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Empresários como protagonistas da mudança educativa na América Latina

Parte II – Particularidade latinoamericana e atuação empresarial na educação

3. Transformações na geopolítica latinoamericana

3.2. Empresários como protagonistas da mudança educativa na América Latina

A reorganização empresarial na América Latina também abrangeu a educação pública, entendida como parte importante da ‘estratégia de acumulação’. Um exemplo ocorreu em 2005, quando as principais frações do capital, incluindo os integrantes do MBC, realizaram um congresso intitulado “Ações de Responsabilidade Social em Educação: Melhores Práticas na América Latina”. Organizado pelo Instituto Gerdau e as Fundações Jacobs e Coleman. Este, em conjunto com outros eventos, marcam um novo momento na mobilização de empresários, resultando no surgimento do movimento ‘Todos pela Educação’ no Brasil, e, anos mais tarde, na REDUCA (MARTINS, 2016).

No mencionado evento, os empresários imprimiram sua marca de protagonismo na reorganização da educação pública agindo como ‘empreendedores de políticas’, ou seja, atores que conectam os interesses público e privado em uma ação política, na provisão de bens coletivos, mas também capturando parte desse benefício para si (HARDIN, 2013). Durante o evento, Jorge Paulo Lemann, presidente da Fundação Lemann conclama a participação empresarial na incidência educativa: “Se dependermos apenas do governo, não chegaremos lá.

Estou aflito com o pouco crescimento do país” (FUTEMA, 2006). Capella (2016, p. 486)

explica que os empreendedores políticos “assumem um papel importante na defesa das ideias

relacionadas à definição dos problemas e à estruturação dos debates a respeito de soluções”.

Para a autora, estes atores podem agir “tanto no sentido da mudança quanto da estabilidade

quando esta lhe interessa, mantendo privilégios, status ou outros recursos” (p. 486).

Dentre os pontos considerados críticos em relação à educação pública, o empresário Lemann cita o baixo crescimento econômico do país, inferior à taxa média da América Latina e do mundo: “Se continuarmos assim, vamos perder a corrida da eficiência e da competência

no mundo globalizado. Se não atacarmos o problema, nosso crescimento será inadequado”

(FUTEMA, 2006). Martins (2015), situa a ação coletiva empresarial em um movimento designado ‘direita para o social’ que reconhece que a intensificação da exploração verificada na atual fase do capitalismo ameaça a legitimidade do sistema, a burguesia e, por conseguinte, o próprio empresariado como “dirigente do processo histórico” (p. 297). Diante do risco, os empresários colocariam “à serviço da sociedade sua experiência na condução dos negócios e

seus preceitos de eficiência e produtividade” estabelecendo “formas inovadoras de tratamento das ‘questões sociais’” (idem).

Não por acaso, diversos membros da REDUCA surgiram através da atuação de

empresários de renome em nível nacional, regional e até mesmo global. No Brasil, são expoentes do TPE, os empresários Jorge Gerdau Johannpeter, Milu Villela e Viviane Senna. A organização também conta com a presença do empresário Jorge Paulo Lemam (MARTINS, 2016). A Fundación Educación 2020, mesmo com um histórico de envolvimento estudantil em sua gênese, conta com a participação ⸺ e financiamento ⸺ do grupo Luksic e Matte (SALINAS, 2015). O ‘Mexicanos Primero’ foi organizado, dentre outros, pelos empresários Alejandro Ramírez Magaña (Cinépolis) e Claudio X. González (Televisa, dentre outros), cujas famílias têm uma longa história de envolvimento na política mexicana. A ‘Fundação

Empresários por la Educação’, foi criada depois da LABES51, na Colômbia, sob a liderança do empresário antioqueño Nicanor Restrepo (SOLANO-ESPINOSA, 2017, p. 45). Estes são exemplos de empresários que “estão dispostos a mobilizar seus capitais econômicos, culturais

e sociais para perseguir suas agendas de caridade” (OLMEDO, 2014, p. 585).

Reproduzindo Gramsci (1982), sabe-se que os empresários contam por uma certa “capacidade dirigente e técnica”, caracterizando-se como ‘intelectuais orgânicos’ (GRAMSCI, 1982). Os empresários organizam sociedade em geral, incluindo o organismo estatal, pela sua

necessidade de criar as condições mais favoráveis à expansão da própria classe: “ou, pelo

menos, devem possuir a capacidade de escolher os ‘prepostos’ (empregados especializados) a quem confiar esta atividade organizativa das relações gerais exteriores a fábrica” (GRAMSCI,

1982, p. 4). Estes atores, detentores do poder econômico e, portanto, com capacidade de mobilizar diversos tipos de recursos, como seus capitais econômicos, culturais e sociais, são denominados por Schervish (2003, 2005) como ‘hiperagentes’ (hyperagent), que significa uma maior “capacidade de indivíduos ricos para estabelecer o controle ou as condições sob as quais

eles e outros vivem” (SCHERVISH, 2005, p. 62). São considerados também “indivíduos que podem fazer o que, de outra forma, seria necessário um movimento social para fazer”

(BISHOP; GREEN, 2010 apud AVELAR, 2018, p. 25).

Uma das táticas empresariais no processo de convencimento para a construção de um consenso em torno ao seu projeto é a apropriação da bandeira da ‘qualidade da educação’52. Entretanto, diferentemente do sentido de qualidade defendido pelos movimentos progressistas, para os homens de negócio, a qualidade da educação sempre se refere ao ‘mensurável’, estando associada ao crescimento econômico e desenvolvimento53. Este é o caso da REDUCA, para quem

os desafios para o equilíbrio entre crescimento econômico e desenvolvimento social persistem, e a Educação, peça-chave que viabiliza o pleno desenvolvimento das capacidades humanas e determina o potencial de participação das sociedades no cenário mundial, evolui em ritmo muito aquém do necessário para colocar a região entre os países com bons Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs) (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2011a, p. 147).

O contexto de crítica dos sistemas educacionais, baseado no desempenho dos estudantes, é comum no discurso da REDUCA e seus membros e justifica o fortalecimento e

aprofundamento da participação empresarial na política educativa, pois, em sua perspectiva, o baixo desempenho dos estudantes nos testes internacionais implicaria em consequências para o desenvolvimento e para a coesão social, especialmente nos países periféricos. Assumindo também as orientações das OI’s, para a REDUCA, ao lado do baixos resultados nestes testes, os

estudantes latino-americanos não consolidam as chamadas habilidades ‘não cognitivas’ (capacidades de socialização, trabalho em equipe, liderança, cidadania, pensamento crítico, comunicação) (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2011a, p. 148).

52 Para a REDUCA,“[as] avaliações nacionais e internacionais mostram que a qualidade não acompanhou o crescimento da

cobertura, e é, atualmente, o grande desafio educacional para os países Movimentos pela Educação na América Latina” (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2011a, p. 147).

53 A ‘qualidade da educação’ é entendida a partir dos critérios da OCDE, que utiliza o desempenho nos testes padronizados,

Esta interpretação não difere muito dos ‘reformadores empresariais da educação’, segundo os quais, “a escola pública atende principalmente às necessidades de negócios”; “a

escola pública é responsável pela competição econômica global”; “as oportunidades e a possibilidade de realização individual são abertas apenas através do sistema escolar organizado por ‘competição’ e ‘escolha’”; e “o sucesso educacional traduz-se em inclusão individual na economia como consumidor e como trabalhador” (SALTMAN, 2014, p. 252).

Ecoando estes dados, Dale (2004) sugere que estes atores conferem um caráter de urgência nas reformas educativas pretendidas, cujos propósitos estão alinhados em torno de uma agenda global54.

A partir de pronunciamentos alarmados, as organizações empresariais que incidem na educação também utilizam como ferramenta a promoção de suas posições por meio de estudos e documentos que divulgam os baixos resultados educacionais dos países (MARTINS, 2016). No caso latinoamericano, tal processo se intensificou a partir de 2000, quando os resultados da prova PISA55, desenvolvida pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), expuseram as diferenças educacionais entre os países e as regiões. A ‘Declaración de REDUCA en la VIII Asambela anual’ (REDUCA, 2018) traz a

seguinte informação:

De acordo com os resultados do PISA, 50% dos estudantes da região de 15 anos não possuem os conhecimentos e habilidades essenciais para a vida em sociedade. Da mesma forma, o teste TERCE56 indica que mais de 60%

dos alunos na região do terceiro e sexto anos em leitura estão nos níveis mais baixos de desempenho. Em matemática, os resultados são ainda piores: mais de 70% dos alunos da terceira série estão nesses níveis baixos e na sexta série, atingem 83%. Nas ciências naturais, 79% dos alunos do sexto ano têm baixo desempenho. Os problemas e desafios mencionados (não completar o ensino obrigatório, não alcançar bons resultados de aprendizagem e a falta de justiça educacional) representam um risco para a democracia na região e exigem medidas urgentes (REDUCA, 2018, p. 2, grifos nossos)

O grau em que o suposto ‘risco para a democracia da região’ representada pela ‘catástrofe decorrente dos resultados da avaliação PISA’ atinge o discurso público e político é

54 Cf. item 5.6 neste trabalho.

55 PISA - Programme for International Student Assessment - Programa Internacional de Avaliação de Estudantes - é uma

iniciativa internacional de avaliação comparada, aplicada em estudantes na faixa dos 15 anos, idade em que se pressupõe o término da escolaridade básica obrigatória na maioria dos países. O programa é desenvolvido e coordenado pela OCDE. No Brasil, o Pisa é coordenado pelo INEP. Fonte: http://portal.inep.gov.br/pisa-programa-internacional-de-avaliacao-de-alunos. Acesso em: 12/2016.

56 Terceiro Estudo Regional Comparativo e Explicativo (Terce). Terce é um estudo de desempenho da aprendizagem em larga

escala realizado em 15 países (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana e Uruguai), além do estado de Nuevo León (México). Mais de 134 mil crianças do ensino fundamental participaram da avaliação. Avalia o desempenho escolar no ensino fundamental – do 4º ao 7º ano do ensino fundamental, no Brasil; e da 3ª à 6ª série, nos demais países – em matemática, linguagem (leitura e escrita) e ciências naturais. http://www.edupp.com.br/2015/08/terceiro-estudo-regional-comparativo-e-explicativo-terce-e-a-educacao- brasileira/. Acesso em 07/2019.

exemplificado pelo fato de que a mesma história vem sendo repetida não apenas pelos grupos que formam a REDUCA em 15 países latinoamericanos, mas por outras organizações empresariais, do terceiro setor e também pelos governos e OI’s. O Todos pela Educação, por exemplo, divulga a ‘urgência da educação’: “[...] não ignoramos que o Brasil vive uma crise

de aprendizagem. E esta é a crise que mais traz risco para a nossa sociedade, pois é uma crise silenciosa, que tem limitado o potencial dos brasileiros e brasileiras, suas oportunidades, suas rendas, suas vidas de maneira geral” (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2018). Alguns autores

consideram que esta análise ‘catastrófica’ gerada em torno aos resultados dos testes padronizados tem sido utilizada para redefinir o sentido da educação pública, construindo uma hegemonia (direção política e ideológica) nas redes públicas de ensino. Defensores das privatizações fazem avançar as suas ideias na política educativa de uma forma muito semelhante ao que pode acontecer na sequência de um choque econômico ou de desastres naturais (SALTMAN, 2007). Em poucas palavras, os momentos de crises (econômicas, políticas ou humanitárias) e a urgência por atingir os objetivos educacionais globais ou melhores resultados em avaliações internacionais tendem a ser usados como uma oportunidade política por empresários, OI’s e políticos para promoverem reformas que tendem à privatização dos sistemas educativos (VERGER; FONTDEVILA; ZANCAJO, 2016).

Na busca ‘impostergável’ pela melhora da qualidade da educação o debate democrático parece ser orientado pela cultura de metas (MARTINS, 2016), que estabelece prioridades e prazos e regula a agenda política em função da utilidade (produtividade) do assunto a tratar (SOLANO-ESPINOSA, 2017, p. 157). Ainda que a melhora da qualidade da educação seja vista como uma ‘bandeira’ que deva agregar toda a sociedade, a burguesia e suas frações, mais propriamente o setor empresarial e os segmentos que partilham suas diretrizes que têm assumido a condução das políticas que ‘visam a melhora da qualidade da educação’. Assim como Internacional de la Educación para América Latina (IEAL) (2018), entendemos que o setor empresarial vem avançando na noção “de que qualidade é o direito (mais do que

educação pública)” (p. 74), instalando a percepção de que os empresários podem fornecer ao

setor público “as habilidades para uma melhor gestão educacional e tomada de decisão com

base nos resultados”. Neste sentido, Leher (2018), sugere que a legitimação das organizações

empresariais no terreno educacional passou a ser um objetivo de classe muito estratégico, uma vez que a porta de entrada de tais organizações foi a qualidade da educação, e conforme as narrativas destes atores, “o Estado e os professores ‘falharam nessa missão’” (p. 23).

Estes são argumentos que legitimam políticas que aprofundam a privatização da educação em dois sentidos: a privatização dos espaços de produção de política pública, uma

vez que estes atores têm ampliado exponencialmente sua presença nos espaços de decisão alterando ‘a cultura do debate’, como veremos adiante. Em um segundo sentido, como o anunciado por Freitas (2018), segundo o qual os objetivos dos ‘reformadores empresariais da educação’ seriam alcançar “a privatização intensiva quando possível” ou promover “um vetor

de privatização progressivo” transformando o “‘direito à educação’ em um ‘serviço’ a ser adquirido” (p. 59).