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2 DIREITO AO ESQUECIMENTO: A COLISÃO ENTRE A LIBERDADE DE

2.3 Análise das decisões proferidas pelos Tribunais brasileiros:

2.3.1 Enfrentamento pelo Superior Tribunal de Justiça: Chacina de Candelária

Em maio de 2013 o Superior Tribunal de Justiça julgou dois casos ligados ao direito ao esquecimento, sendo estes considerados paradigmáticos para o reconhecimento do instituto pela jurisprudência brasileira. O resultado dos recursos foi diferente, mas o desfecho da discussão acerca da aplicabilidade do direito ao esquecimento frente ao nosso ordenamento jurídico foi convergente. Tratam-se dos casos Chacina de Candelária (Resp 1.334.097/RJ) e Aída Curi (Resp 1.335.153/RJ).

Ambos os casos foram propostos visando a condenação da TV Globo Ltda ao pagamento de indenizações pelo desrespeito dos direitos de personalidade, especialmente o de ser deixado em paz, usado de forma sinônima do direito ao esquecimento. Os casos foram apreciados pela corte superior em razão do reconhecimento da relevância temática, considerando a criação de um conceito inovador na ordem jurídica do país.

A Chacina de Candelária ocorreu em julho de 1993, no centro da cidade do Rio de Janeiro, quando um ataque policial foi dirigido a mais de cinquenta pessoas,

na sua imensa maioria crianças e adolescentes que estavam dormindo nas imediações da Igreja da Candelária, tendo seis jovens e dois adultos falecido. O autor da ação, que pleiteou o direito ao esquecimento, foi indiciado, denunciado e submetido à júri popular como coautor do crime, tendo sido absolvido pela unanimidade dos jurados por negativa de autoria.

Após treze anos, o programa de televisão Linha Direta-Justiça fez um programa dedicado ao caso da Chacina de Candelária, relembrando os detalhes do crime. O sujeito apontado como partícipe do delito, e absolvido posteriormente, foi procurado para conceder entrevista e se recusou, bem como manifestou contrariedade à exibição de sua imagem no programa.

De toda forma, o programa foi ao ar e fez menção ao indivíduo como um dos investigados e denunciados pelo crime, citando ao final sua absolvição. Conforme informações contidas no acórdão, o indivíduo narrou em ação indenizatória ajuizada que sofreu inúmeros prejuízos em sua vida pessoal e profissional em razão da matéria:

Alega que essa situação lhe prejudicou sobremaneira em sua vida profissional, não tendo mais conseguido emprego, além de ter sido obrigado a desfazer-se de todos os seus bens e abandonar a comunidade para não ser morto por "justiceiros" e traficantes e também para proteger a segurança de seus familiares (BRASIL, 2013a, p. 1).

O autor narrou, ainda, que a situação já havia sido superada pelo público em razão do decurso de anos, e que a divulgação do seu nome e sua imagem reabriram a discussão sobre os fatos, causando-lhe inúmeros prejuízos, motivo pelo qual ajuizou ação indenizatória. Em primeiro grau, a ação foi julgada improcedente, sendo reformada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro posteriormente.

Sobreveio, então, Recurso Especial acerca da aplicação (reconhecimento, na época) do direito ao esquecimento, sendo parte da extensa ementa do acórdão do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Resp. nº 1.334.097/RJ:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE IMPRENSA VS. DIREITOS DA PERSONALIDADE. LITÍGIO DE SOLUÇÃO TRANSVERSAL. [...] DIREITO AO ESQUECIMENTO DOS

CONDENADOS QUE CUMPRIRAM PENA E DOS ABSOLVIDOS.

ACOLHIMENTO. DECORRÊNCIA DA PROTEÇÃO LEGAL E

CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DAS LIMITAÇÕES POSITIVADAS À ATIVIDADE INFORMATIVA.PRESUNÇÃO

LEGAL E CONSTITUCIONAL DE RESSOCIALIZAÇÃO DA

PESSOA.PONDERAÇÃO DE VALORES. PRECEDENTES DE DIREITO COMPARADO. [...] 3. No caso, o julgamento restringe-se a analisar a adequação do direito ao esquecimento ao ordenamento jurídico brasileiro, especificamente para o caso de publicações na mídia televisiva, porquanto o mesmo debate ganha contornos bem diferenciados quando transposto para internet, que desafia soluções de índole técnica, com atenção, por exemplo, para a possibilidade de compartilhamento de informações e circulação internacional do conteúdo, o que pode tangenciar temas sensíveis, como a soberania dos Estados-nações. [...] 12. Assim como é acolhido no direito estrangeiro, é imperiosa a aplicabilidade do direito ao esquecimento no cenário interno, com base não só na principiologia decorrente dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, mas também diretamente do direito positivo infraconstitucional. A assertiva de que uma notícia lícita não se transforma em ilícita com o simples passar do tempo não tem nenhuma base jurídica. O ordenamento é repleto de previsões em que a significação conferida pelo Direito à passagem do tempo é exatamente o esquecimento e a estabilização do passado, mostrando-se ilícito sim reagitar o que a lei pretende sepultar. Precedentes de direito comparado .[...].16. Com efeito, o reconhecimento do direito ao esquecimento dos condenados que cumpriram integralmente a pena e, sobretudo, dos que foram absolvidos em processo criminal, além de sinalizar uma evolução cultural da sociedade, confere concretude a um ordenamento jurídico que, entre a memória - que é a conexão do presente com o passado - e a esperança - que é o vínculo do futuro com o presente -, fez clara opção pela segunda. E é por essa ótica que o direito ao esquecimento revela sua maior nobreza, pois afirma-se, na verdade, como um direito à esperança, em absoluta sintonia com a presunção legal e constitucional de regenerabilidade da pessoa humana. [...] 18. No caso concreto, a despeito de a Chacina da Candelária ter se tornado - com muita razão - um fato histórico, que expôs as chagas do País ao mundo, tornando- se símbolo da precária proteção estatal conferida aos direitos humanos da criança e do adolescente em situação de risco, o certo é que a fatídica história seria bem contada e de forma fidedigna sem que para isso a imagem e o nome do autor precisassem ser expostos em rede nacional. Nem a liberdade de imprensa seria tolhida, nem a honra do autor seria maculada, caso se ocultassem o nome e a fisionomia do recorrido, ponderação de valores que, no caso, seria a melhor solução ao conflito.[...] (BRASIL, 2013a)

Em seu voto, o relator observa que o debate da questão versa sobre um conflito de valores e direitos que não é recente, mas se intensificou com a evolução tecnológica e, por tal motivo, merece ser analisado pela Corte superior. Argumenta que o direito ao esquecimento deve, assim como se faz em outros países, ser aplicado por estar em consonância com valores protegidos constitucionalmente, servido inclusive como forma de reparação para violações ocorridas.

Aponta que o interesse público existente em relação aos crimes não pode servir como única justificativa para a veiculação de notícias que sistematicamente

violam a privacidade de um indivíduo, ainda mais quando não está presente a contemporaneidade do fato. No caso, entendeu-se que o crime é fato histórico e pode ser noticiado, mas para que a história do delito fosse contada o nome e a imagem do indivíduo não precisariam estar vinculadas, motivo pelo qual deve ser aplicado o direito ao esquecimento.

O direito ao esquecimento foi conceituado, no voto do relator, como:

O direito de não ser lembrado contra a sua vontade, especificamente no tocante a fatos desabonadores, de natureza criminal, nos quais se envolveu, mas que, posteriormente, fora inocentado” (BRASIL, 2013a, p. 14).

O posicionamento unânime do Tribunal da Cidadania foi, desta forma, pela limitação da liberdade de imprensa em caso de colisão com o direito da privacidade, ponderando princípios para que, com base na razoabilidade, direitos de personalidade se sobressaíssem.

Outro caso de muita repercussão nacional, que reconheceu a tese do direito ao esquecimento, é o caso Aída Curi, decorrente do homicídio de Aída, ocorrido em 1958, quando esta possuía apenas 18 anos de idade. A história do crime ficou conhecida nacionalmente em razão da crueldade de como ocorreram os fatos, amplamente divulgados pela mídia na época.

Da mesma forma que o caso anterior, este também foi relembrado pelo programa Linha Direta-Justiça, da Rede Globo, sendo a história que envolveu o crime recontada. Os irmãos da vítima ingressaram com ação indenizatória em face da emissora, alegando a abertura de uma antiga ferida na família, que já havia sido superada pelo tempo, causando danos à imagem da falecida.

Neste caso, o conceito de direito ao esquecimento remete ao sofrimento dos familiares em decorrência de rememoração de um fato. O desfecho do recurso foi diferente do anterior, embora julgados no mesmo dia.

Entendeu o relator, acompanhado pela maioria dos ministros, que o fato não poderia ser contado sem a presença da vítima na narrativa, sendo crime histórico de amplo interesse público. E, que não foram vislumbrados danos à imagem da vítima ou de seus familiares em razão da matéria jornalística.

Assim, não seria aplicável o direito ao esquecimento no caso em razão de se tratar de fato de domínio público. Impossível seria, segundo o ministro, relatar o caso Aída Curi sem sua personagem principal, Aída Curi (BRASIL, 2013b, p.40).

Ao contrário do caso Chacina de Candelária, no caso Aída Curi o relator entendeu que o tempo não justificava o esquecimento do fato, mas permitia aos familiares da vítima que o seu sofrimento fosse minimizado, ainda mais quando a reportagem foi fiel ao ocorrido na época. Colaciona-se, por oportuno a ementa do julgamento do caso, proferida nos autos do Resp 1.335.153/RJ:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE IMPRENSA VS. DIREITOS DA PERSONALIDADE. LITÍGIO DE SOLUÇÃO TRANSVERSAL. COMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DOCUMENTÁRIO EXIBIDO EM REDE NACIONAL. LINHA

DIRETA-JUSTIÇA. HOMICÍDIO DE REPERCUSSÃO NACIONAL

OCORRIDO NO ANO DE 1958. CASO "AIDA CURI". VEICULAÇÃO, MEIO SÉCULO DEPOIS DO FATO, DO NOME E IMAGEM DA VÍTIMA. NÃO CONSENTIMENTO DOS FAMILIARES. DIREITO AO ESQUECIMENTO.

ACOLHIMENTO. NÃO APLICAÇÃO NO CASO CONCRETO.

RECONHECIMENTO DA HISTORICIDADE DO FATO PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. IMPOSSIBILIDADE DE DESVINCULAÇÃO DO NOME DA VÍTIMA. ADEMAIS, INEXISTÊNCIA, NO CASO CONCRETO, DE DANO MORAL INDENIZÁVEL. VIOLAÇÃO AO DIREITO DE IMAGEM. SÚMULA N. 403/STJ. NÃO INCIDÊNCIA. [...] 5. Com efeito, o direito ao esquecimento que ora se reconhece para todos, ofensor e ofendidos, não alcança o caso dos autos, em que se reviveu, décadas depois do crime, acontecimento que entrou para o domínio público, de modo que se tornaria impraticável a atividade da imprensa para o desiderato de retratar o caso Aida Curi, sem Aida Curi. [...] 7. Não fosse por isso, o reconhecimento, em tese, de um direito de esquecimento não conduz necessariamente ao dever de indenizar. Em matéria de responsabilidade civil, a violação de direitos encontra-se na seara da ilicitude, cuja existência não dispensa também a ocorrência de dano, com nexo causal, para chegar-se, finalmente, ao dever de indenizar. No caso de familiares de vítimas de crimes passados, que só querem esquecer a dor pela qual passaram em determinado momento da vida, há uma infeliz constatação: na medida em que o tempo passa e vai se adquirindo um "direito ao esquecimento", na contramão, a dor vai diminuindo, de modo que, relembrar o fato trágico da vida, a depender do tempo transcorrido, embora possa gerar desconforto, não causa o mesmo abalo de antes. 8. A reportagem contra a qual se insurgiram os autores foi ao ar 50 (cinquenta) anos depois da morte de Aida Curi, circunstância da qual se conclui não ter havido abalo moral apto a gerar responsabilidade civil. Nesse particular, fazendo-se a indispensável ponderação de valores, o

acolhimento do direito ao esquecimento, no caso, com a consequente indenização, consubstancia desproporcional corte à liberdade de imprensa, se comparado ao desconforto gerado pela lembrança. (BRASIL, 2013b)

Como se vê na Ementa do julgado, embora não aplicado, houve o reconhecimento do direito ao esquecimento também neste acórdão. Entendeu-se, mais uma vez, que o direito ao esquecimento é um importante instituto para que fatos passados e desabonadores não sejam relembrados, mas que não poderia ser aplicado no caso concreto em razão da inexistência de danos e pelo interesse público prevalecer.

Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu, nos dois casos, a existência do direito ao esquecimento e a possibilidade de sua aplicação em nosso ordenamento jurídico. No entanto, entenderam que fatos históricos que se perpetuaram no tempo, como o caso do assassinato de Aída Cury ocorrido em 1958, já é de domínio público e, portanto, não foi considerado como violação aos direitos da referida ou de seus familiares.

Ainda restou estabelecida a necessidade de ponderação entre os princípios constitucionais existentes no caso concreto, além do decurso de tempo e do interesse público que envolvia o fato, sendo os critérios utilizados e aperfeiçoados pelos Tribunais de Justiça.

2.3.2 Enfrentamento pelos Tribunais de Justiça: Parâmetros estabelecidos para