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OS ENFRENTAMENTOS COM JOSÉ DO PATROCÍNIO

No documento martalucialopesfittipaldi (páginas 149-154)

3 O RETORNO À CORTE: DO ENTUSIASMO DOS PRIMEIROS ENCONTROS AO

3.5 OS ENFRENTAMENTOS COM JOSÉ DO PATROCÍNIO

O Cidade autodefinia-se como jornal abolicionista.45 Impresso em tamanho menor, compunha- se de apenas quatro páginas e era vendido a 40 réis, preço também estipulado por jornais de tiragem superior, como o Gazeta de Notícias. Além de postular o fim da escravidão, por meio de textos sempre veiculados na primeira página, o jornal promovia uma série de manifestações públicas naquele mesmo sentido. Provavelmente exerceu forte influência sobre a população mais humilde46, que se identificava mais com a Monarquia do que com as ideias republicanas. Até porque, naquele momento, o Cidade

43 A atuação na imprensa era então sinônimo de status e significativa largas perspectivas de ascensão social e acesso à política. Por

isso o abandono do curso de formação em favor das redações dos jornais era muito comum. BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa: Brasil, 1800-1900. Rio de Janeiro: MAUAD Editora, 2017, p. 159.

44 Ver: MACHADO, Humberto Fernandes. Palavras e Brados: José do Patrocínio e a imprensa abolicionista do Rio de Janeiro.

Niterói: Editora da UFF, 2014, pp. 35-36.

45 Marialva Barbosa analisa a ausência do escravo nas páginas dos jornais abolicionistas, que lhes representava de uma forma

bastante similar à imagem projetada pelos anúncios de fugas. BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa: Brasil, 1800-1900, pp. 105-108.

46 Expressão utilizada por Humberto Machado para designar “libertos, mulatos e brancos pobres”, que viam na

representava todo o capital político acumulado até então pelo jornalista Patrocínio como intelectual da imprensa alinhado com o fim da escravidão.

Para corroborar essa apontada influência considero análises que apontam o acesso das camadas mais populares ao letramento, levando em conta não apenas os altos índices de analfabetismo da população – que, entre os egressos da escravidão, ficavam ainda muito acima da população livre – mas também as diversas formas possíveis de leitura. Elas incluíam não só a variante ativa, ou primeira leitura – competência por vezes destacada nos anúncios de compra e venda de escravizados, como a valorizá-los – mas ainda aquelas possíveis por meio da oralidade e da observação de imagens.47 O tema é de importância crucial para esta tese e, portanto, devo dizer que endosso as várias possibilidades de assimilação do mundo letrado pelos egressos da escravidão. Os escravizados não estiveram totalmente imersos na sombra da não codificação dos signos linguísticos, até porque existiam entre aquela população pessoas que de várias formas decifravam-nos, como veremos no capítulo seguinte. Sendo assim, por meio do compartilhamento de informações, em que a oralidade tinha papel essencial, os “iletrados” eram capazes de conhecer os rumos políticos do País, fosse a partir de diferentes leituras possíveis dos impressos ou do que se comentava com base em suas publicações.48

O jornal de José do Patrocínio destacou, inicialmente, o bom caráter do novo deputado republicano Antônio Romualdo Monteiro Manso, que, no entanto, careceria das “condições mentais indispensáveis para representar intelectualmente as aspirações do seu partido” (CIDADE DO RIO, 21 set. 1888, p. 1). Um nome que bem representaria esse papel seria, justamente, o de Silva Jardim, mas, à medida que Jardim esmerava-se na defesa da lavoura, respondendo especificamente aos ataques de outro adversário de peso, Joaquim Nabuco, o proprietário do Cidade do Rio recrudesceu o seu discurso, não sem antes exaltar as qualidades do “moço de talentos extraordinários” (PATROCÍNIO, 1888b, p. 4) que vinha honrando, com maior atividade, a tribuna republicana.

Entre muitos apoiados registrados pelo taquígrafo, Patrocínio se disse obrigado a render homenagem pública ao orador de “excelente caráter”, de “alma larga e generosa” que dava a “esmola do seu talento” (PATROCÍNIO, 1888b, p. 4) à campanha republicana, que muito necessitava de uma direção moralizadora e científica. As falas dirigidas ao popular tribuno que rapidamente conquistara grande popularidade eram até então bastante amenas. Foram, no entanto, ganhando tons virulentos, até que o primeiro grande enfrentamento com a Guarda Negra levou o polemista a eleger José do Patrocínio como

47 Ver: BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa: Brasil, 1800-1900, pp. 83-96.

48 Chalhoub afirma que as discussões em torno do sigilo ou não das sessões parlamentares que discutiram projeto

de revogação da lei de 1831 e ainda daquelas conduzidas para a votação da Lei Euzébio de Queiroz, em 1850, foram indicativas de que “parlamentares e ministros supunham que o que se dizia na tribuna e o que aparecia publicado na imprensa podia se tornar logo de conhecimento geral – até mesmo dos escravos.” CHALHOUB, Sidney. A Força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 151.

outro adversário a ser contestado. Nas disputas discursivas, mantiveram-se em evidência os temas abolição, indenização e república.

Em conferência no dia 23 de setembro de 1888, no Teatro Lucinda, Patrocínio rebatia a fala de Silva Jardim, que, na véspera, apresentara-se no mesmo local. Ocupou-se largamente do histórico republicano com relação à luta abolicionista, destacando a omissão do Manifesto de 1870 a respeito. O motivo foi mais uma vez explicitado: “[...] a república desses senhores não é senão o consórcio da escravidão com o despeito” (PATROCÍNIO, 1888b, p. 4). Ou seja, era antiga a tendência do Partido Republicano em apoiar-se no descontentamento crescente da lavoura com o trono. Àquele grupo social, Patrocínio não concedia nenhum mérito. Refutava a fala de Jardim sobre o papel dos agricultores nos movimentos republicanos de outrora. Para ele, a lavoura seria a única responsável pelos males sociais, origem de todas as desgraças que atrofiavam um país que lhe devia somente a harmonia entre duas instituições condenadas: a escravidão e a Monarquia.

Nos trechos seguintes, as menções de Jardim à Inconfidência Mineira no desenvolvimento de sua tese sobre a herança genética do republicanismo mineiro são combatidas. Para Patrocínio, a sedição de Vila Rica teria sido “um produto do escravismo que foi o resultado da implantação do imposto de capitação sobre os escravos empregados nas minas, e que o pobre, o bom, o santo Tiradentes tinha sido nisso o simples instrumento dos interesses da pirataria” (PATROCÍNIO, 1888b, p. 4). O comentário, que, já em outras ocasiões, havia lhe causado muitos insultos, conforme lembrou, estava apoiado nas memórias de monsenhor Pizarro, leitura que sugeria a seus detratores por saber que “bravatas da tribuna” não bastariam para “arrancar as páginas da história” (PATROCÍNIO, 1888b, p. 4). Referia-se Patrocínio a José de Souza Azevedo Pizarro, cuja fama derivava da obra Memórias Históricas do Rio de Janeiro, publicada em fins do século XVIII.49

Outras tradições republicanas evocadas por Silva Jardim teriam, ao contrário, sido sufocadas pelo egoísmo dos latifundiários. Em 1817, elas se impuseram em Pernambuco, mas a lavoura, , “achando boa a liberdade, contanto que não chegasse aos negros, entregou à metrópole a República de 1817, quando soube que esta não poupava sacrifícios da fortuna particular de cada um dos seus adeptos” (PATROCÍNIO, 1888b, p. 4). O mesmo havia ocorrido no movimento sulista de 1835, versão ausente das análises brasileiras, mas contada incidentemente por um estrangeiro ao escrever a biografia de José Garibaldi. O líder carbonário “se queixava na Europa de que se havia afastado dos republicanos rio- grandenses [...] pelo receio de que a última hora os interesses da escravidão fizessem muito mais que os interesses da república (PATROCÍNIO, 1888b, p. 4).

A Nova República era o título da conferência e traduzia o combate ao movimento republicano do

49 Ver: GALDAMES, Francisco Javier Muller. Entre a cruz e a Coroa: a trajetória de Mons. Pizarro (1753-1830). Dissertação

pós-Abolição, que seria inferior ao da década passada, igualmente criticado por submeter-se aos interesses oligárquicos. Ilustrou sua crítica à velha guarda do partido, contando, em tom pilhérico, uma experiência pessoal. Em certa ocasião, ainda muito moço, tentou assistir a uma conferência republicana e foi impedido de assinar o livro de presenças do evento, sob a alegação de que “não podia tomar a responsabilidade do que dizia, acrescendo que não sabiam de quem era filho” (PATROCÍNIO, 1888b, p. 4). Teria, então, respondido que ignorava que “para ser republicano era necessário tirar certidão de idade o que para ele era difícil, quase impossível, por ser exposto da Santa Casa.” Referia-se Patrocínio ao fato de ter sido, a princípio, registrado como exposto, ou seja, filho de pais desconhecidos. A informação foi mais tarde retificada com a anotação do nome da mãe na certidão de batismo: era filho da escravizada Maria Justina do Espírito Santo, que, aos 13 anos, engravidara do vigário João Carlos Monteiro, quarenta anos mais velho. “De tal sorte, como um segredo do cônego Monteiro sabido por todos, Patrocínio cresceu na condição de pessoa livre desde a infância, entre a casa do Largo da Matriz e as propriedades rurais de seu pai, e ainda sob os cuidados da mãe” (PINTO, 2014, pp. 85-86).

A ironia sobre os motivos que obstaram sua participação na referida conferência republicana, que arrancou risos da plateia, era lançada contra a prática preconceituosa ali denunciada, embora de forma jocosa, como se fosse mais um recurso para prender a atenção dos ouvintes. Talvez um exemplo de “registros ocultos”, presentes nas práticas discursivas “[...]de franca perspectiva contra-hegemônica, correspondentes ao que não se fala em face do poder, mas que, ao mesmo tempo, pode ser identificada em gestos banias, piadas e rumores” (PINTO, 2014, pp. 85-86). A acusação de que o Partido Republicano recusara a assinatura de um filho de escravizada sem paternidade reconhecida foi seguida por sua confissão ideológica. Continuara, no entanto, a ser republicano, “apesar d’eles não quererem por forma alguma que o fosse sem nome de pai.” Apesar disso, não admitia “conciliação possível entre os republicanos abolicionistas e os republicanos do 14 de maio” (PATROCÍNIO, 1888b, p. 4).

Estava empenhado em pôr o seu “passado de miséria e vergonhas”50 ao encalço da propaganda republicana, que pregava uma revolução, porém “revolução da oligarquia, revolução do dinheiro, [...] revolução dos exploradores da pátria.” (PATROCÍNIO, 1888b, p. 4). A partir de uma perspectiva pessoal, Patrocínio combateu a lavoura. Novamente aludiu ao seu passado, tomando como vergonhoso não o fato de sua ascendência negra, mas as circunstâncias em que se deram a sua concepção, resultado do subjugo permitido pelo sistema escravista. Seu pai, falecido na década de 1870, chegou a figurar como destacado escravista de Campos dos Goytacazes, e conciliava as atribuições de sacerdote aos ofícios de fazendeiro.

Em tempo nenhum a lavoura havia contribuído para o serviço da liberdade ou da república. “Em 50 Esse trecho, à primeira vista, pode denotar um sentimento de humilhação por parte do jornalista, mas a leitura de uma de suas

biografias pode esclarecer que também se referia o autor à indignidade dos atos praticados pelo próprio pai, contra quem nutria grande ressentimento. MACHADO, H. F. Palavras e brados..., pp. 23-24.

nome da escravidão, o partido republicano cometeu em três de setembro de 1870 o grande crime, que não tem perdão ante a história, de haver abandonado a causa dos cativos na ocasião em que formulava o manifesto” (PATROCÍNIO, 1888b, p. 4). A república do pós-Abolição não seria igual nem superior à república “de ontem”, que ao menos contara com talentos políticos do quilate do Lafayette51, homem de talento, embora comprado pela Monarquia. A afirmação aludia, como destacou o próprio orador, ao comentário de Silva Jardim, dias antes, naquela mesma tribuna, que não se podia demonstrar que “a princesa imperial” fosse “igual nem superior a D. Pedro II”. Patrocínio respondia-lhe combatendo a nova representação republicana que tanto estardalhaço fizera a não se submeter ao juramento na sessão de posse. A quem havia elegido a nova república? Uma “esfinge” a representar “os fazendeiros despeitados52 de Minas. (PATROCÍNIO, 1888b, p. 4).

Eram tempos de inflamados debates. Viam-se os contendores obrigados a se defender enquanto lançavam novos ataques ao campo adversário. Respondendo às acusações de que era um vendido à Monarquia, Patrocínio admitiu que, sim, era um vendido, “vendido ao ministério que salvou a sua raça contra a opinião daqueles que a espoliavam”, vendido à mulher “sagrada e meiga, boa e santa que enquanto a república se agachava miseravelmente diante da lavoura para apanhar-lhes voto ela expunha sua coroa aos tufões desencontrados da falsidade republicana”. A princesa mereceria do povo brasileiro tanto quanto Abraão Lincoln do povo americano, sendo “uma infâmia da parte daqueles que dizem servir a liberdade caluniar, infamar, aturdir, atirar lama contra essa senhora” ( JARDIM, 1978, p. 209).

Ângela Alonso descreve o dilema de Patrocínio ao romper com os republicanos após a Lei Áurea em apoio ao gabinete João Alfredo. A maioria dos abolicionistas não aceitava um terceiro reinado, tendo essa ala majoritária lançado Quintino Bocaiuva como candidato a deputado: “Na dividida do movimento, Patrocínio, cérebro republicano e coração abolicionista, sofreu” (ALONSO, 2015, p. 345). Ao fazer frente às críticas lançadas nas páginas do Cidade do Rio contra Quintino Bocaiúva, Joaquim Nabuco passou a merecer a ira do jornalista. Pressionado, este último rompeu também com o velho líder republicano: “Os abolicionistas brigaram entre si acerca da republicanização ou não do movimento” (ALONSO, 2015, p. 345).

Em nova conferência realizada no dia 30 de setembro, no mesmo Teatro Lucinda, Patrocínio ocupou-se novamente de Silva Jardim, contrapondo-se à sua defesa da lavoura. Refutou sua alegação de

51 Referia-se Patrocínio a Lafaiete Rodrigues Pereira, chefe do gabinete que durou um ano e três meses a partir de maio de 1883.

Aderiu ao Partido republicano em 1870, retornando aos quadros liberais a seguir.

52 O despeito dos fazendeiros foi largamente apontado, também por Joaquim Nabuco, como a motivação que arrastava levas

inteiras para o Partido Republicano. Respondendo especificamente à recorrente acusação, Jardim valeu-se de Voltaire: “as revoluções vêm da barriga”, isto é, a sociedade não abalaria a sua ordem fundamental, “senão quando vê justamente em risco os seus interesses básicos, os seus interesses de conservação, os que se referem principalmente à propriedade.” As revoluções teriam sempre sua origem em algum fato econômico. Assim, o despeito seria o “gerador de todas as revoluções políticas, isto é, de todos os movimentos que chegam à massa e a convulsionam. JARDIM, A.S. Propaganda republicana..., p. 209.

que se fazia necessária uma urgente revolução política no País, pois eram oligárquicas as bases da Monarquia e também seriam a de uma futura república. O sistema eleitoral então vigente, este sim, necessitando de reforma, permitiria que os “donos das urnas” dos tempos pós-Abolição fizessem maioria suficiente para “causar perturbação” (PATROCÍNIO, 1888c, p. 1). O Partido Republicano, em seus congressos e comitês locais, seguia a mesma lógica: “Eis o que é a oligarquia. Ela tem alguns nomes no partido liberal, outros no conservador e também na república.” Lembrou, então, que o barão de Leopoldina, um Monteiro de Barros, pertencia ao partido conservador e fora substituído no Legislativo por Monteiro Manso, que pertencia à mesma família: “A República continua a tradição da monarquia: aquele Monteiro de Barros que morreu sem nunca ter produzido uma ideia, foi substituído por esse Monteiro Manso incapaz de produzir meia ideia no Parlamento” (PATROCÍNIO, 1888c, p. 1). Muito ainda se falou, em 1888, do lacônico deputado mineiro, sendo também lembrado na famosa conferência do dia 30 de dezembro, realizada na Travessa da Barreira.

3.6 OS CONFLITOS DA TRAVESSA DA BARREIRA: “NEGRO-REPUBLICANOS” CONTRA

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