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2 DIREITO AO ESQUECIMENTO: A COLISÃO ENTRE A LIBERDADE DE

2.1 Origem e conceito do direito ao esquecimento

Os direitos de personalidade, amplamente tutelados pelo ordenamento jurídico nacional e internacional, acarretaram o surgimento de uma nova espécie de direito, que se expande entre as diversas áreas jurídicas. O direito ao esquecimento, através de aplicação no caso concreto, busca assegurar que fatos desabonadores ligados à vida de um indivíduo não sejam eternizados, que não haja perpetuação, tem por finalidade a proteção “[...] do escárnio na memória coletiva da sociedade e,

com isso, inibir o progresso daquele que se atribui a desonra” (RULLI JUNIOR e RULLI NETO, 2013).

Neste ponto, os esclarecimentos de Alexandre Freire Pimentel e Mateus Cardoso (2019, p. 47) são elucidativos:

A problemática do direito ao esquecimento na Internet está diretamente relacionada com a velocidade da difusão da informação telemática e, sobretudo, com a dificuldade de supressão dos conteúdos postados, por terceiros e pelo próprio usuário. É, precisamente, a instantaneidade informativa no espaço virtual que estampa em cada um de nós uma marca quase indelével acerca do que somos, do que fazemos e, também, pelo que dizem a nosso respeito.

Por estar diretamente ligado a direitos e garantias fundamentais inerentes ao indivíduo, existem diversos casos antigos que aplicaram os fundamentos do direito ao esquecimento. Não se pode, contudo, classificá-los como marco inicial da origem do direito em debate, uma vez que não foram utilizados na construção do conceito hoje conhecido e aplicado em nosso país.

Levando-se em conta que o objetivo do presente trabalho não é analisar os casos que utilizaram o embasamento jurídico hoje usado pelo direito ao esquecimento, mas sim aqueles que auxiliaram na sua efetiva construção como o direito esquecer e ser esquecido, é que se passa a análise de casos emblemáticos e pioneiros na origem histórica do direito ao esquecimento. Embora sua atuação tenha ganhado relevância na sociedade em que vivemos, diante do superinformacionismo, pode-se considerar que seu surgimento deu-se na Califórnia, em 1931, através do caso “Red Kimono”, situação em que o Tribunal Americano acolheu o pedido da parte autora de reparação por violação da vida privada, reconhecendo o direito ao esquecimento, tendo em vista que os fatos pretéritos não deveriam ser eternamente lembrados.

Referido caso envolvia a vida pregressa de Grabrielle Darley, prostituta que foi acusada por homicídio, posteriormente absolvida na ação criminal. A acusada criminalmente, que sofreu exposição pela mídia na época dos fatos, casou-se posteriormente e constituiu família, abandonando a prostituição. A Corte californiana, atendendo pedido do marido de Gabrielle, que entrara com ação de reparação por

conta da alegada violação à vida privada da família, entendeu que uma pessoa tem o direito à felicidade, que inclui estar livre de ataques a seu caráter, posição social ou reputação (FIDALGO, 2015).

O caso mais emblemático e marcante do direito ao esquecimento, por sua vez, ocorreu na Alemanha, sendo popularmente conhecido como caso “Lebach”:

Consta que, no ano de 1969, quatro soldados alemães foram assassinados em uma pequena cidade daquele país chamada Lebach. Ao final do processo três réus foram condenados, sendo que a dois deles foi imposta a pena de prisão perpétua e ao terceiro, restou uma condenação a seis anos de reclusão. Nos últimos dias de cumprimento de sua pena de seis anos, o condenado soube que determinada emissora de TV pretendia exibir um programa dedicado exclusivamente a falar sobre o crime, no qual seriam expostos imagens e nomes dos condenados. Buscando evitar tal reavivamento do caso, que claramente dificultaria seu regresso a sociedade, ingressou o condenado com uma ação para impedir a exibição de tal programa. (ABÍLIO e MENDONÇA, 2018, p. 3)

Nesse caso, o Tribunal Constitucional Alemão impediu a reprodução do documentário que havia sido produzido pela mídia televisiva (Zweites Deutsches Fernsehen – ZDF). Entenderam os julgadores que o direito de proteção à privacidade prevaleceria sobre o direito à liberdade de informação, utilizando os mesmos parâmetros de ponderação em caso de colisão de direitos fundamentais que fundamentam a aplicação do direito ao esquecimento atualmente.

O Tribunal também considerou que o indivíduo já havia cumprido pena por seu erro e não se poderia permitir que vivesse sempre à mercê da imprensa, que poderia revitalizar seu caso em qualquer momento. Ou seja, já não havia mais interesse jornalístico na veiculação da matéria, que causaria prejuízos ao indivíduo condenado(ABÍLIO e MENDONÇA, 2018).

Convém, nesse ponto, destacar conclusão de Adriana Galvão Moura Abílio e Christopher Mendonça (2018, p. 3) acerca do julgamento realizado pelo Tribunal Constitucional Alemão:

[...] em relação ao argumento do lapso de tempo, o mesmo é bastante utilizado por aqueles que se propõe a analisar o direito ao esquecimento como sendo uma das premissas a concessão de tal direito que, pela

passagem de grande período temporal já não haja interesse na divulgação das notícias de acontecimentos que se busca “apagar”.

Em nosso país, o direito ao esquecimento foi reconhecido, pela primeira vez, no ano de 2013. Na ocasião, o Superior Tribunal de Justiça julgou os casos da “Chacina de Candelária” e “Aída Curi”, ambos paradigmas jurisprudenciais serão analisados em tópico futuro, com melhor exposição.

Como se vê, orginalmente o direito ao esquecimento foi discutido em relação a pessoas que sofreram condenações criminais e, após o cumprimento da pena ou absolvição, buscaram retornar o convívio social e se depararam com o empecilho de uma mancha em seus passados. Com o passar do tempos e diante dos avanços tecnológicos vividos, o direito ao esquecimento estendeu-se para outras áreas, como a cível, o que se analisará em tópico específico.

Com efeito, não se possibilita que o indivíduo apague fatos ou reescreva uma nova história de vida, mas lhe assegura a possibilidade de discutir fatos passados, bem como o modo e finalidade com que são lembrados. Então, diferentemente do que indica o nome, o direito ao esquecimento não objetiva que algo, efetivamente, seja esquecido, o direito não é capaz de causar amnésia coletiva, apenas possibilita que determinada informação não esteja mais acessível publicamente (LUCENA, 2019).

A ausência de previsão legal específica e delimitada acerca do direto ao esquecimento no Brasil acarreta na sua aplicação com base em construções doutrinárias e jurisprudenciais, além da realização de analogia aos dispositivos legais existentes que tratam sobre a temática dos direitos de personalidade, ressocialização e liberdade de imprensa. Neste sentido, pode-se perceber uma dificuldade necessária na construção de um conceito delimitado e, até mesmo, unânime (LUCENA, 2019).

A ideologia central, entretanto, é debatida constantemente pela doutrina e pela jurisprudência, sendo delimitada por Pablo Stolze Galino e Rodolfo Pamplona Filho (2002, p. 186), como:

O direito ao esquecimento é o direito que o indivíduo possui de não permitir que um fato, ainda que verídico ocorrido em determinado momento de sua vida, seja exposto ao público em geral, causando-lhe sofrimento, transtornos ou qualquer tipo de constrangimento ilegal.

Assim sendo, pode-se classificar o direito ao esquecimento como um meio pelo qual o indivíduo pode buscar obstar a divulgação de informações passadas. Relaciona-se, então, a não permitir que a pessoa conviva com parte do seu passado sendo reativada de modo ilimitado, e sem nenhum motivo, mesmo que os fatos já estejam depositados na memória do tempo.

Para René Ariel Dotti (1998, p. 300):

O direito ao esquecimento consiste na faculdade de a pessoa não ser molestada por atos ou fatos do passado que não tenham legítimo interesse público. Trata-se do reconhecimento jurídico à proteção da vida pretérita, proibindo-se a revelação do nome, da imagem e de outros dados referentes à personalidade.

Com a crescente utilização dos meios digitais, a propagação de notícias e identificação de indivíduos tomou grandes proporções. Em tal ambiente, também surge o direito ao esquecimento, caracterizado como uma forma de proteção aos usuários, a qual permitiria que uma pessoa não autorizasse a divulgação de um fato que lhe diga respeito, por lhe causar transtorno, prejuízo ou sofrimento, levando-se em consideração a utilidade da informação.

O esquecimento passa pelo processo de superação do passado, garantindo que a intimidade, honra, privacidade e o nome não mais sejam maculados por fatos consolidados pelo tempo, nesses sentido, importante reconhecer que “[...] a pessoa, assim como é titular de direitos da personalidade, também é do direito de ser esquecida [...]” (LUCENA, 2019, p. 77).

Por tais construções doutrinárias e jurisprudenciais sobre o conceito e aplicação do direito ao esquecimento, sua abrangência alarga-se para outros ramos jurídicos como meio de proteção da personalidade face aos abusos que podem ocorrer em nome do direito de informação.

Pelos conceitos já colacionados, possível perceber que o assunto vai ganhando contorno através de debates entre juristas e pesquisadores, sendo que sua delimitação definitiva ainda está sendo construída. Veja-se a definição feita por Chehab (2015, p. 86):

O direito ao esquecimento é a faculdade que o titular de um dado ou fato pessoal tem para vê-lo apagado, suprimido ou bloqueado, pelo decurso do tempo e por afrontar seus direitos fundamentais. Trata-se de uma espécie de caducidade, onde a informação, pelo decurso do tempo e por sua proximidade com os direitos fundamentais afetos à personalidade, perece ou deveria perecer, ainda que por imposição da lei.

Em que pese a conceituação doutrinária pareça apontar para um sentido único quando se fala em direito ao esquecimento, com a supressão de informações, deve-se analisar que sua aplicação se dá para a tutela de direitos individuais. Assim, melhor classificação global é aquela capaz de abarcar conceitos técnicos de direitos que exigem a aplicação do direito ao esquecimento, como a feita por Zilda Mara Consalter (2017, p. 188), quando afirma que se trata de um:

Direito subjetivo, de titularidade individual e não absoluto, resultante do desdobramento do direito fundamental à intimidade, mediante o qual o interessado, no exercício de sua liberdade, autonomia e determinação individual, controla se fatos pertencentes ao seu passado podem ou não ser retomados no presente ou no futuro, como forma de salvaguardar a sua integridade emocional, psíquica, profissional e social, além de resguardar, eficazmente, a sua vida íntima.

Diante de tais aspectos, pode-se constatar que o direito ao esquecimento envolve o controle da disponibilização de informações que não importam para terceiros, mediante um controle da busca por seu nome em sites ou até mesmo da reativação de notícias pela mídia. Contudo, essa conceituação não é exaustiva, pois deve prevalecer a ideia de superação por fato pretérito, que permite sua aplicação em diversas situações.

Desta forma, é possível entender o direito ao esquecimento como o direito de não ser lembrado de fatos pretéritos que envolvem a sua vida privada, ou seja, na visão de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2018, p. 214) “[...] trata-se da possibilidade reconhecida a todas as pessoas de restringir o uso de fatos

pretéritos ligados a si, mais especificadamente no que tange ao modo e à finalidade com que são lembrados esses fatos passados”

Esses mesmos autores reconhecem como imprescindível que o direito de não lembrar de dados relativos à sua personalidade, de ser deixado em paz, evitando a perturbação de sua vida, são obstáculos à divulgação e alvo de notícias em programas televisivos, jornais ou na mídia social. Segundo Farias e Rosenvald (2018, p. 214) “[...] É o direito de não acesso por terceiros a determinados dados pertencentes a outrem, independentemente de serem, ou não, verdadeiros.”

Por outro lado, não se pode deixar de mencionar que a liberdade de expressão não proíbe que sejam divulgados fatos já acontecidos, em razão da existência do direito ao esquecimento, mas, de outro, lembra que o direito à informação não é absoluto.

Nessa conjuntura, Farias e Rosenvald (2018, p.210) explicam que:

[...] em se tratando de detalhes particulares da vida privada de uma pessoa (inclusive das pessoas públicas, as chamadas celebridades), considerando que a liberdade de expressão não pode ser absoluta, é possível pensar na incidência dos instrumentos da responsabilidade civil, e também da penal, com vistas à proteção dos direitos da personalidade.

Acentua-se que a identificação do direito ao esquecimento muitas vezes colide com o direito à informação, ainda mais quando alguns fatos sobre celebridades, pessoas públicas ficam no imaginário das pessoas e por muitos anos são lembrados pela sociedade. No entanto, há a necessidade de proceder a uma avaliação prévia sobre as consequências da referida divulgação, pois podem gerar, inclusive, indenizações e retratações públicas (FARIAS e ROSENVALD, 2018).

Indubitavelmente que, hoje, a internet possibilita que uma infinidade de pessoas acesse a rede virtual e faça o compartilhamento de fatos e notícias em poucos segundos, em pouco espaço de tempo. E nessas circunstâncias surge um sério problema: a velocidade e alcance das informações que violam a dignidade da pessoa e seu direito ao esquecimento.

Assinala-se que no decorrer dos tempos, pelo mundo, foram surgindo algumas previsões legais, tais como:

A previsão contida no § 628, “a”, n. 1, do Fair Credit Reporting Act, editado nos Estados Unidos em 1970, que prevê o dever de diversas entidades públicas e privadas em estachelecer regras que exijam que qualquer pessoa que mantém ou possui informações de consumidor para um certo negócio em “properly dispose of any such information or compilation”. Contudo, o desenvolvimento das noções do direito ao esquecimento ganhou impulso no seio da União Europeia a partir da década de 1990. (CHEHAB, 2015, p. 89).

Constata-se, assim, que aos poucos foram surgindo documentos legais que abarcaram aspectos relacionados com o direito ao esquecimento, que está intimamente ligado ao princípio da dignidade humana, intimidade, privacidade e que possibilita que a pessoa viva a sua vida e que “[...]Fatos e dados que lhe são afetos permanecem ou retornam ao seu âmbito de disponibilidade individual[...]” (CHEHAB, 2015, p. 89). Surge, nesse diapasão, a necessidade de sua tutela pelo ordenamento jurídico.

No Brasil, o direito ao esquecimento ainda é muito recente e pouco debatido nos meios jurídico, social e acadêmico, mas aos poucos ganha espaço nas decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, percebendo-se a existência de uma preocupação em tutelar os diretos fundamentais do cidadão, notadamente aqueles que violam, dentre outros, sua privacidade, intimidade, honra e dignidade.