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PELAS MÃOS DE ALICE

1.3. Novos rumos, novas conquistas

Em sua obra Como eu vejo o problema da lepra: e como me vêem os que o querem

“manter”, publicada em 1934,24 Alice relata que, quando iniciou suas atividades filantrópicas

junto aos lázaros, não havia nada com relação ao combate dessa endemia nas unidades de saúde no Estado de São Paulo e em outras regiões. Que exagerasse sobre o peso inaugural de suas ações não nos surpreende. Nessa construção de si, sua imagem como filantropa chega ao público como a de uma pessoa responsável pela criação de toda rede assistencial direcionada aos leprosos. Ao relatar a ausência de ações de combate à lepra, talvez ressaltasse apenas a necessidade de construção de leprosários, causa que marca sua trajetória filantrópica.

Na verdade, até 1920, a lepra “era considerada uma questão sanitária restrita a alguns Estados, como Minas Gerais e São Paulo, o que lhe conferia o status de problema local” (CABRAL, 2013, p 201). Reputada como incurável e de lenta evolução, a doença suscitava, sobretudo, piedade, quase nada exigindo do poder público e da ciência. Os poucos leprosários que passam a existir não praticavam o isolamento dos doentes, prática ainda não obrigatória. Nesses lugares, o doente procurava apenas abrigo, entrando e saindo a qualquer momento, sem nenhum controle (CUNHA, 2005).

São Paulo, cidade em que Alice, nos primórdios da década de 1920, reencontra um grande fluxo de pessoas vindas do interior para a capital e a entrada de grandes levas de imigrantes para a lavoura cafeeira, demandaria políticas sanitárias do governo paulista (MACIEL, 2007).

23 O termo Dona (D.) é um axiônimo utilizado em geral no tratamento das senhoras casadas ou de certa

condição social. Feminino de Dom era usualmente dispensado a senhoras de alta linhagem. Proprietária de alguma coisa. Fonte: https://www.dicio.com.br/dona/ acesso em 26 de maio de 2015. Neste trabalho o termo Dona (abrevia- se D.) será utilizado como um signo para designar a chegada dessas mulheres casadas e de alta linhagem ao espaço público.

24 Nessa obra autobiográfica, Alice, num relato objetivo, enriquecido com documentos e fotografias da época,

narra sua trajetória filantrópica no campo das ações de Combate à lepra. Disponível no acervo da Biblioteca da Casa Oswaldo Cruz/ Fiocruz.

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Influenciado pelo federalismo da Primeira República, o governo paulista tinha poder e verba para conduzir uma política isolacionista de profilaxia à lepra, de maneira independente e com antecedência daquelas executadas pelo governo federal. Segundo Monteiro (1987), os portadores de lepra, com essa política, poderiam ser compulsoriamente internados logo após o diagnóstico. Essa política de isolamento do paciente, iniciada por Emílio Ribas, fundamentava-se na concepção de doença contagiosa. A justificativa para a internação compulsória do paciente entende que essa doença representava uma ameaça à coletividade. (CABRAL, 2013).

Por falta de assistência, os enfermos do interior de São Paulo iam à capital supondo encontrar ali maior conforto. “O scenário da tragédia culminava no velho hospital de Lázaros do Guapira, mantido pela Santa Casa de São Paulo” (TIBIRIÇÁ, 1934, p. 6). Para atender às necessidades dos que ali se encontravam, havia “o carinho da Irmã Emerenciana, a solicitude do Dr. Macedo Soares e a devotada sciencia médica do Dr. Ribeiro de Almeida” (TIBIRIÇÁ, 1934, p. 6). Todavia essas ações eram realizadas quase sem recursos, diante “da onda de hansenianos que sempre se avolumava, para lá conduzindo elementos contagiantes, provindos de todos os Estados em busca de tratamento e de uma pousada amiga” (TIBIRIÇÁ, 1934, p. 6). Através da Associação Therezinha de Jesus, “D. Margarida Galvão dispensava aos filhos dos hansenianos do Guapira e a eles próprios, cuidados sem que, todavia, lhes pudesse prestar melhor assistência em virtude dos parcos recursos” (TIBIRIÇÁ, 1934, p. 6).

Diante desse caos, o Dr. Ribeiro de Almeida, “pelas collunas de ‘O Estado de São Paulo’, pôs, então, a nu a situação de Guapira, reclamando a conclusão de uma leprosaria em Santo Ângelo”, que deveria se tornar uma “mini-cidade”(TIBIRIÇÁ, 1934, p. 6). Nela, doentes teriam todo conforto de que dispunha uma pessoa sã, embora vivendo apartados da vida em sociedade:

As construções foram planejadas permitindo a separação dos pacientes por sexo, idade e condições de saúde, incluindo uma zona de diversões, outra para administração, além de cadeia, igreja, portaria, estábulos, cemitério, biblioteca, creches, posto policial, farmácia etc. deveria ter também sistema de eletricidade, de águas e esgoto. Era projetado para ser tornar auto-suficiente, contendo terra para cultivo agrícola e animais de pasto. (CUNHA, 2005, p 53).

A Associação Protectora dos Morpheticos na Creação do asylo-colonia Santo Angelo foi fundada em 1917, sob a direção da Sra. Mathilda de Macedo Soares e patrocínio do Sr. Arcebispo

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Metropolitano, que entregou, em 1928, as obras do Asylo Santo Angelo à Santa Casa, extinguindo-se em seguida.

Segundo os dados obtidos pela Inspetoria de profilaxia da lepra, entre 1920 e 1925, o alto índice de casos de lepra no estado de São Paulo atingia 4, 115 doentes, seguido pelo estado do Pará com 2,013 e pelo Distrito Federal com 1,294 (CABRAL, 2013). Entre as famílias paulistas, crescia o medo da contaminação e o apoio ao isolamento compulsório para todas as pessoas diagnosticadas com lepra, acompanhados pela ênfase na necessidade de criação de grandes leprosários, nos quais o cuidado e a ação caritativa garantiriam o isolamento em condições confortáveis (CABRAL, 2013). O tema do isolamento dos leprosos vai ocupar o lugar central nos debates sobre a doença.

A experiência de São Paulo, sede das ações filantrópicas de Alice Tibiriçá, assumiria uma especificidade no cenário nacional de combate à lepra25. Sob a gestão de Eduardo Rabello, leprólogo liberal, esse modelo sofrerá duras críticas na Inspetoria de Profilaxia à Lepra, embora concordasse com Emílio Ribas, quanto ao fato do isolamento do leproso ser, naquele momento, a única alternativa profilática reconhecidamente eficaz. De acordo com Rabello, era preciso romper com as determinações profiláticas que impunham o isolamento indiscriminado de todos os doentes em leprosários, tornando-o uma opção voluntária, que possibilitasse ao doente escolher entre o isolamento nosocomial e o domiciliar, em busca de tratamento e melhores condições de vida26. A construção de leprosários, “carro-chefe” do modelo paulista, dará lugar a dispensários mistos no combate à lepra e às doenças venéreas em vários estados brasileiros (CABRAL, 2013).

Assim, bem de acordo com o chamado “modelo paulista”, Alice Tibiriçá, em 1928, proferiu, na Academia Nacional de Medicina no Rio de Janeiro, a conferência intitulada “O feminismo e o Combate à Lepra”, quando enfatizou a necessidade de conciliar os interesses da

25 De acordo com Cabral (2013, p. 275-276): A excepcionalidade de São Paulo no tocante à lepra foi fruto do

reconhecimento da alta endemicidade da doença e de seus efeitos negativos na saúde pública do estado. De todos os estados da federação, São Paulo era um dos únicos a possuir condições: técnicas, financeiras e políticas – para delinear um serviço sanitário independente do governo federal. Desse modo, São Paulo constituiria uma extensa rede de leprosários.

26 Nesta perspectiva, o isolamento no domicílio era indicado aos doentes que tinham condição de manter o

tratamento segundo as normas de saúde e sob vigilância sanitária, enquanto o nosocomial se apresentava como a única opção para os doentes indigentes, bem como uma espécie de sanção àqueles que infringissem o isolamento domiciliar.

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saúde pública com a filantropia. Nesta perspectiva, os direitos dos leprosos estariam subordinados aos direitos da população sã. Há uma ênfase no “carinhoso trato” dos cuidados que, em geral, são de alçada das mulheres:

Pois se o doente é o portador do bacillo, a hygiene e a prudencia ordenam que o mesmo seja internado. A piedade e a solidariedade também impõem que, ao serem internados, encontrem carinhoso trato, bôa mesa, cama confortável e trabalho para consolo das longas horas de solidão. (TIBIRIÇÁ, 1928, p. 16).

A chegada do Dr. Geraldo de Paula Souza ao Serviço Sanitário de São Paulo, em 1920, traz um realinhamento do Estado e um afastamento das prescrições à proposta nacional, não compartilhando dos princípios isolacionistas, defendidos por Alice. Paula Souza era “(...) francamente contrário à construção de grandes leprosários, isolados dos centros urbanos” (MACIEL. 2007, p. 69). Higienista, priorizou a instalação de dispensários e a implantação de centros de saúde, em detrimento do isolamento asilar, e foi o responsável em 1924 pela criação do Serviço de Profilaxia à Lepra que, em 1925, foi transformado na Inspetoria de Profilaxia à Lepra e teve à sua frente o médico José Maria Gomes27. A reestruturação do Serviço Sanitário

gerou intensa reação por parte dos defensores do isolamento radical, para os quais a construção de leprosários deveria ser a base da política de combate à lepra. Com esse ponto de vista, a atuação da saúde pública de São Paulo será tímida e ineficiente.

Construir leprosários torna-se, então, uma demanda para aqueles que, como Alice Tibiriçá, defendiam o isolamento dos doentes como medida profilática para a lepra. Segundo Sanglard (2008), diante da carência de recursos do governo, a intelectualidade brasileira do período defendia que a iniciativa privada deveria substituir o Estado onde este não pudesse chegar. Para Alice, bastava um pequeno passo para levá-la da vocação humanitária à ação, perspectiva essa que converge para as observações de Laqueur (1992). Assim, no dia 21 de fevereiro de 1926, realizava-se, na residência da Rua Tamandaré, a reunião de fundação da primeira Sociedade de Assistência às Creanças Lázaras de São Paulo que, em março do mesmo

27 Segundo Flavio Maurano (1939, p. 157), “[...] Essa Inspetoria tinha por função promover, no Estado, a

profilaxia e o estudo dessa infecção e fiscalizar todos os serviços que se organizassem com o mesmo fim”.Em10 de

fevereiro de 1926, o Dr. José Maria Gomes assumiu a Inspetoria de Profilaxia da Lepra de SP no lugar do Dr. Umberto de Siqueira Zamith, o qual estava no cargo desde sua criação em 1925.

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ano, passou a se chamar Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra de São Paulo28. O “Correio Paulistano” assim exprimiu o nascimento da nova Sociedade:

Agora mesmo podemos contar com uma iniciativa a mais victoriosa, entre as que se propõem, não somente a amparar os infelizes, sinão também preservar a sociedade da disseminação de um mal horrível, entre os que mais o sejam; como é a morphéa.

Mau grado a assistência official e particular, as estatísticas accusam um accrescimo no computo dos atacados pela impiedosa doença; e foi deante dessa perspectiva que uma dama da nossa alta sociedade, verdadeiro modelo de caridade, a Snra. D. Alice de Toledo Tibiriçá, se constituio como elemento central de uma associação, cujo objetivo é a defesa social contra a lepra, e especialmente o tratamento, o conforto e o isolamento das creanças lazaras.

(RELATÓRIO, 1926-1927)29.

Inicialmente, as atividades de Alice contaram com o apoio e os aplausos dos setores masculinos em posição de autoridade familiar: o sogro, que cedeu o espaço de sua residência para que se realizasse a reunião da qual participaram homens e mulheres da elite paulistana; e o esposo, que, ao lado de Alice, iria participar de diversas ações desenvolvidas junto ao poder público e à sociedade civil para debater a questão da “lepra” no Brasil.30 A saúde pública era

28 A presença feminina na diretoria da nova sociedade era majoritária; com Alice Tibiriçá na presidência; D. M.

Victoria Cotching Speers na vice-presidência; D. Eponina Veiga Azevedo e D. Santa Melillo, como primeira e segunda secretárias respectivamente; D. Felicidade P. de Macedo na tesouraria, além da presença de D. Sophia Barros Pereira de Souza como Presidente Honorária e D. Anna Queiroz Telles Tibiriçá (sogra de Alice) na vice- presidência honorária. A presença masculina se fazia sentir em espaços estratégicos, como no conselho consultivo, então composto por 14 homens: Dr. Washington Luiz Pereira de Souza, Dr. Jorge Tibiriçá, Dr. J. Pires do Rio, Dr. Nestor de Macedo, Major Luiz Fonseca, Dr. João Soares Hungria, Dr. Antonio da Silva Prado Jr, Dr. Francisco da Cunha Junqueira, Dr. Orlando de Almeida Prado, Dr. Fausto Ferraz, Dr. Aguiar Pupo, Dr. Ribeiro de Almeida, Dr. L.P. de Campos Vergueiro e Dr. Eduardo F. Cotching; além de quatro mulheres: D. Elvira de Paula Machado Cardoso, D. Izabel A. Von Lhering, D. Maria de Campos Mesquita, D. Georgina Tibiriçá Paes de Barros. A posse da diretoria ocorreu nas dependências do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e a sede da nova Sociedade se instalou, em maio, em uma sala cedida pela Cruz Vermelha na Rua Libero Badaró, 28.

29 RELATÓRIO da Sociedade de Assistência aos Lázaros e defesa contra a lepra... 1926/1927, acervo da Biblioteca

Casa de Oswaldo Cruz.

30 No relatório da Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa contra Lepra de 1926-1927, localiza-se a

participação de seu esposo em várias atividades realizadas no ano de 1926. Em abril: “A Directoria da Assistência aos Lázaros e os Srs. Drs. Fausto Ferraz e João Tibiriçá foram, em audiência, previamente marcada pelo Presidente de São Paulo, o Exmo. Sr. Dr. Carlos de Campos, entender-se com S. Excia. sobre importante questão”. Em agosto: “O Dr. João Tibiriçá, na cidade de Socorro fallou sobre a lepra. Em Amparo, realisou no Club 8 de setembro uma conferencia sobre o thema: O problema da Morphéa_ a acção particular e official”. Em outubro: “No intuito de organizar a primeira das delegações do interior, seguiram para Amparo D. Alice Tibiriçá, Snrt. Georgette Pereira e

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colocada no debate nacional como elemento-chave para que o Brasil deixasse de ser “um imenso hospital” e se tornasse efetivamente uma nação moderna.31

Sua presença em iniciativas filantrópicas pode ser associada à condição de parentesco e à situação de prestígio político de que gozava a família de seu esposo. Suas redes familiares lhe conferiram status e poder, permitindo seu reconhecimento como autêntica ‘mulher virtuosa’. Mas, quando Alice resolve aprender a usar a máquina de escrever para redigir artigos, palestras e livros que a deslocaram para o campo dos intelectuais, torna-se objeto da crítica e da zombaria de seu esposo.32 Dizia ele: “Alice, papagaio velho não aprende a falar” (MIRANDA, 2005, p.12). Nessa e em tantas outras manifestações de sentimentos contraditórios dos homens quanto à marcha que desloca as mulheres do ambiente restrito ao lar para o espaço público, há muitas tensões, como as descritas por Suely Gomes Costa (2004). A filantropia, desde sempre, admite e consolida ações femininas no espaço público. Também, com base em costumes e tradições de longa história, estimula iniciativas humanitárias que associam homens e mulheres, em relações de âmbito doméstico e também institucionais, religiosas e laicas, as mais variadas. Por séculos, ela impulsiona ações solidárias. Elas traduzem iniciativas que articulam e alimentam interações entre o mundo privado e o público e que conduzem a diversas iniciativas de proteção social. Como regra social, essas iniciativas se apoiam em processos associativos e sociabilidades de muitos tipos, voltados à proteção social de pessoas em muitas situações de vida.

Alice conta com o apoio de grupos familiares, o que estimula iniciativas e práticas femininas da filantropia, atividade que, além de considerada compatível com a “natureza feminina”, rendia-lhes bons dividendos políticos. Por outro, o exercício dessa e de outras

Dr. João Tibiriçá”. Já no ano de 1927, não consta nenhuma informação quanto à participação do Sr. João Tibiriçá nas atividades da Sociedade. Cf. RELATÓRIO... 1926/1927.

31 Em 1916, em discurso na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, o médico e professor dessa escola,

Miguel Pereira, denunciou as más condições de vida e de saúde do interior do país, assolado por endemias como a malária, a ancilostomíase e a doença de Chagas. Numa época de grande fervor nacionalista, enunciou uma frase que se tornaria célebre e polêmica: “O Brasil é um imenso hospital”. Suas palavras tiveram grande repercussão no debate político e intelectual sobre o país. Tal diagnóstico atualizava a denúncia de Euclides da Cunha quanto ao isolamento e ao abandono dos sertões brasileiros “[...] O movimento sanitarista defendia a ideia de que o ‘atraso’ do Brasil não era resultado do clima tropical ou da composição racial de sua população, mas das doenças que afetavam as áreas rurais e da falta de ação do Estado diante dessa realidade. A campanha reivindicava que o governo federal aumentasse sua intervenção no campo da saúde pública”. (KROPF, 2009. p. 204).

32 O termo zombaria diz respeito à manifestação intencional, maléfica, irônica ou maliciosa, por meio de risos,

de palavras, de atitudes ou gestos com que se procura levar ao ridículo ou expor ao desdém ou menosprezo uma pessoa ou grupo. Sobre o uso da zombaria nas relações de gênero. (SOIHET, 2005).

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atividades vinculadas à vida pública deslocavam as mulheres para a vida pública e para o campo intelectual em geral. E esse movimento era questionado: “Num embate permanente entre as esferas públicas e privadas, tensões e conflitos vividos nessas saídas, foram, por muito tempo, conceituados como próprios a uma presumida oposição natural dos sexos masculino e feminino” (COSTA, 2004, p. 103). Tais tensões e conflitos teriam levado ao fim o casamento entre Alice e João Tibiriçá? Embora não existam na biografia de Alice registros da separação do casal e tenha ela mantido o nome de casada até o fim de seus dias, é de se admitir que essa tensão fora vivida por Alice. Maria Augusta, sua filha, registra indícios dos conflitos vivenciados pelo casal:

Havia traços de afinidades entre meus pais: ambos eram profundamente bons amigos um do outro. Gostavam de música. E sabiam dispensar grande carinho aos filhos. Todavia, a diferença de temperamentos dificultava uma boa estrutura familiar. Ele, boêmio e com visão lírica da vida. Ela, lutadora, atuante, enfrentando os problemas para resolvê-los. Sua própria profissão de engenheiro, em que possuía uma sólida base, ele sacrificou. Durante muitos anos, foi inspetor federal da Escola de Engenharia do Colégio Mackenzie. (MIRANDA, 2005, p. 13).

Em 1939, quando falece João Tibiriçá, residia ele num pequeno apartamento situado nos jardins da residência de sua mãe, na cidade de São Paulo, mas Alice já morava, desde 1937, no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro, onde permaneceria até 1950, ano de sua morte.

Em 1927, já diplomada pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e à frente da Primeira Sociedade Paulista de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra, Alice se muda com a família para uma grande casa em Perdizes. Ali, instala o Instituto de Ciências e Artes Santa Augusta, nome que parece traduzir uma homenagem à sua mãe. Alice tornara-se filantropa e professora. Nesse ambiente em que a casa e o colégio estão sediados no mesmo espaço geográfico, a ideologia das esferas separadas parece diluir-se33. Talvez movida pela imagem ideal de boa mãe, que marca a construção de imagens do feminino, Alice − como muitas mulheres ainda hoje – procurava se equilibrar entre os dois domínios.

33 No importante trabalho de Marina Maluf (1995), é possível perceber no cotidiano das mulheres da elite, na

implantação de fazendas de café no sertão paulista no século XIX, a tênue fronteira que separam as “coisas de dentro” das “coisas de fora”, rompendo-se com a noção da dicotomia entre as esferas pública e privada.

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Nesse seu cotidiano, cuidados com a casa e os filhos, também se estendem para o colégio. No Instituto, funcionava um curso primário, gratuito pela manhã e particular à tarde – com cursos profissionalizantes gratuitos, a cargo de professores cedidos pelo governo. Esses cursos eram direcionados, exclusivamente, às moças da área rural e, neles, eram ensinados bordados, corte e costura, artesanato de flores e culinária. Foi pensando em seus próprios filhos e nas crianças de sua escola, que Alice criou o Clube Infantil, onde, mensalmente, realizava uma festa. Ao se lembrar dessa época, sua filha relata: “Os bailes infantis e reuniões diversas enfeitaram por muito tempo a nossa infância” (MIRANDA, 2005, p. 19). Mas quando seus filhos chegaram à adolescência, as demandas eram outras. Alice, então, resolveu organizar aulas de dança no colégio: “Sempre nas tardes de quarta-feira, os colegas de meu irmão, que todas as noites se reuniam em nossa casa, e um grupo de jovens do colégio e amigas compareciam a essas aulas, era ao mesmo tempo um motivo de festa e prazer para nós” (MIRANDA, 2005, p. 21). Na experiência de Alice, casa e colégio “ou lar e empresa compunham um único e indissociável conjunto; vida doméstica e vida produtiva não estavam tão perfeitamente separadas como sugere a leitura mais formal” (MALUF, 1995, p. 122).

Para Rachel Soihet (2006), embora a atuação feminina na filantropia e na educação fosse convencionalmente aceita pelos homens, as mulheres se apropriam desses espaços de um modo