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PELAS MÃOS DE ALICE

1.1. Uma Bugrinha chamada Alice

Alice era a segunda filha do general do Exército José Florêncio Toledo Ribas e de Maria Augusta Rangel Ribas. Aos catorze anos, seu pai participou da Guerra do Paraguai ao lado de seu avô, o Brigadeiro Manoel Toledo Ribas. Alice nasceu em 9 de janeiro de 1886, na cidade de Ouro Preto, na época capital do Estado de Minas Gerais, onde viveu os primeiros anos de sua infância. Era chamada pela mãe de bugrinha.13 Em seu caderno de memórias, escrito em 1941, a pedido de sua filha, Alice relata que as bonecas nunca a seduziram e os afazeres domésticos nunca a atraíram. Gostava mesmo era de apreciar a natureza e de brincar no trapézio, presente do pai. Foi nessa época, por volta dos dez anos, quando sua irmã estudava no Sion, colégio católico, em Petrópolis, que a escola primária entrou em cena. Alice já sabia ler e escrever e achava a escola monótona: “Não gostava mesmo da escola, quase sem ar e repleta de alunos” (MIRANDA, 2005, p. 8). Diante disso, a mãe lhe propôs estudar com um professor particular, prática bastante comum entre as famílias mais abastadas, o que a deixou radiante.14

Nesse ambiente familiar, pela primeira vez, Alice travou contato com o sentimento de compaixão, descrito por Laqueur (1992)15. Em suas memórias, ela relata, com saudades, as

práticas de ajuda ao próximo desenvolvidas por sua mãe: “Vi aquelas lindas mãos lavando chagas de doentes. Augusta acolhia sempre os que dela necessitavam” (MIRANDA, op. cit., p. 5). Registra também as visitas que fazia aos presos da cadeia pública na companhia de seu primo Lourival: “Foi nessa cadeia que aprendi, singularmente, a essência humana que há em toda criatura. Lá, os detentos faziam, para mim e meu primo, banquinhos envernizados, brinquedos

13 A palavra “bugrinha”, diminutivo feminino da palavra bugre, refere-se, na cultura popular, aos índios

bravios, habitantes da mata. Ela parece indicar o reconhecimento e o aceite de uma conduta insubmissa. Lembro que a palavra também é título do romance de Afrânio Peixoto, publicado em 1922.

14 Ao tratar do papel desempenhado por mulheres da elite rural nas zonas de expansão cafeeira, em São Paulo,

na virada dos séculos XIX/XX, Marina Maluf (1995) registra que o início da instrução masculina e feminina das famílias mais abastadas era no lar.

15 Nessas experiências femininas de “solidariedade”, encontramos indícios do sentimento de compaixão,

descrito por Laqueur (1992) como um imperativo moral de ações mitigatórias. Para este autor, a compaixão não se refere à dor da tragédia, pois, diante desta, não há mais nada a ser feito, mas ao sentimento de identidade na dor, diante de um “sofrimento ou morte, que podiam sob determinadas circunstâncias ter sido evitado ou mitigado”. Laqueur (1992, p.241)

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etc. Em troca, dávamos a eles lápis, tinta e o conforto de nossa presença” (MIRANDA, 2005, p. 10).

Em 1898, a mãe de Alice, em mais um ato de solidariedade, muda-se com as filhas para o Rio de Janeiro, a fim de cuidar de uma irmã doente. Ao chegarem, logo após a Proclamação da República, encontram uma cidade que havia sido “elevada à condição de capital federal e em acelerado processo de expansão e crescimento” (PINHEIRO, 2010, p. 34). Sua casa em Laranjeiras passou, então, a ser uma parada obrigatória dos estudantes de Medicina vindos de Ouro Preto. Entre os estudantes frequentadores da casa, estavam o primeiro namorado de Alice e o jovem Abraão Glasser, que mais tarde seria o esposo de sua irmã Marieta. Nesse ambiente, bastante frequentado por jovens estudantes, é provável que circulassem diversas notícias, muitas novidades e os primeiros experimentos amorosos. Falando dessa convivência, Alice nos conta suas primeiras aventuras amorosas:

Recordo-me de um outro que foi o primeiro namorado de minha vida, embora contasse eu apenas com 12 anos e 6 meses de idade [...]. Tinha eu, entretanto, a aparência de moça feita, pela altura e busto. A ginástica e a vida ao ar livre haviam contribuído para o meu precoce desenvolvimento. (MIRANDA, 2005, p. 10).

A Alice “bugrinha” havia ficado em Ouro Preto, cidade para a qual sua família não mais retornaria. Em 1899, com a morte dos pais, a irmã Marieta se casa com Abraão Glasser, então médico recém-formado.16 O casal se muda para Curitiba e, em seguida, para Ponta Grossa, no Paraná, onde irá clinicar por muitos anos. Alice, então, com 14 anos, foi residir na cidade de São Paulo com “vó Margarida”, sua tia-avó paterna, e com suas duas filhas viúvas, Margarida e Mimi, além do “tio” Max, responsável pela mãe e pelas irmãs. Informa ela: “As tias eram ótimas

16 “Augusta, forte e cheia de vida, com 39 anos. Certo dia, uma indisposição obrigou-a a chamar um grande e

conhecido médico. Optou ele por uma intervenção cirúrgica. Augusta fez-lhe ver que ‘não poderia morrer’, pois as filhas, com 13 e 15 anos, ainda precisavam de seus cuidados. O caso não era grave, tranquilizou-a o cirurgião, mas se impunha o recurso operatório. Este se efetivou a 09 de fevereiro de 1899. Na própria residência da família! [...] terminada a operação, Augusta voltou a acariciar as filhas queridas, a sua bugrinha do coração, já sem forças para as prédicas costumeiras. Aquelas lindas mãos brancas iam-se tornando cada vez mais quentes. A febre a atingia, impiedosa. As horas se passavam numa enervante lentidão. Coração em suspenso, a família esperava daquele organismo jovem o milagre que não se deu. E a 11 de fevereiro, seus olhos se cerraram para sempre”. Em dezembro do mesmo ano de 1899, faleceu no Hospital Central do Exército no Rio de Janeiro o seu pai, o general José Florêncio de Toledo Ribas, que já vinha doente. (MIRANDA, 2005, p. 11).

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criaturas, embora antigas na maneira de pensar e de viver [...] O enorme carinho para com Alice – e vice-versa – fazia com que fosse superada a visível diferença de personalidades”(MIRANDA, 2005, p. 12).

Nessa ambiência e na convivência com as tias, é bem provável que não tenha recebido estímulos para o ingresso no ensino superior. Apoia essa impressão um registro de sua tia sobre uma experiência familiar: “Mimi sacrificou, à errada educação da época, uma vocação literária, alimentada no curto convívio com Cesarino”, o jovem estudante de Direito e abolicionista, tio materno de Alice. Mimi viveu um curto casamento. Ele chegou ao fim com a morte prematura do jovem esposo. É provável que esta família tradicional nem sempre oferecesse um espaço para novos voos femininos. Alice já havia declinado de um convite feito por um professor para cursar o ensino superior na Escola de Ouro Preto: “Muitas vezes falava nisso, depois lamentando um pouco não haver seguido o conselho do mestre” (MIRANDA, 2005, p. 21).

A tão desejada formação profissional só veio anos mais tarde, em 1922. Já casada e com dois filhos, mudou-se, com a família, para uma grande casa que pertencera a Campos Salles, no bairro Santa Cecília em São Paulo17. Foi ali que sua filha a viu pela primeira vez abrir o piano,

iniciando o curso regular no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.18 O ingresso nesta

instituição pode ter significado - e certamente foi - o relacionamento cotidiano e mais próximo com o mundo cultural. É neste espaço que o afetivo e o ideológico se encontraram. Como aluna, torna-se pessoa “dileta de Mário de Andrade”, um dos líderes do movimento modernista e ícone da Semana de Arte Moderna de 1922.19 Nesse ambiente, é bem provável que Alice tenha sido

17 Campos Salles foi Presidente do Estado de São Paulo em 1896-1897 e Presidente da República entre 1898 –

1902.

18 “… Cerca de 80% dos estudantes formados pela instituição eram alunos de piano, o gosto pelo instrumento

era uma verdadeira mania no início do século, uma ‘pianolatria’ como a chamou Mario de Andrade”. Cf. RIBEIRO, Elizabeth Azevedo. Conservatório Dramático e Musical de São Paulo: pioneiro e centenário. Disponível em: < http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao16/materia01/texto01.pdf>.

19 Mario de Andrade se diplomou no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, onde lecionou durante

toda sua vida. “No começo dos anos vinte, quando se insurgia, desassombradamente, contra o conservadorismo que dominava a nossa linguagem literária, o moço ousado que demolia preconceitos ficou seriamente preocupado ao ser chamado de “futurista” num artigo de Oswald de Andrade, porque teve medo de, com o escândalo, perder os alunos das aulas de piano que ministrava (e que lhe assegurava seu sustento)”. (KONDER, 1991).

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influenciada pelas ideias modernistas em circulação na sociedade brasileira das primeiras décadas do século XX.20

A relação de Alice com o mundo das artes também estará presente no espaço privado. O esposo, “exímio no violoncelo, costumava convidar um colega violonista e, então, nossa casa recebia amigos e parentes para um recital, com Alice ao piano” (MIRANDA, 2005, p. 16). A casa se transformava num grande sarau e, também, em um espaço de fermentação e circulação de ideias, onde Alice ganhava visibilidade como pianista. Nessa experiência vivenciada na década de 1920, período de gênese da industrialização brasileira e de emergência da burguesia brasileira, há similaridades com a análise de Hobsbawm (2013) sobre a questão da cultura e gênero na burguesia europeia, entre 1870 e 1914, quando nela observa: “(...)foi uma mudança na estrutura da própria burguesia que tornou a cultura uma característica definidora mais central dessa classe, e que enfatizou o papel da mulher dentro dela” (p. 134). A cultura se tornará marca de identificação de classe.

Após se formar em 1927, Alice chegou a lecionar no Conservatório, mas acabou trocando a carreira pelas atividades filantrópicas, como nos conta sua filha:

Insensivelmente, foi trocando horas de estudo de piano pelo atendimento da causa. Os leprosos, todavia, reclamavam mais e mais a sua presença. Aos poucos, fui deixando de ouvir, ao deitar-me, Chopin, Liszt, Beethoven ou Mozart, na já exímia execução de minha mãe. Confesso que isso me custou bastante. Durante muito tempo, ficava deitada, ouvidos à escuta, com esperança. Mas tive que ir me acostumando a ver minha mãe, pela noite adentro, à mesa, escrevendo uma conferência, organizando um trabalho pela causa. Maravilhosa criatura. (MIRANDA, 2005, p. 17).

A ausência de curso superior não a impediu, anos mais tarde, de circular pelos meios acadêmicos e políticos. Suas atividades filantrópicas junto aos lázaros a puseram em contato com o mundo, consolidando um vasto capital social e moral. Foi esse ambiente que a capacitou, em um sentido amplo, para o exercício de suas atividades intelectuais21.

20 Para Gomes (1993, p. 63), “o modernismo deve ser entendido como um movimento de ideias renovadoras

que estabelece fortes conexões entre arte e política, e que é caracterizado por uma grande heterogeneidade.”

21 Este estudo segue sugestões teóricas de Jean François Sirinelli (2003 a e b). Este autor destaca duas

acepções de intelectuais: uma ampla e sociocultural, englobando os criadores e os “mediadores” culturais; a outra mais estreita, baseada na noção de engajamento político. Segundo Gontijo (2005, p.263), estas acepções não são

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