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M ARX E A ANÁLISE DO PROCESSO DE PRODUÇÃO MATERIAL

Voltemos, então, ao projeto geral de O anti-Édipo, enunciado por Deleuze ao

Magazine Littérraire. O que significa ―colocar num mesmo plano uma produção que

era, a um só tempo, social e desejante, a partir de uma lógica de fluxos‖? (C, 1990, p.185, grifo nosso). Como bem salientou Lapoujade (2015, p.156), esse plano do qual parte O anti-Édipo é um ―plano de natureza‖ identificado a um ―processo de produção‖ (AOE, 1972, p.9). Trata-se de uma processualidade imanente à produção que, como analisaremos, recebe um tratamento marxista bastante heterodoxo.

É na Introdução à crítica da economia política (1857-1858) – obra em que Marx se dedica diretamente ao estudo da ―produção material‖ – que Deleuze e Guattari encontram apoio argumentativo para desenvolver o materialismo de O anti-

Édipo. Embora não faremos aqui uma leitura mais pormenorizada desta obra, vale

dizer que o ponto axial do estudo de Marx consiste em investigar, de um ponto de vista econômico, ―de que maneira as condições históricas gerais afetam a produção e qual é a relação desta com o movimento histórico em geral‖ (MARX, 1991, p.14). Para lograr tal tarefa, Marx retoma as categorias de produção, distribuição, troca e consumo, a fim de mostrar como a economia política clássica faz uma análise superficial desses processos ao tomá-los como esferas independentes e

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Desenvolveremos melhor este ponto no terceiro capítulo, mas cumpre já ressaltar que a perspectiva crítica e clínica desenvolvida em O anti-Édipo passa pela avaliação dos tipos de inscrição da produção desejante sobre o socius, tendo em vista o coeficiente de afinidade entre o regime da produção social e o regime da produção desejante.

sequenciais em relação ao ciclo produtivo. Vejamos, então, o que Marx nos diz a respeito da doutrina dos economistas:

A produção aparece assim como o ponto inicial; o consumo, como ponto final; a distribuição e a troca aparecem como o meio-termo, que é assim dúplice, já que a distribuição é determinada como momento determinado pela sociedade, e a troca como momento determinado pelos indivíduos. Na produção a pessoa se objetiva; no [consumo] a coisa se subjetiva; na distribuição, a sociedade, sob a forma de determinações gerais dominantes, encarrega-se da mediação entre a produção e o consumo; na troca, esta mediação realiza-se pelo indivíduo determinado fortuitamente [...]. Produção é generalidade; distribuição e troca, a particularidade; consumo, a individualidade expressa pela conclusão. Há, sem dúvida, nele, um encadeamento, mas é superficial (Ibidem, p.7-8).

O que Marx pretende mostrar é que, no ciclo material produtivo, os processos de distribuição, troca e o consumo são simultâneos, implicam uma pressuposição recíproca entre si e se encontram imediatamente no seio da produção. ―A produção é imediatamente consumo‖, tal como o ―consumo é também imediatamente produção‖. Há uma ―produção consumidora‖ e um ―consumo produtivo‖ (Marx, 1991, p.9). Mas não é apenas isso, diz Marx (Ibidem, p.11), pois ―cada um, ao realizar-se, cria o outro‖.

A distribuição, por sua vez, não pode ser considerada como uma ―esfera autônoma, marginal e exterior à produção‖. Isso porque ―considerar a produção sem ter em conta esta distribuição, nela incluída, é manifestamente uma abstração vazia, visto que a distribuição dos produtos é implicada por esta distribuição que constitui, na origem, fator da produção‖ (Ibidem, p.13). Com efeito, Marx ressalva que não se trata de afirmar que a produção, a distribuição e o consumo são idênticos,

mas que todos eles são elementos de uma totalidade, diferenças dentro de uma unidade. A produção se expande tanto a si mesma, na determinação antitética da produção, como se alastra aos demais momentos. O processo começa sempre de novo a partir dela (Marx, 1991, p.15).

A perspicácia de Marx foi ter mostrado que o esquema idealista da economia política clássica, que toma a produção, a distribuição e consumo como ―esferas e circuitos relativamente independentes‖, é profundamente condicionado por um nível mais elementar de ―distinções gerais‖. Tais distinções como ―homem-natureza‖, ―indústria-sociedade‖, ―sociedade-natureza‖ são produtos de uma condição histórica determinada pelo modo de produção capitalista. Sendo assim, elas pressupõem ―a

falsa consciência que o ser capitalista tem necessariamente de si e dos elementos cristalizados [figés] do conjunto de um processo‖ (AOE, 1972, p.9).

Deleuze e Guattari se servem dessa crítica marxiana da economia política com o propósito de mostrar, de maneira inaudita, que aquilo que Marx descreve em sua análise econômica da produção é justamente o que se realiza na produção desejante, tal como revela o ―delírio‖ esquizofrênico: tudo parte da produção, ―tudo é produção‖ (MEJAT, 2012, p.114). Não se trata de paralelismo entre as produções, já que os autores insistem há uma única e mesma produção, uma imanência produtiva. E, desta feita, O anti-Édipo se esforçará para mostrar que ―o esquizo faz economia política e que toda sexualidade é questão de economia‖ (AOE, 1972. p.18). É essa concepção que está na base do que os autores acreditam ser o ―primeiro sentido de processo‖.

Pois na verdade – na ruidosa e obscura verdade presente no delírio – não há esferas nem circuitos relativamente independentes: a produção é imediatamente consumo [consommation] e registro [enregistrement], o registro e o consumo determinam diretamente a produção, mas a determinam no seio da própria produção. De maneira que tudo é produção: produção de produções, de ações e de paixões; produções de registro, de distribuições e marcações; produções de consumo, de volúpias de angústias e de dores. Tudo é de tal modo produção que os registros são imediatamente consumidos [consommés], consumados [consumés], e os consumos são diretamente reproduzidos (AOE, 1972, p.14).

O segundo sentido do processo concerne à indistinção ―homem-natureza‖, uma vez que ambos ―são uma só e mesma realidade essencial do produtor e do produto‖. Esta realidade essencial é a própria natureza como processo de produção. A ―essência humana da natureza e a essência natural do homem se identificam na natureza como produção ou indústria, isto é, igualmente na vida genérica do homem‖ (AOE, 1972, p.15).