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OS CONFLITOS DA TRAVESSA DA BARREIRA: “NEGRO-REPUBLICANOS”

No documento martalucialopesfittipaldi (páginas 154-178)

3 O RETORNO À CORTE: DO ENTUSIASMO DOS PRIMEIROS ENCONTROS AO

3.6 OS CONFLITOS DA TRAVESSA DA BARREIRA: “NEGRO-REPUBLICANOS”

O salão da Sociedade Francesa de Ginástica, localizado na Travessa da Barreira, nas imediações da atual Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, não reuniria, naquela ocasião, a multidão que costumeiramente o advogado de Capivari costumava arrastar. Fortes rumores sobre a interferência da Guarda Negra afugentaram parte do público que pressentia e temia o perigo. No entanto, mesmo advertido por seus correligionários que tentaram impedir a apresentação, Jardim desafiou os riscos iminentes. Portanto, não foi desprevenido que ele subiu à tribuna arriscando-se ao enfrentamento com os protetores da “Redentora.” Conforme informado pelo Cidade do Rio, a associação teria sido criada a 9 de julho por um grupo de “pretos libertos” que se reuniu, para tanto, em casa de Emílio Rouède, colaborador daquele jornal e autor da já mencionada peça teatral Indenização ou República.53

A liderança do grupo foi assumida por Clarindo Almeida, chefe de polícia da Corte, “que também parecia possuir grande visibilidade entre os associados” (ANTUNES, 2019, p. 15) uma vez que passara a assinar alguns artigos como “’chefe-geral’” e porta-voz da Guarda Negra na imprensa. José do Patrocínio não figurou como participante ativo, apesar de citado, por muitas vezes, inclusive pelo próprio Jardim, como o criador da Guarda Negra, mas a inequívoca vinculação do seu nome à organização foi sem dúvida determinante. O jornalista que em novembro de 1888 fora diplomado como presidente de honra da Guarda Negra tinha lá o seu prestígio entre parte da população carioca, sendo visto “como uma referência para muitos negros da Corte”. Assim, seria “razoável acreditar que uma ordem de Patrocínio pudesse 53 As informações sobre a criação da Guarda Negra estão em: CRONICA de ontem. Cidade do Rio. Rio de Janeiro, ano 2, n.

desencadear uma ostensiva reação negra naquele momento” (PINTO, 2014, pp. 290).

As especulações em torno da Guarda Negra cresceram após os conflitos da Travessa da Barreira. Foram poucas as notícias sobre o funcionamento daquela “sociedade secreta” (JARDIM, 1891b, p. 227), conforme a rotulava Silva Jardim. Em tom misterioso e alarmista, o jornal Diário de Notícias revelou, inicialmente, dois possíveis pontos de reuniões na Corte: um na Rua da Carioca, na Casa da Lua, provável referência à Sociedade Recreativa Habitantes da Lua, instalada no mesmo local, e outra no Catete, em uma chácara na Rua barão de Guaratiba.54

Apresentar as ações atribuídas à Guarda Negra é de importância fulcral para esta tese que, no entanto, não está delimitada à cidade do Rio de Janeiro, palco de ação da unidade originária dos conflitos protagonizados pelos “homens de cor” contra e a favor dos republicanos. Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que me alinho à percepção de que a pluralidade das manifestações, “como formas de ação pouco padronizadas e dispersas” (ANTUNES, 2019, p. 15) requer uma análise que considere múltiplos significados. No mesmo sentido, concordo que a tarefa de examinar a organização “[...]implica trazer à luz questões para além do fenômeno da sua existência” ( MIRANDA, 2015, pp. 382-383). Tais questões dizem respeito às discussões historiográficas55, por sua vez informadas por “[...] pressupostos conceituais e teóricos, e por que não dizer ideológicos” ( MIRANDA, 2015, p. 383). Por outro lado, é preciso considerar o peso das narrativas, produzidas principalmente por autores republicanos, sobre as discussões historiográficas a respeito. Fundamentalmente em função desse importante elemento – as narrativas coevas –, prefiro voltar ao tema em momentos distintos do texto, à medida em que o leitor for sendo informado pela análise de uma série de relatos sobre quais teriam sido os significados e as repercussões das movimentações praticadas em nome da Guarda Negra ou a ela atribuídas.

Voltemos ao 30 de dezembro de 1888. Aquele último domingo do ano ficou certamente marcado na memória da população carioca, até porque a imprensa repercutiu largamente o conflito, levando à cena aqueles que não viveram os perigos relatados. Silva Jardim teve que interromper o discurso logo na primeira meia hora. Portava a arma que, na manhã daquele dia, andou testando em seu jardim da casa de Santa Teresa. O seu relato sobre o episódio é dramático. Entre o numeroso grupo do lado externo, que forçava a porta contra o esforço conjunto de quem ocupava o salão, houve troca de tiros, pedradas e projéteis improvisados. Seus companheiros usavam as janelas laterais para responder à agressão: “Houve um momento em que a todos pareceu que íamos ser esmagados porque as portas começaram a ceder” 54 Ver: DOMINGUES, Petrônio. Cidadania levada a sério: os republicanos de cor no Brasil. In: Políticas da Raça: experiências

e legados da abolição e da pós-emancipação no Brasil. GOMES, Flávio; DOMINGUES, Petrônio. (Org.). São Paulo: Selo Negro Edições, 2014, p. 124.

55 Para uma inteiração dos principais trabalhos sobre o tema, ver: MIRANDA, Clícea Maria Augusto de. Memórias e histórias da

Guarda negra: verso e reverso de uma combativa organização de libertos. In: MACHADO, Maria Helena P. T; CASTILHO, Celso Thomas. (Org.). Tornando-se Livre: agentes históricos e lutas sociais no processo de Abolição. São Paulo: Edusp, 2015, pp. 13-15.

(JARDIM, 1891b, p. 229).

Conforme noticiou o Jornal do Comércio, a força policial esteve presente desde o início, mas foi insuficiente para o pronto restabelecimento da ordem. Foi então requisitado do quartel de polícia forças de cavalaria e infantaria, compostas de setenta praças, que enfim puseram termo à confusão. Foram presos dez homens, entre eles Anacleto de Freitas, a quem se referiu Jardim ao lembrar o conflito: “Havia um rapaz preto a quem eu vigiava com o olhar desconfiado e que exclamou: - Canalhas! Pode estar certo, doutor, que eu estou consigo! Era Anacleto, o ‘moço preto’, epíteto com que tanto se honrou” (JARDIM, 1891b, p. 232).

São muitas as lacunas sobre esse personagem que, no último capítulo, será novamente retomado. A forma como Jardim narrou a sua aparição no palco dos conflitos deixa a impressão de que pela primeira vez o havia visto. Também parece revelar que a presença de um homem negro a defendê-lo gerava desconfianças. Essa impressão, contudo, não se sustenta se considerarmos o que escreveu José do Patrocínio a respeito. Como veremos adiante, o jornalista destacava a presença de muitos republicanos negros ao lado do conferencista no fatídico 30 de dezembro. Naquela tarde, vinte e cinco feridos, dois deles policiais, submeteram-se a atendimento farmacêutico e hospitalar, fora os que, em menor gravidade, trataram-se em casa. Duarte de Oliveira, residente na Rua Santa Luzia, morreu na Santa Casa de Misericórdia no dia 31 de dezembro.56

O jornal O País, por sua vez, divulgou um número maior de feridos: cerca de cinquenta ou mais, pois muitas pessoas teriam ido para casa sem atendimento. Sua versão foi mais próxima à sustentada pelos republicanos: a autoridade policial tardou muito a aparecer, apesar do caos instalado e que já era previsto, em função dos boatos que há dias circulavam pela cidade. Só depois de várias horas de confrontos chegou uma diminuta força policial. O que não foi ressaltado pelas publicações consideradas é que as vítimas eram, em sua maioria, integrantes da Guarda Negra. Segundo o ofício do delegado de polícia Francisco de Paula Valladares, os mais de 30 feridos eram ‘“homens de cor”’ (GOMES, 1991, p. 77) feridos por armas de fogo.

A esse respeito, também escreveu Medeiros de Albuquerque, correligionário e admirador de Jardim, porém revelando um saldo mais desastroso. Tomo esse relato como um dos mais impressionantes sobre o dia 30 de dezembro. Nenhum constrangimento teve o escritor em detalhar décadas mais tarde o ocorrido: “Carregávamos o revólver, entreabríamos uma fresta na janela e pondo apenas o braço de fora descarregávamos os cinco tiros do barrilete. Feito isso, nova carregação, nova descarga. Descarga ao acaso, contra a multidão compacta e cada vez mais furiosa.” Felizmente, conforme registrou o escritor pernambucano, a polícia não ousou em armar os pretos com armas de fogo. Deram-lhes apenas cacetes e

56 Tais informações foram extraídas da seguinte fonte: CONFLITO muito grave. Jornal do Comércio. Rio de Janeiro,

navalhas. No entanto, ele e seus correligionários, a exemplo do próprio conferencista, estavam todos armados e a regularidade de suas funções – carregar e descarregar os revólveres sobre a turba “sanguinária e ululante” – matou muitas pessoas, “cujos cadáveres a polícia escondeu” (ALBUQUERQUE, M., 1942, pp. 70-72).

A surpresa da reação republicana havia, segundo aquele testemunho, atrapalhado os planos das autoridades policiais, que pretendiam uma “rápida e triunfante” vitória dos negros. Ao final, a força pública não pôde fingir que ignorava a violência e a mortandade que se estenderia pela continuidade do confronto. O memorialista destaca, ainda, a surpresa dos amotinados ao perceber que estavam sendo reprimidos pelos agentes que teriam lhes incentivado à ação. Ou seja, na narrativa de Medeiros de Albuquerque, os “negros recrutados e incitados” para “dar cabo de Silva Jardim” (ALBUQUERQUE, M., 1942, p. 71) haviam sido traídos pela própria força recrutadora, a polícia, que, de forma hipócrita, chegou mais tarde a oferecer proteção aos republicanos, aconselhados por ela a tomarem a direção da Rua do Lavradio.

Amedrontado, Lopes Trovão aceitou prontamente o apoio recusado por Jardim. Este, dispensando a proteção, optou por fazer o percurso de sempre, descendo a pé a Rua do Ouvidor. Ali, depois de passar pelo Café de Londres, tradicional ponto de encontro que havia se tornado o “quartel general da propaganda” (ALBUQUERQUE, M., 1942, p. 71), ele recusou polida, mas firmemente, a sugestão de que deveria tomar um carro para retornar à casa com segurança. Não haveria de mudar de procedimento naquele dia. Morador de Santa Teresa, ele costumeiramente usava a Rua Monte Alegre57 entre sua residência e o centro da cidade, conforme trajeto relembrado por José Leão (1891, p. 217) Apesar de sua postura descrita como imperturbável frente aos acontecimentos do dia 30 de dezembro, eles tiveram consequências para o tribuno, que foi responsabilizado judicialmente e condenado a ressarcir o Salão de Ginástica Francesa dos prejuízos ocorridos.

Jardim também deixou registrado o momento em que repeliu a ajuda dos policiais. Estava ao lado de Medeiros de Albuquerque que em um gesto de solidariedade e talvez de proteção, deu-lhe o braço. O apoio do escritor e correligionário foi também rechaçado:

Deixe-me, disse-lhe. Quero ir só. Quero ver quem tem mais coragem: se eu para morrer, se essa gente para me matar. Segurava o meu revólver dentro do bolso de modo bem evidente. Todos os olhares dos pretos convergiam sobre mim. Eram olhares furiosos. Eu fitava-os sereno e continuava o meu caminho (JARDIM, 1891b, p. 233).

Mais do que as reiteradas declarações de Jardim buscando reforçar sua fama de ousadia e bravura é importante destacar, novamente, o testemunho de Medeiros e Albuquerque com relação à ocultação do

57 A rua, cuja denominação continua a mesma, liga a Rua Riachuelo, no cento do Rio, ao local que corresponde à antiga Rua

número real de mortos no conflito. Ele vai ao encontro do que também relatou o Presidente da Legação Francesa no Brasil naquele período, Amellot de Chailou, ao Ministro dos Negócios Estrangeiro da Terceira República em Paris, René Goblet. Segundo o Conde Chaillou, as “desordens” (CHAILLOU, 1889) do dia 30 de dezembro deixaram um saldo trágico: oito mortes e cerca de trinta feridos! A correspondência nos fornece outros detalhes não ligados à violência cometida contra os manifestantes, mas que lamentavam os estragos materiais em prejuízo da instituição: a bandeira francesa pertencente ao clube alugado pelos republicanos foi dilacerada, assim como a mobília do recinto foi depredada em grande parte pela ação dos próprios locatários do recinto, que, sitiados pela ação dos “monarquistas” (CHAILLOU, 1889), usavam o que tinham a disposição como projéteis.

O testemunho de Medeiros e Albuquerque aliado ao do adido francês permite uma aproximação aos relatos contidos em Massacre dos Libertos (GATO, 2020). Tratando da repressão às manifestações contrárias à República, ocorridas em 17 de novembro de 1889, em São Luís do Maranhão, Matheus Gato recupera as dimensões violentas do evento. Contra a multidão de pessoas, descritas como ‘“libertos”’, ‘“homens de cor,”’ ‘“cidadãos do 13 de maio”’ e ‘“ex-escravos”’ (GATO, 2020, p. 31) foram descarregados os fuzis de uma tropa de elite composta por doze soldados, deixando vários feridos e, em números oficiais, o registro de quatro mortes, soma que excedeu a duas dezenas em memórias reveladoras da tragédia. Fontes utilizadas pelo autor inserem o conflito do Maranhão no conjunto das resistências à República. Jardim está no centro de duas delas: além do famoso confronto no Rio de Janeiro, do qual continuaremos a tratar, as confusões instauradas em Salvador, em junho de 1889, matéria do último capítulo.

Continuemos a tratar das repercussões do evento em pauta. Até o comício da Travessa da Barreira, raras eram as menções, nunca nominais, feitas por Jardim a José do Patrocínio. Ao contrário, dirigia-se sempre a Joaquim Nabuco, recordado como único “adversário a temer [...] aureolado pela vitória da Abolição, [...] pelo seu renome de orador e parlamentar, pelo seu passado de escritor [...] pelos seus antecedentes de família e pela sua reconhecida honestidade” (JARDIM, 1891b, p. 223). O ataque de 30 de dezembro, atribuído à Guarda Negra, porém, fez as baterias do advogado voltarem-se contra o jornalista, muito embora não o nominasse:

Este homem, de cor, mas até então tolerado por todos os brancos, que jamais lhe haviam feito questão de raça, muito amado mesmo pela mocidade e pelo público generoso, em vista de uma suposta dedicação à causa dos escravos, - converteu-se em órgão da dinastia, principalmente da Princesa D. Isabel, e do ministério, que apenas presidira ao ato parlamentar da abolição; - e daí começou de sustentá-los, traidor então à sua raça, que por proletária no Brasil carece claramente, para o seu desenvolvimento, de um regime republicano, traidor ao partido a que dissera pertencer, não como renegado confesso, mas como Judas consciente, e reputado tal, pelo continuar a se dizer dele sectário, iludindo apenas a um e outro inexperiente, e traidor à sua pátria, composta de

brancos e pretos, para todos os quais uma sagacidade, desgraçadamente perdida e perversa, lhe podia fazer claramente entrever que a República seria a felicidade (JARDIM, 1978, p. 312).

Essa fala de Jardim, apesar de negar a discriminação racial, revelava, ao contrário, como destaca Humberto Fernandes Machado, “um forte preconceito contra o negro Patrocínio” (MACHADO, 2014, p. 49). O jornalista enfrentou outras ostensivas manifestações de preconceito racial, quando de seu enlace com Maria Henriqueta, a Bibi, moça branca, filha do casal que lhe empregara como professor nos tempos iniciais da sua vida na Corte58 ou por ocasião de sua candidatura ao Parlamento em 1884.59 A forma com que o jornalista processava essas manifestações de intolerância foi analisada de maneiras diferentes. Humberto Fernandes Machado encontrou, na carta injuriosa que lhe fora enviada por ocasião da sua campanha a deputado, não o repúdio ao preconceito racial, mas a sua própria confirmação.

Na resposta à ofensa, Patrocínio destacou que “[...] embora fosse preto, não era escravo.” (MACHADO, 2014, p. 33). Considerado então um dos mais aguerridos abolicionistas do Rio de Janeiro, ele “[...]demonstrou uma visão preconceituosa na medida em que negou, com veemência, quaisquer laços com a escravidão. Não era preto qualquer muito menos escravo” (MACHADO, 2014, p. 33). Retornando às fontes60, pude verificar, assim como Ana Flávia Magalhães, que o texto completo revela-nos que o jornalista, no seu estilo mordaz, intencionou apontar “o quão patética era a mania de se agredir gente negra livre com o pretenso xingamento de ‘escravo’” (PINTO, 2014, p. 203). Parece-me bastante claro que, naquele episódio, o jornalista não negou sua cor e nem se mostrou diminuído por ser negro. Ele pretendeu evidenciar que o fato de ser um homem de cor não o qualificava como escravo, como subserviente ao seu interlocutor, que queria desqualificá-lo como candidato a um cargo político. Essa sua reafirmação como homem livre permite a associação com a tese de Hebe Mattos sobre a estratégia da negação de cor, não como simples recurso ao branqueamento, mas como a definição de “lugares sociais”, como o “signo de cidadania na sociedade imperial, para a qual apenas a liberdade era precondição” ( MATTOS, 2013, p.106).

Ao responder a carta desabonadora, em 1884, reafirmando-se como intelectual, situou-se ao lado de outros afrodescendentes, como o falecido médico Dias da Cruz, exemplo da raça “impetuosa e inteligente” que a “fecundidade do ventre africano” havia criado em terras brasileiras: o “crioulo mulato” ( PATROCÍNIO, 27 set. 1884, p. 1). Esse aspecto me parece o mais relevante do texto, pois é a tese da miscigenação a aproximar os egressos da escravidão à conformação da projetada sociedade a ser

58 Ver: PINTO, Ana Flávia Magalhães. Fortes laços em linhas rotas: literatos negros, racismo e cidadania na segunda metade do

século XIX. 2014. Tese (Doutorado em História). Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2014, p. 94.

59 Ver: MACHADO, H. F. Palavras e brados..., pp. 33.

60 A resposta de Patrocínio pode ser encontrada em: PATROCÍNIO, J. Gazeta da Tarde. Rio de Janeiro, ano 5, n. 226, 27 set.

construída em um tempo livre dos atrasos do cativeiro. Conforme destacou Humberto Fernandes Machado, Patrocínio sempre se utilizou de argumentos que respaldavam a miscigenação como forma de aprimoramento racial. Para ele, “‘as raças humanas modificavam-se radicalmente, conforme o lugar em que habitam e adquirem por hereditariedade as qualidades daqueles com que estão em contato”’(MACHADO, 2014, p. 79).

O que eu pretendo ainda ressaltar é que o jornalista talvez tenha se inspirado na tese positivista que negava as diferenças raciais biológicas e, em seu lugar, promovia a teoria “sociológica das raças” (ALONSO, 2002, pp. 214-220). Segundo essa teoria, a hierarquia racial seria definida e redefinida ao longo do seu desenvolvimento histórico. Arrisco apontar essa tendência em Patrocínio com base em outros textos, inclusive produzidos durante os embates com Silva Jardim sobre a Guarda Negra. Neles, o jornalista parece concordar com a tripartição que hierarquizava os grupos étnicos de acordo com suas funções sociais. Assim, a raça branca seria intelectiva; a amarela, ativa e a preta, afetiva. A nacionalidade brasileira estaria entregue, sobretudo às duas primeiras, que conjugariam a impetuosidade – categorial emocional associada à raça negra –, à inteligência dos colonizados brancos.

Voltemos ao longo fragmento destacado acima, parte da Carta política ao País e ao Partido

Republicano, publicada em janeiro de 1889. Nele, Jardim explicita suas diferenças com Patrocínio a partir

de sua relação com a Guarda Negra, o equivalente a dizer que, dali para frente, o jornalista sentiria enfim o peso que sua cor e origem teriam na sociedade oitocentista – peso esse que, segundo algumas interpretações, era negado pelas próprias vítimas do preconceito. Ana Flávia Magalhães entende que a negação pública do preconceito de cor sustentada por homens negros como José do Patrocínio e o engenheiro André Rebouças revelava muito da apreensão diante dos prejuízos que poderiam ser acarretados com a explicitação do “‘ódio de raça’” (PINTO, 2014, p. 207).

Para a autora, “o preconceito de cor ou o estigma da raça era visto como um grande entrave para a democracia brasileira, e homens como Patrocínio manifestavam certeza a esse respeito” (PINTO, 2014, p. 207). Tendo, em primeiro lugar, a isolar as falas de Patrocínio relacionadas à emergência da participação dos “homens de cor” como contestadores e apoiadores da ideia republicana. Elas foram enunciadas no contexto específico da atuação da Guarda Negra no imediato pós-Abolição com a intenção de negar o caráter racial dos conflitos entre republicanos e monarquistas. Assim sendo, o jornalista tentou evidenciar o caráter político da corporação, formada por “uma raça que pelos seus sentimentos generosos conseguiu fazer-se amar ao ponto de sermos um povo quase sem preconceito de cor.” Há que se sublinhar a parte ‘sentimentos generosos’ e associá-la ao que há pouco foi exposto: a teoria sociológica das raças, também amplamente utilizada por Jardim, que a todo instante contrapunha o desenvolvimento intelectual dos brancos à “afetuosidade da raça negra” (JARDIM, 1978, p. 224).

como explicativo da atuação da Guarda Negra, ocuparam-se justamente de mostrar esse preconceito, embora de uma forma muito peculiar, que deixa visível constante esforço para defender o seu próprio espaço no mundo dos homens livres e, portanto, dos brancos. Aceitar essa contra-argumentação, bastante próxima da análise sustentada por Ana Flávia Magalhães, não torna excludente os aspectos ressaltados pelos outros autores incluídos neste debate. Proudhon, pseudônimo que então adotara, já escrevendo como

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