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O SISTEMA CORTES FLUXOS E A PRODUÇÃO DO CORPO SEM ÓRGÃOS

A UNIVOCIDADE DA PRODUÇÃO DESEJANTE A PARTIR DE UMA LÓGICA DOS FLUXOS

2.5 O SISTEMA CORTES FLUXOS E A PRODUÇÃO DO CORPO SEM ÓRGÃOS

Vimos que, quando Deleuze e Guattari descrevem o funcionamento do sistema ―cortes-fluxos‖, eles ressaltam que o ―corte‖ não se opõe à continuidade de um fluxo material associativo. Ou seja, quando um corte maquínico incide sobre um fluxo associativo, há uma reposição deste mesmo fluxo cortado. No entanto, ao ser reposto, o fluxo seguirá outra ―continuidade ideal‖ que o corte condiciona, implica ou define. Essa operação impõe, por conseguinte, distintas direções e modos de convivência entre os fluxos, condicionando a própria transmissão de um corte a outro (CARDOSO JR., 2006, p.333).

Seguindo esse raciocínio, aparentemente, poderíamos concluir que os autores partem da premissa de que a reposição de um fluxo dependeria apenas da máquina que incide sobre ele. Se assim fosse, as conexões maquínicas formariam um todo organizado, segundo as ―continuidades ideais‖ de fluxos definidas por seus respectivos cortes. Ora, não é isso que Deleuze e Guattari têm em mente. Como adverte Orlandi (1995, p.180), antes, seria preciso perguntar: ―Sobre o quê operaria a máquina-órgão para determinar, organizar e deslanchar o fluxo? Em outras palavras: os sistemas cortes-fluxos não pressupõem algo que eles estão justamente organizando?‖

Mesmo que se pense a continuidade em termos de infinitas conexões de máquinas, essa maquinação universal não pressupõe seu mergulho organizatório num campo de anárquicas fluências que se precipitam na organicidade das maquinações, mas que também delas escapam para serem novamente capturadas em outras conexões maquínicas das quais mais uma vez escapam...? É como se do ponto de vista de cada maquinação organizatória todas as outras maquinações estivessem repondo o estado anárquico das fluências (ORLANDI, 1995, p.180).

Mesmo que as máquinas não cessem de cortar e organizar os fluxos, a produção desejante pressupõe um ―campo de anárquicas fluências‖, de fluxos que deslizam livres e sem cortes. É esta caoticidade dos fluxos que não para de precipitar nas organicidades, ainda que seja, posteriormente, capturada em outras conexões maquínicas (ORLANDI, 1995, p.180). Por isso, nesse ―universo das

máquinas desejantes produtoras e reprodutoras‖ – universo da ―esquizofrenia‖ – as máquinas falham, quebram, funcionando ―somente desarranjadas [détraquées], desarranjando-se sem cessar‖, de modo que um sistema cortes-fluxos nunca poderá formar uma unidade ou um todo absolutamente organizado. (AOE, 1972, p.14).

Como se dá essa ―paradoxal imanência de fragmentadas ordenações maquínicas a um campo de fluências livres‖? (ORLANDI, 1995, p.180) Deleuze e Guattari explicam que ela decorre da ―identidade produzir-produto‖, própria à ―síntese conectiva‖. O funcionamento maquínico, conquanto crie organicidades, reinjeta na produção a fluência anárquica dos fluxos (AOE, 1972, p.14). A ―identidade produzir-produto‖, dizem eles, forma um ―terceiro termo‖ na série binário- linear dos acoplamentos maquínicos. Isso porque, no interior do processo de produção, ―tudo para um momento, tudo congela [se fige] (depois, recomeçará)‖. A este terceiro termo, intersticial, os autores chamam ―corpo sem órgãos‖ [corps sans

organes]: ―enorme objeto não diferenciado‖, um ―puro fluido amorfo indiferenciado,

em estado livre e sem cortes‖ (AOE, 1972, p.14).

Se, no regime da produção desejante, ―as máquinas fazem de nós um organismo‖ – ligando excessivamente os fluxos e tornando os objetos parciais demasiado orgânicos – o ―corpo sem órgãos‖ irrompe, no seio dessa produção, como coagulação do processo, sempre opondo sua ―superfície deslizante, opaca e tensa‖ ao organismo. O ―corpo pleno sem órgãos é o improdutivo, o estéril, o inegendrado, o inconsumível‖ (AOE, 1972, p.14-15). É o ―fluido amorfo da antiprodução‖ pressuposta em toda produção desejante, e que, simultaneamente, é

re-injetada no seio desta.

O conceito de corpo sem órgãos foi extraído da experiência poética de Antonin Artaud. Foi ele quem o descobriu, dizem Deleuze e Guattari (AOE, 1972, p.14), ―lá onde ele se encontrava, sem forma e sem figura‖. É este corpo, enquanto ―enorme objeto indiferenciado‖, que sofre por estar aprisionado à imagem do corpo orgânico como um ―conjunto regulado de órgãos constituídos, assujeitado a um princípio de unidade corporal‖ (SAUVAGNARGUES, 2006, p.87). Retomando o poema de Artaud, Para pôr um fim ao julgamento de Deus (1947), Deleuze e Guattari escrevem:

Cada conexão de máquinas, cada produção de máquina se tornou insuportável ao corpo sem órgãos. Sob os órgãos ele sente larvas e vermes repugnantes, e a ação de um Deus que o sabota ou estrangula ao organizá-

lo. ‗O corpo é o corpo/ ele é só/ e não precisa de órgão/ o corpo nunca é um organismo/ os organismos são os inimigos do corpo‘ (AOE, 1972, p.15). Artaud declara guerra aos órgãos e aos organismos, pois ambos são ―inimigos‖ de um corpo que escapa a toda determinação orgânica que captura e aprisiona esta ―potência inorgânica da vida‖ (Sauvagnargues, 2006, p.83). Sem fazer apelo a um princípio exterior (forma, alma, a unidade do organismo etc.), Artaud permite pensar a corporeidade e a morfogênese dos corpos a partir dessa ―massa inorgânica‖ da vida que as máquinas desejantes articulam e que sobressai em cada parada da produção. Há sempre um ―fluído amorfo indiferenciado‖, inorgânico, que não cessa de deslizar nos interstícios dos ―fluxos ligados, conectados e recortados‖ (AOE, 1972, p.15). Na verdade, o próprio funcionamento disfuncional e desarranjado das máquinas desejantes se deve à ligação com o corpo sem órgãos.

Perfazendo mais uma aliança produtiva, agora entre Artaud e Gilbert Simondon, Deleuze e Guattari (AOE, 1972, p.336) chegam a asseverar que o ―corpo sem órgão e suas intensidades são a própria matéria‖. Mas qual seria sentido e o alcance dessa definição renovada do materialismo? Considerando os limites temporais do presente trabalho, não pretendemos adentrar integralmente no complexo cipoal de problemas dessa profícua aliança. Destacaremos apenas salientar algumas linhas da leitura que Deleuze faz da ontologia simondoniana, enfatizando as conceptualizações que comparecerão na formulação da ontológica materialista de O anti-Édipo.