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2 DIREITO AO ESQUECIMENTO: A COLISÃO ENTRE A LIBERDADE DE

2.3 Análise das decisões proferidas pelos Tribunais brasileiros:

2.3.2 Enfrentamento pelos Tribunais de Justiça: Parâmetros estabelecidos para

Diante do reconhecimento, por Tribunal Superior, da possibilidade de aplicação do direito ao esquecimento no Brasil, os Tribunais Estaduais de Justiça passaram a enfrentar o tema com maior frequência, da mesma forma que a aplicação do instituto em casos concretos passou a ser amplamente utilizada. Seguindo os mesmos parâmetros da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a análise dos Tribunais de Justiça se dá de forma mais ampla e debate não apenas as normas jurídicas aplicáveis, mas os casos em si.

A aplicação do direito ao esquecimento, em grande parte da jurisprudência, aparece vinculada ao princípio da dignidade da pessoa humana. Como já debatido, a íntima relação entre os temas permite que o princípio seja visto como condicionante à aplicação do direito ao esquecimento.

Trata-se de uma vinculação que objetiva, principalmente, demonstrar que o fator que possibilita a aplicação do direito ao esquecimento quando conflitante com a liberdade de informação e a supremacia da dignidade da pessoa que está com sua privacidade maculada.

Nesse sentido colaciona-se ementa de jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (2019):

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. GOOGLE. FERRAMENTA DE PESQUISA. EXCLUSÃO DE VOCÁBULO. DIREITO AO ESQUECIMENTO. APLICAÇÃO NO CASO CONCRETO. Ao colocar à disposição ferramenta de pesquisa, não é crível que o gestor sobre ela não possa exercer o controle necessário, notadamente a fim de coibir abusos na sua utilização. Tanto é assim que, instada a excluir determinada expressão na busca, a apelante informa ter cumprido a determinação jurisdicional correlata. O direito ao esquecimento, por outro lado, é decorrência do metaprincípio da dignidade da pessoa humana, de sorte que a ausência de previsão legal não mitiga sua aplicabilidade. RECURSO DESPROVIDO (RIO GRANDE DO SUL, 2018)

Oportuno, por conseguinte, destacar parte do acórdão do caso acima ementado, onde a relatora, Desembargadora Deborah Coleto Assumpção de Moraes, associa o direito ao esquecimento ao princípio da dignidade da pessoa humana e afasta alegações de ausência de previsão legal para a aplicação do instituto:

O direito ao esquecimento, por outro lado, ao revés, não prescinde de legislação escrita, sobretudo porque é decorrência do metaprincípio da dignidade da pessoa humana, o qual fez o legislador constituinte inserir no texto constitucional a vedação à perpetuidade da pena. (RIO GRANDE DO SUL, 2019, p. 18)

Possível perceber, então, que a ponderação entre direitos de personalidade e a liberdade de informações se faz, principalmente, por parte da análise da preponderância da dignidade da pessoa humana. Isso se deve, em síntese, ao fato

de que todos os indivíduos devem ter garantida a vida em sociedade da forma honrosa e que lhes permita o livre exercício de seus direitos.

Da colisão de princípio e garantias fundamentais surge, também, o debate do interesse público acerca do fato debatido no caso concreto. Assim, sendo a informação de natureza privada e livre do interesse da coletividade, devem prevalecer os direitos de personalidade, com a aplicação do direito ao esquecimento.

Quando houver interesse da coletividade nas informações, não haveria o que se argumentar acerca da aplicação do instituto que se estuda no presente trabalho. Ocorre que, cabe ao provedor das informações demonstrar o interesse público pela veiculação de qualquer fato vinculado a um indivíduo.

Conceituando, a doutrina administrativa estabelece que quando houver maior interesse público, os direitos do indivíduo devem ceder, não importando se advindos do Estado ou da sociedade (CARVALHO FILHO, 2012, p. 32). Por óbvio que o interesse não deve ser confundido com a curiosidade, pois embora alguns acontecimentos despertem curiosidade, não haverá minimização dos direitos de personalidade inerentes ao indivíduo.

A análise do interesse público, desta forma, deve passar pela utilidade da informação, se esta trará benefícios à sociedade. A utilidade nos leva à discussão acerca da atualidade da informação e do fato. Em casos, muito embora exista o interesse coletivo na informação, este não abrange o indivíduo vinculado à notícia, de modo que não deverá ser exposto.

Nas palavras de Marina Giovanetti Lili Lucena (2019, p. 93):

Esse entendimento se justifica porque, segundo a ponderação de direitos, somente será válida a divulgação de informação que causa dano ao titular se houver justificativa razoável, qual seja, a disponibilização de conteúdo que seja vantajoso à sociedade.

O entendimento jurisprudencial dos Tribunais de Justiça dos Estados de todo o Brasil caminha na mesma direção quando se trata do direito ao esquecimento. Por oportuno, veja-se o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. TUTELA PROVISÓRIA. DIREITO AO ESQUECIMENTO. IMPUTAÇÃO DE FATO CRIMINOSO. POSTERIOR

ABSOLVIÇÃO. NECESSIDADE DE DESVINCULAÇÃO, EM

PROVEDORES DE PESQUISA NA INTERNET, DO NOME DO AGRAVANTE AO FATO DESABONADOR. PRECEDENTE DO STJ.

RECURSO PROVIDO. I – É evidente que o direito ao esquecimento pode

incorrer em algum tipo de choque com o direito à informação. Sendo assim, a proteção da dignidade humana e o da liberdade de expressão e informação constituem preceitos de estatura constitucional e, portanto, requerem solução que abrigue a coexistência de ambas as garantias, tal como preconiza a técnica da ponderação e o princípio de interpretação da concordância prática ou harmonização. II - O contexto fático dos autos revela que o agravante foi acusado de participação em ação criminosa de grande repercussão. Contudo, foi absolvido da acusação que lhe havia sido imputada. III - O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em caso muitíssimo semelhante, entendeu pelo rompimento do vínculo digital existente entre o nome da pessoa e a situação depreciativa, sem que as notícias outrora publicadas fossem excluídas. IV – Adota-se o referido entendimento, pois, de um lado, resguarda o interesse da coletividade ao manter o conteúdo das publicações na rede de computadores e, de outro lado, assegura o direito à intimidade e ao esquecimento do agravante ao desvincular os seus dados pessoais dos critérios de pesquisa relativos ao fato desabonador. V – Agravo de Instrumento conhecido e provido. (AMAZONAS, 2019).

Como referido, a utilidade da informação, que consagra o interesse público, passa pela análise do decurso de razoável lapso temporal entre o fato e o momento em que se pede a aplicação do direito ao esquecimento. Tal análise se aplica para casos em que o fato será relembrado por nova matéria, como a Chacina de Candelária anteriormente abordada, e até mesmo para casos em que a notícia apenas permanece na rede, podendo ser acessada qualquer momento.

O lapso temporal é requisito à aplicação do direito ao esquecimento, caso contrário apenas se defenderiam os direitos de personalidade, sem menção ao instituto aqui abordado. Segundo Consalter (2017, p. 297), a falta de contemporaneidade da informação é que possibilita a aplicação do direito ao esquecimento.

Neste ponto, pode-se referir o caso de Aída Curi, ocorrido em 1958, pois entenderam os julgadores do STJ que haveria violação de direitos se a referida ainda estivesse viva, pois ponderando sobre os prejuízos trazidos à vítima, percebe-

se que não houve por parte da divulgação do caso, exploração midiática e nem conflito de interesses, diferentemente dos casos colacionados (BRASIL, 2013b).

Embora não haja uma definição exata do período de tempo necessário para a aplicação do direito ao esquecimento, é possível perceber que a jurisprudência analisa o caso concreto e, concomitantemente, a ocorrência de razoável prazo. Nas ementas que seguem colacionadas, por exemplo, se denegou a pretensão em caso no qual decorreram apenas dois anos entre a notícia e o ajuizamento da demanda, e foi acolhido o pedido em caso com lapso temporal de dez anos.

Com relação ao tema, o TJ/RS, no julgamento do Agravo de Instrumento nº 70064859291, tem o seguinte entendimento:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. SUBCLASSE RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. PEDIDO DE ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. RETIRADA DE NOTÍCIA VEICULADA PELA RÉ EM SEU SITE. REQUISITOS DO ART. 273 DO CPC NÃO PREENCHIDOS. DECISÃO DENEGATÓRIA CONFIRMADA. 1. Para concessão do pedido de antecipação de tutela, necessário o preenchimento dos requisitos do art. 273 do CPC. 2. A notícia veiculada pela ré sobre a qual recai a pretensão de exclusão prima facie está acobertada pelo direito à informação, sendo este preponderante, nas particularidades do caso, aos alegados direitos à intimidade, honra e imagem. 3. Ademais, além da ausência de verossimilhança do direto alegado, não se pode falar em risco de lesão grave e de difícil reparação decorrente da manutenção da notícia na rede mundial de computadores, sobretudo se ponderarmos que a publicação da notícia ocorreu em 19/04/2013 e a presente ação foi ajuizada mais de dois anos depois, tão somente em 22/04/2015, lapso temporal que sequer seria suficiente para se cogitar do direito ao esquecimento Agravo de instrumento desprovido. (RIO GRANDE DO SUL, 2015).

Demonstrado está que o juízo de ponderação de interesses e o lapso temporal entre o fato ocorrido e sua divulgação precisam ser analisados de forma que o direitos à intimidade, honra e imagem sejam alegados para a obstrução da liberdade de expressão e o direitos à informação seja cerceado. Cada caso é um caso e o julgador utiliza-se do princípio do livre convencimento1 para efetuar suas considerações.

1 O princípio do livre convencimento regula a apreciação e a avaliação das provas existentes nos

autos, indicando que o juiz deve formar livremente sua convicção Situa-se entre o sistema da prova legal e o julgamento secundum conscientizam. O primeiro (prova legal) significa atribuir aos elementos probatórios valor inalterável e prefixado, que o juiz aplica mecanicamente. O segundo se coloca no polo oposto: o juiz pode decidir com base nos autos, mas também sem provas e até mesmo contra a prova.( Araújo, Pellegrini e Rangel, 2013, p 98)

Nesse contexto, em decisão recente, o Tribunal de Justiça de São Paulo, na Apelação Cível nº 1012023-15.2018.8.26.0071, assim decidiu:

AÇÃO COMINATÓRIA PROPOSTA CONTRA EMPRESA JORNALÍSTICA. PLEITO DE EXCLUSÃO DE NOTÍCIA VEICULADA E MANTIDA PELA RÉ EM SITE. RECURSO DE APELAÇÃO INTERPOSTO CONTRA A R.

SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. PRETENSÃO

ACOLHIDA. FATOS NOTICIADOS (SOBRE SUPOSTA PRÁTICA DE TRABALHO ESCRAVO PELO REQUERENTE) OCORRIDOS HÁ MAIS DE 10 ANOS. APELANTE ABSOLVIDO DA IMPUTAÇÃO. DIREITO À INFORMAÇÃO QUE NÃO MAIS SUBSISTE. AUSÊNCIA DE INTERESSE PÚBLICO NA MANUTENÇÃO DA NOTÍCIA NA REDE MUNDIAL DE

COMPUTADORES. APLICAÇÃO DA TEORIA DO DIREITO AO

ESQUECIMENTO. PRECEDENTES DESTE TRIBUNAL E DO ETJ SOBRE O TEMA. SENTENÇA REFORMADA PARA JULGAR PROCEDENTE O PEDIDO. RECURSO PROVIDO. (SÃO PAULO, 2020).

Ainda, deve-se atentar para a preservação dos direitos de personalidade dos indivíduos quando levados à discussão. Sabe-se que esses direitos não são absolutos e com frequência entram em colisão com outros direitos fundamentais, entretanto, sempre que possível os direitos de personalidade devem preponderar.

Uma das características do direito ao esquecimento é o embate entre direitos fundamentais amplamente protegidos pela legislação constitucional e infraconstitucional. Entretanto, ao efetivar a proteção dos direitos de personalidade é possível impor limites à invasão da privacidade do indivíduo para a divulgação de fatos relacionados à sua vida.

Por se tratarem de direitos de mesmo status constitucional, a questão é complexa e movimenta o debate da doutrina e jurisprudência. A decisões acertadas ponderam os direitos, não afastando previamente nenhum deles, mas analisando qual é mais relevante no caso concreto, como já abordado no primeiro capítulo do trabalho.

A importância, contudo, de preservar os direitos de personalidade está ligada ao potencial dano que pode ser causado ao indivíduo pela divulgação de notícias que maculem sua honra e sua imagem. A relação, como no direito do consumidor, é desequilibrada, uma vez que o alcance de notícias publicadas na internet ou

veiculadas na mídia é muito grande, podendo causar danos irreversíveis à pessoa que está envolvida na notícia, não se podendo afirmar que eventual direito de resposta teria a mesma ressonância e seria suficiente para minorar os danos.

Por tais motivos é que a análise da colisão dos direitos fundamentais deve atentar para a preponderância dos direitos ligados ao indivíduo, preservando sua dignidade e possibilitando que tenha uma vida em sociedade. A jurisprudência busca, desta forma, a ponderação entre os direitos fundamentais e, sempre que possível, sinaliza para a proteção dos direitos de personalidade. Trata-se de mais um dos papeis desemprenhados pelos Tribunais de Justiça dos Estados, responsáveis pela maior parte dos julgados sobre o tema.

Veja-se, por exemplo, o Acórdão 1221745 (DISTRITO FEDERAL, 2020):

CONSTITUCIONAL. Direito à informação e à liberdade de imprensa (CF, Artigo 220 e Artigo 5º, IX). Direito à honra e à imagem (CF, Artigo 1º, III; Artigo 5º, IV, X, XIV). Aparente atrito entre valores de grandeza constitucional. Princípio da ponderação dos interesses no caso concreto. Prevalência à proteção do direito ao esquecimento: decorrência do direito ao desenvolvimento da personalidade (CF, Artigo 1º, III c/c Lei n. 12.965/2014, Artigo 2º, inciso II). [...] O direito fundamental à liberdade da imprensa constitui um dos pilares de nossa liberdade democrática e cidadania. Configura, pois, direito insofismável de todo cidadão poder estar bem informado (CF, Artigo 220, caput). B. Esse direito, no entanto, não se reveste de caráter absoluto, pois deve coexistir harmonicamente com a tutela da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, e com respeito a valores éticos e sociais da pessoa e da família (CF, Artigo 220, §§ 1º e 3º c/c Artigo 1º, III e Artigo 5º, IV, X e XIV). C. No aparente o atrito entre valores de igual grandeza constitucional (liberdade de imprensa x garantia individual) deverá o intérprete preferir, a partir da ponderação dos interesses no caso concreto, a proteção ao direito que se apresentar mais sensível à vocação antropocêntrica da Carta Magna, qual seja, a proteção à dignidade da pessoa humana. [...] não resulta proporcional a manutenção da informação, tal qual publicada e que lhe faz referência, por atualmente afetar a honra objetiva e a imagem dele (CF, Artigo 5º, X), a quem deve ser prestigiada a tutela do direito ao esquecimento a título de desdobramento do direito ao desenvolvimento à personalidade (Lei n. 12.695/14, Artigo 2º, II), eixo da dignidade humana (CF, Artigo 1º, III). J. No cenário atual do nosso ordenamento jurídico, urge a proteção da honra objetiva, no caso concreto, em todos os seus quadrantes. Legítimo o direito do requerido ao esquecimento de seus dados pessoais relacionados a tais informações, dada a ausência de razões especiais a justificarem o interesse preponderante do público.

Pode-se perceber, pelos julgados colacionados, que o direito ao esquecimento está sendo recepcionado pela jurisprudência em nosso país, com aplicação firme e coesa. Não se vê unanimidade na aplicação do instituto, mas a

discussão acerca da necessidade de ponderação de direitos de status constitucional para a solução de demandas da sociedade.

Assim, os Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal encontram- se enfrentando o tema do direito ao esquecimento com frequência, inclusive fazendo sua aplicação em consonância com o ordenamento jurídico.

Destaca-se o papel dos Tribunais de Justiça na análise de casos concretos, ponderando os direitos em debate e criando perspectivas e critérios para a aplicação do direito ao esquecimento, além de adotar os parâmetros já estabelecidos pelo Superior Tribunal de Justiça, o que demonstra a construção de teses defensivas e garantidoras dos direitos fundamentais.