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2 DIREITO AO ESQUECIMENTO: A COLISÃO ENTRE A LIBERDADE DE

2.2 Previsão no ordenamento jurídico brasileiro

2.2.1 Fundamentos jurídicos para a aplicação

Nos termos já abordados no decurso do presente trabalho, os direitos à privacidade, intimidade, imagem, honra e sigilo das informações, dos quais de extrai a base do direito ao esquecimento, estão previstos constitucionalmente no rol de direitos individuais, no art. 5º, X e XIII da Constituição Federal. No mesmo norte, o art. 1º, III, da Carta Magna consagra como fundamento a dignidade da pessoa humana.

Assim, a Constituição Federal de 1988 pode ser considerada a fonte primaria de proteção do direito ao esquecimento no Brasil, por fazer expressa e ampla proteção aos direitos de personalidade. Nos termos do art. 5º, X: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e imagem das pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (BRASIL, 1988).

A doutrina especializada é firme no entendimento de que as previsões constitucionais amparam a aplicação do direito ao esquecimento:

Portanto, observa-se que o direito ao esquecimento pode ser enquadrado como uma repercussão do direito à intimidade da vida privada, uma vez que seu titular pretende impedir a divulgação de um fato ou realidade que integra seu passado e que sobre ele não há ou deixou de haver interesse público em aceder, em virtude de expor particularidades que a pessoa não deseja partilhar com o público; intentando, por conseguinte, que tais acontecimentos e conteúdos sejam esquecidos e não rememorados. (TRIGUEIRO, 2016, p. 06)

Não se pode deixar de destacar, ainda, a expressa limitação imposta pelo texto constitucional às liberdade de expressão e informação:

Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.

§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV (BRASIL, 1988).

A parte final do §1º traz importante ressalva quando às liberdades de expressão e informação, de modo que não sejam absolutas e ultrapassem os limites da vida privado do indivíduo. Pode-se entender, em caso, que a previsão dos direitos de personalidade como limitativos da liberdade de expressão abarca o direito ao esquecimento, conforme defende Gonçalves (2017, p.69):

Isto ocorre porque esse dispositivo prevê uma cláusula geral de tutela do direito de personalidade, que permite vislumbrar o direito ao esquecimento como manifestação de um direito de personalidade, e, a nosso ver, os desdobramentos do direito de personalidade não necessitam de previsão expressa em lei.

Salienta-se, ainda em âmbito constitucional, a proibição de penas de caráter perpétuo, com previsão no art. 5º, XLVII, “b”. Referida previsão nos remete à dignidade da pessoa humana e também à regenerabilidade do indivíduo, que tem direito de se reintegrar na sociedade após o cumprimento de sua pena (GONÇALVES, 2017).

Para Lucena (2019, p. 42) “trata-se da aplicação de penas proporcionais, salientando que a pessoa não pode ser eternamente punida por algo”. Têm-se, então, uma interessante previsão destinada ao direito penal, que mesmo sendo

ultima ratio de nosso ordenamento, não aceita a possibilidade de uma pena

perpétua.

Aliás, as primeiras aplicações do direito ao esquecimento junto aos Tribunais de Justiça ou mesmo no 1º grau de jurisdição deram-se em casos ligados ao âmbito penal, diante das previsões infraconstitucionais que seguem a regra constitucional de proibição de imposição de penas perpétuas e desproporcionais, bem como do condenado ser recolocado na sociedade. Por oportuno, deve-se dar destaque ao art. 202 da Lei de Execuções Penais:

Art. 202. Cumprida ou extinta a pena, não constarão da folha corrida, atestados ou certidões fornecidas por autoridade policial ou por auxiliares da Justiça, qualquer notícia ou referência à condenação, salvo para instruir processo pela prática de nova infração penal ou outros casos expressos em lei. (BRASIL, 1984).

O Código de Penal, em seu artigo 93, também prevê a reabilitação do condenado, e o sigilo das suas informações criminais, configurando importante forma de se alcançar o direito ao esquecimento. Ainda, o Código de Processo Penal, no art. 748, perfectibiliza o direito ao esquecimento ao proibir que condenações anteriores constem na folha de antecedentes do reabilitado.

Note-se, até no documento oficial que dispõe sobre condenações criminais do reabilitado não devem constar condenações anteriores que foram devidamente cumpridas. Não é crível, então, que tais condenações permaneçam sendo revisitadas em notícias que ficam disponíveis na rede por tempo indeterminado, ou revividas pela mídia. Conforme entende a doutrina:

De um lado, é certo que o público tem direito a relembrar fatos antigos. De outro, embora ninguém tenha direito de apagar os fatos, deve-se evitar que uma pessoa seja perseguida, ao longo de toda a vida, por um acontecimento pretérito. (…). Se toda pessoa tem direito a controlar a coleta e uso dos seus dados pessoais, deve-se admitir que tem também o direito de impedir que dados de outrora sejam revividos na atualidade, de modo

descontextualizado, gerando-lhe risco considerável. O direito ao

esquecimento (diritto alUoblio) tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex- detento à ressocialização, evitando-se que seja perseguido por toda a vida pelo crime cuja pena já cumpriu (SCHREIBER, 2013, p.70).

Se, por um lado, na seara criminal o direito ao esquecimento está estampado na impossibilidade de que uma pena se dê em caráter perpétuo ou repercuta para sempre na vida do indivíduo, na seara consumerista existe previsão de marco temporal para a supressão de dados do inadimplente negativado junto aos cadastros públicos de restrição ao crédito. Pode-se afirmar, por conseguinte, que o marco temporal estabelecido no Código de Defesa do Consumidor, art. 43 §1º, é um exemplo positivado de direito ao esquecimento:

Art. 43. O consumidor, sem prejuízo do disposto no art. 86, terá acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes.

§ 1° Os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão, não podendo conter informações negativas referentes a período superior a cinco anos (BRASIL, 1990).

Muito embora seja o artigo limitado à lógica protecionista do consumidor, a fixação de prazo temporal advoga em favor da proteção de dados antigos, dando base ao direito em debate. Outrossim, como afirmado no início, as garantias aos direitos de personalidade previstos na Constituição Federal foram ratificados pelo Código Civil.

Nesse sentido:

Trata-se, em uma palavra, de estabelecer novos parâmetros para a definição de ordem pública, relendo o direito civil à luz da Constituição, de maneira a privilegiar, insista-se ainda uma vez, os valores não-patrimoniais e, em particular, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da sua personalidade, os direitos sociais e a justiça distributiva, para cujo atendimento deve se voltar a iniciativa econômica privada a situações jurídicas patrimoniais (TEPEDINO, 2008, p. 29).

Nesta senda, o direito civil renova a importância dos direitos de personalidade, como forma de concretização da dignidade humana. No Código Civil de 2002, o direito ao esquecimento encontra-se entranhado em meio às garantias dos direitos de personalidade, dispostas nos artigos 17 a 21:

Art. 17. O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória.

Art. 18. Sem autorização, não se pode usar o nome alheio em propaganda comercial.

Art. 19. O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome.

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma. (BRASIL, 2002)

Tratam-se de dispositivos de lei que garantem a tutela da pessoa, abarcando situações diversas que podem ocorrer na vida dos indivíduos. A previsão dos direitos de personalidade no Código Civil também possibilita que o catálogo de formas de proteção aos sujeitos de direitos sejam sempre ampliadas e modificadas, por tratar- se de norma flexível que possibilita o surgimento de novos direitos conforme a vida em sociedade se altera, sendo o direito em estudo uma dessas possibilidades (TEPEDINO, 2008).

A intensa previsão dos direitos de personalidade no Código Civil possibilitou que o Conselho da Justiça Federal, em 2013, na VI Jornada de Direito Civil, firmasse posicionamento no sentido de que nossa legislação recepciona o direito ao esquecimento e que sua aplicação é uma forma de concretização da dignidade humana. O Enunciado 531 traz referência ao art. 11 d Código Civil, que inicia o rol de artigos que protegem os direitos de personalidade.

Do novo enunciado (CJF, 2013, p. 1), lê-se: “A tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”. Possível dizer, então, que normas que visam proteger a vida privada dos cidadãos também são aplicáveis à informações passadas. A visão dos juristas que elaboraram o enunciado é de que vivemos em uma sociedade que teve avanços significativos relacionados aos ambientes virtuais, o que nos levou ao hiperinformacionismo, que permite que todos acessem qualquer informação a qualquer tempo, uma vez que nada é apagado ou superado na internet.

Em poucas palavras, o enunciado foi pioneiro no reconhecimento do direito ao esquecimento e vem sendo utilizado de forma frequente pelos operadores do direito para fundamentar seus pedidos ou decisões. Veja-se a justificativa apresentada pelo Conselho de Justiça Federal (2013, p. 1) para o enunciado acima descrito:

Justificativa: Os danos provocados pelas novas tecnologias de informação vêm-se acumulando nos dias atuais. O direito ao esquecimento tem sua origem histórica no campo das condenações criminais. Surge como parcela importante do direito do ex-detento à ressocialização. Não atribui a ninguém o direito de apagar fatos ou reescrever a própria história, mas apenas assegura a possibilidade de discutir o uso que é dado aos fatos pretéritos, mais especificamente o modo e a finalidade com que são lembrados.

Com isso, embora não possua caráter vinculante, consagrou-se um importante precedente que, quando analisado conjuntamente com os dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, permite a aplicação do direito ao esquecimento.

O objetivo das normas retro descritas é deixar claro que os direitos ligados à vida privada das pessoas devem sofrer modificações de forma que sejam uteis para as necessidades da vida em sociedade. Nessa senda, o direito ao esquecimento pode ser visto como mais uma face dos direitos de personalidade.

Por isso, as inovações legislativas referentes a proteção de dados e o Marco Civil da Internet são instrumentos que podem contribuir para a amenizar o problema da divulgação de fatos pretéritos que as pessoas querem esquecer.

2.2.2 Inovações legislativas: Marco Civil da Internet e Lei Geral de Proteção de