESEJO

Os autores argumentam que, quando um dado socius se assenta sobre a produção, os agentes e as forças produtivas do desejo são distribuídos em sua superfície, pondo-se a serviço da composição do respectivo corpo social. Isso significa que os objetos parciais e as máquinas desejantes moleculares passam a ser, simultaneamente, constituintes e subordinados a um dado socius, na medida em que suas peças funcionam nas engrenagens da ―máquina social‖, investindo

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Numa de suas aulas sobre O anti-Édipo, Deleuze explicita bem o elo entre o conceito de socius e corpo pleno: ―Denomino socius não a sociedade, mas uma instância social particular que desempenha o papel de corpo pleno‖ (DELEUZE, 2005, p.37).

inconscientemente os códigos, que, por sua vez, correspondem às exigências da produção e reprodução sociais de produção (AOE, 1972, p.342).

Eis o problema essencial do socius: codificar e territorializar os fluxos descodificados e desterritorializados do desejo. Trata-se de ―inscrevê-los, registrá- los, fazer com que nenhum fluxo corra sem ser tamponado, canalizado, regulado‖ (AOE, 1972, p.40). Toda sociedade, diz Deleuze, teme apenas uma coisa: ―o dilúvio‖ [déluge]: a inundação dos fluxos de matéria intensiva que correriam anarquicamente sobre o corpo social. Não obstante, não há corpo social que não seja assombrado pela sua possibilidade de dissolução, isto é, pelo colapso que pode ser produzido por aquilo que nunca pode ser completamente canalizado. Por mais repressiva que seja uma sociedade, ela jamais pode integrar completamente o desejo na máquina social. Há sempre ―linhas fuga‖ que não param de acossar o campo social, limando o muro dos códigos, produzindo fissuras para escorrer seus fluxos (C, 1990, p.30).

Sobre ela, sobre seu corpo social, algo flui e não se sabe o que é, alguma coisa que não é código, e aparece como não codificável em relação a essa sociedade. Algo que flui e arrasta essa sociedade a uma espécie de desterritorialização, algo que derrete a terra sobre a qual se instala. Este é o drama. Encontramos algo que colapsa e não sabemos o que é. Não responde a nenhum código, mas que foge por debaixo deles (DELEUZE, 2005, p.20).

Codificação e territorialização dos fluxos é a maneira pela qual um socius ―qualifica‖ os fluxos contínuos da matéria. Deleuze nos dá diversos exemplos dessa operação: um fluxo de cabelos é codificado como tipos de penteados. O penteado de uma jovem, de uma mulher casada e de uma viúva são qualitativamente distintos, isto é, são codificados de diferentes formas. Já os importantes estudos antropológicos de Lévi-Strauss mostram, por exemplo, que o fluxo de mulheres de certa comunidade é codificado segundo regras de aliança que determinam a circulação e a troca. Os rituais mágico-religiosos também são índices da codificação dos usos que faz de órgãos-objetos parciais. É nesse sentido que códigos e fluxos coexistem e se conformam um frente ao outro para formar conjuntos molares. (Ibidem, p.25)

Já vimos que codificar, sobrecodificar ou axiomatizar os fluxos intensivos do desejo consistem, antes de tudo, em canalizá-los e bloqueá-los. Mas o que isso significa exatamente? ―Algo flui, algo é bloqueado, algo faz fluir, algo bloqueia‖. Há

sempre um polo37 de entrada e um polo de saída – e não há estrutura social que prescinda dessa gestão da economia dos fluxos para sua reprodução (Ibidem, p.38). O processo de integração do desejo passa necessariamente pela subordinação dos fluxos desejantes a determinados cortes e ligações em favor da composição de um dado corpo social e de sua reprodução. Outro exemplo dado por Deleuze dessa operação social são as regras de aliança das formações primitivas‖:

Nelas as proibições representam um bloqueio no fluxo do matrimônio possível. Os primeiros matrimônios permitidos – ou seja, os primeiros incestos permitidos, que se chamam uniões preferenciais e que, de fato, nunca são realizadas – representam algo assim como os primeiros modos de passo. Algo é bloqueado: são as proibições do incesto. Algo passa: são as uniões preferenciais. Algo bloqueia e faz passar: o tio uterino, por exemplo. Então, de qualquer maneira, há determinação de um fluxo de entrada e saída. A noção de polo implica ou está implicada no movimento dos fluxos. Ela nos remete a ideia de que algo flui, de que algo está bloqueado, algo faz fluir, algo bloqueia (DELEUZE, 2005, p.3).

O que Deleuze e Guattari sugerem é que, é próprio ao regime social da produção, criar códigos que regulem as práticas sociais, estabelecendo regras de inscrição, categorizando homens e coisas, produzindo diferenciação de grupos e individualização de sujeitos, criando regras de alianças entre grupos e trocas de pessoas e bens etc. Não obstante, para que essa operação se efetive na produção e reprodução de um dado corpo social é preciso que seus códigos sociais sejam imediatamente investidos pelo desejo. É aí que as máquinas desejantes moleculares

passam a ser, em si mesmas, engrenagens ou investimentos das máquinas

orgânicas, técnicas ou sociais – as grandes máquinas molares (AOE, 1972, p.342). São as mesmas máquinas, insistem os autores, mas em condições determinadas. No regime de produção social, as máquinas dependem de condições extrínsecas para funcionar, posto que remetem sempre a um socius que condiciona seu funcionamento, bem como a reprodução do processo (AOE, 1972, p.39).

Mas o quê precisamente torna essa passagem possível? Como as máquinas desejantes podem chegar a compor e a investir as formas mais repressivas e

37Deleuze extrai as primeiras definições dos conceitos de ―fluxos‖, ―estoques‖ e ―polos‖ dos estudos de economia política de Daniel Antier. (Cf. ANTIER, Daniel. L‟étude des flux et stocks. Paris: Sedes, 1967). Entretanto, Deleuze acredita que Antier oferece apenas definições nominais; era preciso partir em direção às definições reais dos conceitos (DELEUZE, 2005, p.37-38).

mortíferas da reprodução social, que esmagam o próprio desejo? ―Como se chega a desejar a potência, mas também a própria impotência‖? (AOE, 1972, p.284). É isso que se trata de explicar quando se coloca o problema da servidão em O anti-Édipo.

Vimos que uma resposta parcial ao problema é dada pelo surgimento do

socius e sua operação de assentamento do processo de produção. Ao assentar a

produção, o socius, enquanto corpo pleno, distribui os fluxos e máquinas-órgãos em sua superfície de registro, conferindo unidade estrutural e finalidade aparentes à produção. As forças e agentes de produção se tornam, assim, sua potência sob uma forma ―miraculosa‖ – parecendo emanar dele como uma ―quase-causa‖. Eis o movimento objetivo aparente que se produz na superfície de registro do socius. É assim, dirão Deleuze e Guattari, que ―a sociedade constrói o seu próprio delírio ao registrar o processo de produção‖ (AOE, 1972, p.16). Delírio este que não diz respeito a uma consciência falsificada38 ou mistificada, mas aos próprios investimentos inconscientes do campo social. Daí a questão fundamental bem formulada por Lapoujade (2015, p.158): ―Que corpos o inconsciente delira, a corroborar, a cada vez, sua inscrição social?‖

Todavia, para avançar na resposta ao problema da servidão, exige-se uma segunda prospecção, que remonta ao nível molecular da produção. O que se passa nesse nível para que a inorganização real dos elementos moleculares, das ―puras multiplicidades positivas em tudo é possível‖, se organize numa unidade estruturada e estruturante39 da produção? (AOE, 1972, p.63) Se O anti-Édipo pretende responder a essa questão ―ao nível de uma teoria generalizada dos fluxos‖, devemos examinar como essa operação se realiza ao nível das sínteses passivas do inconsciente.

38 A ―falsa consciência‖ nada mais é que a ―consciência verdadeira de um falso movimento, percepção verdadeira de um movimento objetivo aparente, percepção verdadeira do movimento que se produz na superfície de registro‖ (AOE, 1972, p.16).

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Como veremos adiante, os sistemas de representação próprios a cada formação social (primitiva, despótica imperial ou capitalista) não podem ser considerados apenas como unidade ou estrutura estruturada. Trata-se também de uma estrutura estruturante, na medida em que ela exerce ―pressões seletivas‖ sobre as forças e os agentes de produção, condicionando seu funcionamento em favor da reprodução social.