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R EICH E A REDESCOBERTA DO PROBLEMA DA SERVIDÃO VOLUNTÁRIA

Ora, quem permite retomar a servidão como um problema de transcendência que se perfaz no seio da imanência é o pensador alemão Wilhelm Reich. Deleuze e

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A atitude teológico-política por excelência pode ser encontrada em De Legibus ac de Deo Legislatore, de Suárez, como analisa Chauí (2003, p.84-85). Tal atitude consiste na pretensão de fundamentar o estudo da lei na ―ciência sagrada‖, que, por sua vez, ―funda-se na Sagrada Escritura e no que dela disseram os doutores da Igreja‖. A teologia, nessa perspectiva, ―define o direito natural (objetivo e subjetivo), dele infere a avaliação do direito civil, segundo respeite ou desrespeite o ordenamento divino e, por conseguinte, a ela se subordinam a ciência jurídica e a ciência política, enquanto ciências da luz natural‖ (Ibidem, 2003, p.85).

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Daí porque o tipo de enfrentamento que Espinosa faz ao poder supersticioso da teologia passa por uma interpretação imanente da Escritura, cujo sentido dos textos é ―determinado unicamente da Escritura e só dela deve deduzir-se‖ (ESPINOSA, 2003, p.136 [115]). Espinosa oferece ao ―leitor filósofo‖ um verdadeiro método interpretativo histórico-crítico baseado na luz natural, comum a todos os homens, ao contrário dos preconceitos teológicos que nos ensinam a desprezar a natureza e a razão. O método de interpretação das Escrituras concorda com o método de interpretação da natureza, o qual ―consiste essencialmente em descrever a história da mesma natureza e concluir daí, com base em dados certos, as definições das coisas naturais‖. Sendo assim, o conhecimento natural não se opõe as Escrituras, visto que ―também para interpretar a Escritura é necessário elaborar sua história autêntica e, depois, com base em dados e princípios certos, deduzir daí como legítima consequência o pensamento dos seus autores‖ (Ibidem, p.116 [98]).

Guattari atribuem a Reich a ‗redescoberta‘ do problema da servidão em sua radicalidade (AOE, 1972, p.36), no interior de uma perspectiva psicológica materialista e histórica.

Em 1933, imerso num contexto aterrador, marcado pela ascensão de Hitler ao poder, Reich publica Psicologia das massas do fascismo. O diagnóstico reichiano era assertivo: as forças progressistas e revolucionárias, que lutavam pelos antigos objetivos de liberdade da humanidade trabalhadora, sofreram uma grave derrota. A causa primordial dessa derrota era evidente: uma grande fração do proletariado alemão aderiu ao nacional-socialismo de Hitler e o elegeu por voto popular. Sim, diz Reich, aqueles que ‗deveriam‘ seguir seus interesses de classe e guiar-se pelas condições materiais objetivas, as quais apontavam para a possibilidade de uma revolução proletária à esquerda, voltaram-se contra seus próprios interesses. Não, eles não foram enganados, iludidos ou mistificados por alguma ―ideologia‖ falsificadora das consciências. As massas desejaram o nazismo – eis o espantoso e incontornável problema que deveria ser explicado.

A investigação de Reich parte de uma séria observação: o triunfo do partido nacional-socialista na Alemanha colocara em dúvida o próprio marxismo e sua concepção de história social, mesmo entre aqueles que outrora o haviam defendido com veemência (REICH, 1974, p.9). O ―marxismo vulgar‖, ao qual Reich atribuía a característica de negar o método do materialismo dialético ao não aplicá-lo na prática, postulava que se a crise econômica chegasse à amplitude daquela de 1929- 1933, haveria necessariamente um ―impulso revolucionário‖, uma ―evolução ideológica de esquerda das massas atingidas‖. Ora, contrariamente às previsões, a crise conduziu a uma ―evolução de extrema direita na ideologia das camadas proletarizadas e daquelas que tinham mergulhado numa miséria mais profunda do que nunca‖ (Ibidem, p.12). Seria, por conseguinte, decisivo compreender esse ―desvio‖, essa guinada entre ―a evolução da base econômica, que impulsionava para a esquerda, e a evolução da ideologia das mais largas camadas da população, que se fazia para a direita‖ (Ibidem, p.12-13).

Por que, indaga Reich, as condições econômicas prévias à revolução social podiam ser verificadas, de acordo com a teoria de Marx, e as massas pauperizadas guinaram ideologicamente para a extrema direita? Como explicar que, na ―encruzilhada dos caminhos entre socialismo e barbárie, parece que a história toma

primeiro a direção da barbárie?‖ (Ibidem, p.13). Enfim, por que razão os homens, há séculos, não apenas suportam, mas desejam ―a exploração e a humilhação moral, em resumo, a escravidão‖? (Ibidem, p.28).

Diante desse dramático contexto sociopolítico, Reich é impelido a mudar o sistema de coordenadas de seu pensamento, visto que esta seria a ―condição prévia indispensável a uma prática socialista nova‖ (Ibidem, p.14). Baseado no materialismo dialético, ele começa por levantar o ―problema do papel da ideologia e da atitude afetiva das massas como fator histórico, do efeito retroativo da ideologia

sobre a base econômica‖ (Ibidem, p.14). A questão fundamental consistia em saber

o que impedia a harmonia entre a situação econômica atual e a ideologia. Para tanto, era preciso apreender a ―essência da estrutura ideológica‖ e o modo como esta se relaciona com ―a base econômica de que é originária‖.

O ―marxismo vulgar‖ acreditava dar conta da questão reduzindo a ideologia e a economia a uma oposição mecânica. Concebiam a ―ideologia e a ‗consciência‘ dos homens como determinadas só e imediatamente pelo ser econômico‖ (Ibidem, p.18). Nessa ótica, a ideologia enquanto operador prático-conceitual privilegiado para pensar os complexos mecanismos de articulação entre o social e o individual, aparecia unilateralmente ―subordinada‖ à economia. Com efeito, ―o campo do fator subjetivo‖ seria abandonado ou relegado ao idealismo metafísico e a uma psicologia que nada teria de materialista.

Na contracorrente dessa perspectiva, Reich acreditava poder efetuar uma crítica produtiva, a partir do que ele chamou de psicologia materialista dialética, cujo campo de investigação incluiria o ―fator subjetivo da história, da estrutura ideológica dos homens de uma época e da estrutura da sociedade que constituem‖ (Ibidem, p.19). Tal psicologia devia subordinar-se e integrar-se à teoria marxista do social, partindo da premissa fundamental de que a ―consciência do ser‖ é derivada do social. O projeto reichiano buscava, portanto, integrar o fator subjetivo – tal como a psicanálise freudiana o compreendia – ao edifício do materialismo histórico dialético. À psicanálise estava reservado um lugar no materialismo histórico que a socioeconomia não podia preencher, a saber: a compreensão estrutural e dinâmica da ideologia (Ibidem, p.30).