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U M POSSÍVEL ELO ENTRE SINGULARIDADES PRÉ INDIVIDUAIS E OBJETOS PARCIAIS

A UNIVOCIDADE DA PRODUÇÃO DESEJANTE A PARTIR DE UMA LÓGICA DOS FLUXOS

2.7 U M POSSÍVEL ELO ENTRE SINGULARIDADES PRÉ INDIVIDUAIS E OBJETOS PARCIAIS

(PARTIAUX)

Ao encontro de Simondon, Deleuze e Guattari exploram, no regime da produção desejante, o que poderíamos chamar de uma ―ambiência operatória‖ imanente aos ―sistemas intensivos‖ (ORLANDI, 1990, p.163). Para perscrutarmos como essa operação se realiza em O anti-Édipo, é preciso ter em mente o modo pelo qual os autores subvertem o estatuto psicanalítico dos ―objetos parciais‖, tomando-os como elementos de um ―verdadeiro processo de produção‖ do desejo. O mundo dos objetos parciais, dizem eles, é ―esse mundo explosões, de rotações e vibrações‖ do qual falava Melanie Klein. Mas, como vimos, esse mundo não é fantasmático, não pressupõe e nem tende para qualquer totalidade. Os objetos parciais são, segundo Deleuze e Guattari, ―fragmentos heterogêneos‖, ―tijolos‖, ou seja, objetos ―diferentes ou realmente distintos‖; são, em última instância, os ―elementos moleculares‖ do inconsciente, multiplicidade irredutível a qualquer unidade ou totalidade.

Na realidade, as totalidades é que são ―efeitos‖ de multiplicidades que não totalizam. ―Só acreditamos em totalidades ao lado das partes‖, dizem eles; há tão- somente ―unidade de todas as partes, mas que não as unifica, e que se junta a elas como uma nova parte composta‖ (AOE, 1972, p.50).

Como produzir e pensar fragmentos que tenham entre si relações de diferenças enquanto tal, que tenham como relações entre si sua própria diferença, sem referência a uma totalidade original mesmo que perdida, nem a uma totalidade resultante mesmo que por vir? Só a categoria de multiplicidade, empregada como substantivo e ultrapassando tanto o múltiplo quanto o uno, ultrapassando a relação predicativa do Uno e do múltiplo, é capaz de explicar a produção desejante: a produção desejante é multiplicidade pura, isto é, afirmação irredutível à unidade (AOE, 1972, p.50).

Há, não obstante, um aspecto fulcral acerca do estatuto dos ―fragmentos‖ ou ―objetos parciais‖, que a psicanálise não soube captar (nem mesmo na sua vertente lacaniana), a saber: ―eles não são parciais [partiels]‖, salientam Deleuze e Guattari (1978, p.368), ―no sentido de partes extensivas, mas são sobretudo ‗parciais‘ [‗partiaux‟] como as intensidades sob as quais uma matéria sempre preenche o espaço em graus diversos (o olho, a boca, o ânus como graus de matéria)‖. Dentro dessa perspectiva, se retomarmos a aliança Deleuze-Guattari-Simondon, podemos dizer que os objetos parciais [partiaux], enquanto ―intensidades puras‖, recebem um estatuto consonante com aquele dos ―díspares‖ ou das ―singularidades pré- individuais ou pré-pessoais‖, isto é, da ―pura multiplicidade dispersada e anárquica, sem unidade nem totalidade‖ (AOE, 1972, p.386-387). Encontrar os díspares é encontrar os ―objetos parciais como elementos últimos do inconsciente‖, e esta é uma das tarefas fundamentais da esquizoanálise (AOE, 1972, p.386).

Sendo assim, o quê precisamente faz com que os díspares, dispersos anarquicamente, possam se comunicar e criar uma ambiência operatória? Refaçamos a questão nos termos de O anti-Édipo: como os objetos parciais, enquanto ―peças‖ fundamentais das máquinas desejantes, podem se conectar e resultar numa espécie de convivência sintética entre si, ou seja, num ―agenciamento maquínico‖ sem que haja qualquer ligação necessária entre eles? Assim, o problema se formula como um paradoxo: ―como elementos podem ser ligados precisamente pela ausência de liame‖ seja ele natural, lógico ou significativo? (AOE, 1972, p.484). Como ligar uma ―pura multiplicidade dispersada e anárquica‖, sem fazer apelo à semelhança ou à identidade para ―juntar as diferenças por cima ou por baixo‖? (ORLANDI, 1990, p.162). Reencontramos, neste ponto, um problema cardinal que recebe múltiplas variações e tratamentos na filosofia de Deleuze.

Orlandi observa que Deleuze, avançando no projeto nietzschiano de ―reversão do platonismo‖, ―busca reverter a ‗operação do filósofo‘, evitando tomá-la ‗como ascensão, como conversão, isto é, como movimento de se voltar para o

princípio do alto, do qual ele procede‘‖. Entretanto, Orlandi acrescenta que, nesse ―construtivismo filosófico-conceitual‖ dos autores de O anti-Édipo, sempre haverá que se considerar um ―problema de consistência‖. Trata-se de explicar como se perfaz um ―plano de consistência‖ imanente à coexistência entre díspares? Cumpre salientar que, desde Diferença e repetição (1968), Deleuze sustenta que o único elo da operação de conexão/comunicação entre diferenciais é o próprio ―díspar‖ [dispars]. O ―díspar‖ é concebido, nesse contexto, como o ―em si da diferença‖ e o operador de consistência capaz de, ―por si mesmo‖, por diferenças em conexão, comunicação, ressonância28 (DR, 1968, p.119).

Em todo o projeto Capitalismo e esquizofrenia, conforme indicam seus autores, o corpo sem órgãos consiste justamente no ―plano de consistência do desejo‖ (MP, 1980, p.14). A fim de melhor analisar este aspecto, recordemos que, quando Deleuze e Guattari descrevem a operação da síntese conectiva, os objetos parciais entram em interações indiretas ou passivas, uma vez que se relacionam pela própria distância positiva que os difere. O desejo, como vimos, é o motor movente dessas ―interações indiretas‖, das sínteses que operam por conexões transversais, disjunções inclusas e conjunções plurívocas (AOE, 1972, p.368). O corpo sem órgãos surge nos interstícios desses acoplamentos produtivos como um produto, puro ―fluido amorfo‖, ―elemento de antiprodução‖ que se precipita nas organicidades dissolvendo-as. Entretanto, essa é apenas uma das faces do corpo sem órgãos. Deleuze e Guattari complexificam o estatuto do corpo sem órgãos ao afirmar que ele ―pode tanto ser produzido como o fluido amorfo da antiprodução quanto como suporte que se apropria da produção de fluxos‖ (AOE, 1972, p.389). Vejamos como estas duas características sobrelevam a maneira como os autores constroem a dinâmica do materialismo de O anti-Édipo.

Enquanto ―fluido amorfo da antiprodução‖, o corpo sem órgãos é o elemento que exerce uma ―força de repulsão‖ à ―ação invasiva das máquinas desejantes‖. O corpo sente as conexões maquínicas como ―aparelhos de perseguição‖, a ponto de

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Dadas duas séries heterogêneas, duas séries de diferenças, o precursor age como o diferenciante destas diferenças. É assim que ele as coloca em relação imediatamente por sua própria potência: ele é o em-si da diferença ou o "diferentemente diferente", isto é, a diferença em segundo grau, a diferença consigo, que relacionou o diferente ao diferente por si mesmo [...]. Chamamos díspar o sombrio precursor, a diferença em si, em segundo grau, que põe em relação as séries heterogêneas ou disparatadas (DR, 1968, p. 119).

não poder mais suportá-las. Este ponto paroxístico marca o limite paranoico de um agenciamento maquínico e uma ―queda de intensidade até o corpo sem órgãos = 0, autismo‖ (AOE, 1972, p.147). É aqui que a ―força de repulsão‖ do corpo sem órgãos faz com que as máquinas desejantes sofram uma mutação, dando origem à ―máquina paranoica‖ ou ―máquina de repulsão‖. Esse ―conflito aparente‖ entre corpo sem órgãos e máquinas desejantes constitui, aquilo que Deleuze e Guattari acreditam ser o real sentido do ―recalcamento originário29‖, operação em que a produção desejante é recalcada. (AOE, 1972, p.15).

Já o corpo sem órgãos caracterizado como ―suporte que se apropria da produção de fluxos‖ implica o exercício de uma ‗força de atração‘. É esta força que está em jogo quando ―o corpo sem órgãos se assenta30

[se rabat] sobre a produção desejante, e a atrai, apropria-se dela‖ (AOE, 1972, p.17). Deleuze e Guattari nos dizem que, no processo produtivo de conexões maquínicas, os órgãos ou intensidades puras se acoplam e ―preenchem o espaço em graus diversos‖, através de uma ―matéria‖ que lhes serve de ―suporte‖. Esta matéria não ―especificada sob unidade estrutural ou pessoal alguma‖ é identificada ao próprio corpo sem órgãos (AOE, 1972, p.368). Portanto, enquanto matéria-suporte de variações intensivas, o corpo sem órgãos não tem qualquer ―oposição real‖ aos ―órgãos-objetos parciais‖ enquanto intensidades puras. Na verdade, como dirão Deleuze e Guattari,

Os órgãos parciais e o corpo sem órgãos são uma só e a mesma coisa, uma só e mesma multiplicidade que deve ser pensada como tal pela esquizoanálise. Os objetos parciais são as potências diretas do corpo sem

29 Deleuze e Guattari se referem explicitamente ao conceito psicanalítico de ―recalcamento originário‖ [Urverdrängung]. Em seu texto O recalcamento [Die Verdrängung] (1915), Freud observa que a experiência clínica o levou a supor que deveria haver uma ―primeira fase do recalcamento‖ em que seria negado o acesso ao consciente à representante psíquica da pulsão. A pulsão permanece, então, fixada à representante em questão. Com isso, nota Gondar (1995, p.75), ―o recalcamento originário funda a cisão entre consciente e inconsciente‖, ao fixar uma espécie de núcleo duro no inconsciente que exerce força centrípeta nas cadeias de pensamento que entraram, fortuitamente, em vínculo associativo com a representante recalcada. Sem essa força de atração produzida pelo recalcamento originário o ―recalcamento secundário‖ ou ―recalcamento propriamente dito‖ não teria operatividade (FREUD, 1992b, p.143-144). Tendo isso em vista, podemos perceber que Deleuze e Guattari extraem o conceito em pauta de seu domínio psicanalítico para fazer dele um uso bastante diverso. Em O anti-Édipo, o recalcamento originário é uma operação exercida pelo corpo sem órgão, em sua face repulsiva e paranoica, que recalca o próprio funcionamento maquínico desejante. Veremos, no capítulo III, como o papel ele desempenhará na passagem do regime desejante ao regime social de produção.

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Seguimos aqui a tradução proposta pelo comentador e tradutor Luiz Orlandi. Segundo ele, o verbo ―rabattre” aparece, em O anti-Édipo, com duplo sentido: ―incidir sobre‖ e ―fazer-se inscrever‖. Cf. DELEUZE, G; GUATTARI, F. O anti-Édipo. Trad. Luiz Orlandi. Rio de Janeiro: Editora 34, 2010.

órgãos, e o corpo sem órgãos é a matéria bruta dos objetos parciais (AOE, 1972, p.390).

As intensidades puras que preenchem o corpo sem órgãos se originam da relação diferencial entre as duas forças da matéria intensiva, a saber: a ―ação‖ e a ―repulsão‖ (AOE, 1972, p.25). A força de repulsão opera como condição do funcionamento maquínico, uma vez que as máquinas, no regime da produção desejante, só funcionam desarranjando-se continuamente, desfazendo e refazendo as conexões entre suas ―peças‖, os objetos parciais. Já a força de atração é o próprio funcionamento maquínico, ou seja, as múltiplas e aleatórias conexões entre as intensidades puras (AOE, 1972, p.394). Contudo, não se trata de afirmar que as ―intensidades puras‖ se oponham entre si e ―se equilibrem em torno de um estado neutro‖. Pelo contrário, salientam os autores, ―todas elas são positivas a partir da intensidade = 0 que designa o corpo pleno sem órgãos. E formam quedas ou altas relativas, segundo sua relação complexa e a proporção de atração e de repulsão que entra em sua causa‖ (AOE, 1972, p.25-26).