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PELAS MÃOS DE ALICE

1.2. O encontro com a dor da lepra

O primeiro olhar de Alice para a questão da lepra ocorreu em 1913. Casada com o jovem engenheiro João Tibiriçá Neto, filho de uma tradicional família de políticos paulistas, era também mãe de Jorge, nascido em abril desse mesmo ano22. Mudara-se a família para a cidade de São Luís do Maranhão. Seu esposo vai dirigir a construção de uma estrada de ferro, marca da primeira década do século XX, um tempo em que as elites governantes, respondendo às demandas da economia exportadora brasileira, procuravam sanear, embelezar e modernizar as principais cidades do país (HAHNER, 2003). Durante sua permanência na cidade, costumava observar que leprosos, a cavalo, costumavam passar mendigando. Em uma época na qual ainda pesava sobre os hansenianos um terror bíblico, como descrito por Cavaliere (2013), “Alice via as esmolas lhes serem atiradas à distância. Impressionou-se vivamente” (MIRANDA, 2005, p. 14). Nesse período, o filho de dois anos adoeceu. Coberta de furúnculos, a criança:

[...] não tinha posição para sentar-se ou deitar-se. Certa vez, ao almoço, fez um uf! de alívio. Conseguira uma posição mais confortável [...] deitando-se de barriga sobre elas (uma fila de almofadas), comendo como um bichinho. Todos se comoveram e os olhos de Alice se encheram de lágrimas. (MIRANDA, 2005, p. 14).

Residiria aí a mensagem explícita quanto à motivação de Alice para suas ações filantrópicas em direção àqueles corpos descarnados pela “lepra” e pela miséria? Acredito que sim, pois como afirma Laqueur (1992, p. 242), “as grandes causas parecem originar-se do poder que tem um dorso dilacerado, uma fisionomia doentia, uma morte prematura de estimular a imaginação moral”.

excludentes: “Ambas possuem uma natureza sociocultural, que contribui para que os intelectuais tenham atividades reconhecidas por seus pares e pela sociedade em que vivem. Reconhecimento que legitima sua intervenção nessa mesma sociedade”. No caso deste estudo denominamos intelectuais o produtor de bens simbólicos, envolvidos direta ou indiretamente na arena política.

22 Jorge Tibiriçá foi duas vezes presidente de São Paulo (como na época eram chamados os atuais

governadores); casado com Ana de Queiroz Telles, (filha do conde de Parnaíba), tiveram cinco filhos: Jorge, Antônio, Paulo, Georgina e João Tibiriçá Neto, que se casou com Alice de Toledo Ribas que passou a chamar-se Alice Tibiriçá. Sobre a família Tibiriçá Cf. SOARES, R. Jorge Tibiriçá e sua época. São Paulo: Ed. Nacional, 1958.

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No Maranhão, Alice sentia-se sozinha, pois “sabia-se geograficamente distante dos parentes e amigos do Sul. Sentada na praça, nas tardes calmas de verão, fitava o céu longamente, coração partido, sentindo-se só” (MIRANDA, 2005, p.17). O casal, então, decide voltar de navio para o Rio de Janeiro.

Na mesma embarcação, viajava uma leva de retirantes: “Pobres, alguns maltrapilhos, jamais procuraram os demais passageiros para um pedido qualquer” (MIRANDA, 2005, p.17). Movida pela compaixão, Alice exercita a solidariedade aprendida na convivência com sua mãe. Organiza uma ação social junto aos demais passageiros e, imediatamente, “brinquedos, roupas e utensílios passaram às mãos dos que buscavam no sul alívio para as suas vidas sombrias”. Alice nunca esqueceu aquelas fisionomias fatigadas, mas altivas, afirma Maria Augusta, ressaltando a vocação filantrópica de sua mãe.

Anos mais tarde, em 1921, quando a família já residia em São Paulo, o filho Jorge foi novamente acometido de uma doença que lhe causou feridas pelo corpo, dessa vez, tifo exantemático. Alice vivenciará um novo encontro com a dor e o sofrimento de um corpo dilacerado por feridas. Daí a observação de que a experiência antes descrita possa ter lhe suscitado a compaixão capaz de mobilizá-la: “[...] quando estendia a mão a um enfermo, declarava estar praticando um dever, que cumpria com todo o calor da solidariedade humana”. (MIRANDA, p. 44) Nesses registros, de novo, localizo muito daquilo que Laqueur (1992) chamará de “narrativas humanitárias”. Alice se desloca das ações caritativas vinculadas à benemerência cristã, como as de sua mãe no espaço doméstico, para o campo de ações filantrópicas sistemáticas - que lhes darão reconhecimento nacional e internacional na primeira metade do século XX.

Na travessia do mundo privado para o mundo público, como muitas mulheres ainda hoje, Alice precisou contar com “extensas redes de proteção e dependência armadas na intimidade das casas” (COSTA, 2002, p. 306). As presenças da “vó Margarida” e das tias Margarida e Mimi, que a criaram após a orfandade, sempre foram uma constante na sua vida. Foi ali, na companhia das tias, que Alice viveu os últimos meses de gestação da segunda filha, nascida na cidade de São Paulo, em 6 de maio de 1917 e que recebeu o nome da avó materna: Maria Augusta. Eis seu registro: “A casa das tias sempre foi um prolongamento da nossa. Meu irmão, quatro anos mais

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velho do que eu, passava lá dias seguidos [...] não era para menos. Todos nos faziam as mínimas vontades” (MIRANDA, 2005, p. 15). Essa vasta rede feminina de cuidados também é composta por laços e cumplicidades entre mulheres de classes sociais diferentes: “É uma regularidade histórica que obrigações maternas sejam transferidas de mulheres que saem para o espaço público para outras que assumem, em seu nome, os cuidados domésticos; isso reorganiza, permanentemente, relações entre mulheres de diferentes classes” (COSTA, 2004, p. 105). Assim, quando, em 1921, o filho mais velho de Alice adoeceu de tifo, a presença da preta Eugênia foi fundamental no seu tratamento.

Eugênia – que grande preta – era pessoa considerada da família. Entrou em nossa casa quando meu irmão teve terrível tifo exantemático, em 1921. Colocou- se logo a sua cabeceira, pingando na boca do doente, gota a gota, geleia de galinha ou extrato de carne. Foi um dos fatores decisivos de sua salvação [...]. Durante três meses se postou, com minha mãe, ao lado de Jorge. Dali por diante, era um pouco nossa mãe também e ajudou a criar-nos [...]. Como era boa a Eugênia. (MIRANDA, 2005, p 18)

Apesar da presença dessa rede feminina de cuidados, a saída de Alice para o mundo público vai ocorrer tardiamente, aos 39 anos de idade, quando seus filhos Jorge e Maria Augusta já tinham doze e oito anos, respectivamente. E não se fez sem conflitos e tensões, pois, até 1925, “preponderava a mãe de família, preocupada com a educação dos filhos, ou desejosa de proporcionar, aos entes de sua afeição, a imensa ternura de seu imenso coração”, como relatou Barbosa Lima Sobrinho, no prefácio de sua biografia. Ela está sugerida na figura abaixo:

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FIGURA 1 – Alice e os filhos, Maria Augusta e Jorge.

FONTE: MIRANDA, 2005, p 21.

Essa fotografia pertence ao acervo pessoal de Alice Tibiriçá. Ela expõe a iniciativa de sua filha Maria Augusta, na obra Alice Tibiriçá: Lutas e ideais, de efetivar um registro de memória de Alice. É perceptível a intenção do fotógrafo de ressaltar o lado materno de Alice, no ambiente doméstico. Nessa foto, a disposição dos fotografados e a pose escolhida registram uma relação de afeto e um gesto de proteção da mãe para com seus filhos. A mensagem se completa na intenção dessa imagem produzir um instante de intimidade. Na composição, a figura de Alice ao lado de Maria Augusta e Jorge, seus filhos; e, no primeiro plano, as mãos entrelaçadas me parecem simbolizar um gesto da união e de um pacto de proteção e cuidado e de cumplicidade mútuos. E, certamente, para toda a vida.

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Em 1925, ao organizar uma quermesse no parque da Avenida Paulista para angariar fundos para os lázaros, Dona (D.) Alice Tibiriçá inicia uma nova fase em sua trajetória: a de filantropa.23