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NOVAS PLATEIAS, DIFERENTES DEMANDAS: O DEFENSOR DO “PROLETARIADO” E DA

No documento martalucialopesfittipaldi (páginas 124-133)

3 O RETORNO À CORTE: DO ENTUSIASMO DOS PRIMEIROS ENCONTROS AO

3.2 NOVAS PLATEIAS, DIFERENTES DEMANDAS: O DEFENSOR DO “PROLETARIADO” E DA

Logo depois de sua transferência para a cidade do Rio de Janeiro, Silva Jardim engajou-se em uma campanha iniciada pelos proprietários de prédios domiciliares e comerciais, que se levantavam contra um projeto do governo que oneraria a distribuição de água, “ônus que recairia diretamente sobre eles e indiretamente sobre o povo” (JARDIM, 1891b, p. 201). O projeto de colocação de hidrômetro para a cobrança da água não passou na Câmara dos Deputados, tendo os argumentos de Jardim muito contribuído para isso. Ele mostrou os perigos para a saúde, pois a pretendida medida afetaria os hábitos de asseio da população. Alertava para o sofrimento dos proletários, dependentes das lavanderias dos cortiços, e repelia a pretensão de se sujeitar o povo à sede e à falta de asseio para fazer dinheiro.

A “conferências das águas” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 30 set. 1888, p. 1) que estava marcada para a tarde de dia 30 de setembro, um domingo, no Teatro Politeama. O convite dirija-se a todos os

cidadãos, independentemente de orientação política ou classe social ou nacionalidade. O mesmo jornal comentou que o talento do orador e o grande interesse suscitado pelo assunto, que afetava toda coletividade, tinham atraído para o teatro cerca de duas mil pessoas. Jardim quis capitalizar politicamente o tema e convocou um meeting para o dia seguinte, no mesmo Politeama, onde, por uma hora e meia, havia falado a milhares de pessoas. Como já comentado no segundo capítulo, ele contou então com a intermediação de outros oradores, entre eles, Cândido Barata Ribeiro, médico que agregou argumentos científicos às suas explanações, o que pode novamente apontar a imbricação dos significados entre as palavras conferência e meeting, tão usadas nas décadas finais do Império.

A questão do “fechamento das portas” também recebeu a atenção de Jardim, que foi convocado pela Associação dos Empregados no Comércio para defender a reivindicação da categoria em prol do descanso aos domingos e feriados. A conferência pública16 aconteceu no Imperial Teatro São Pedro d’Alcântara, na noite de 27 de outubro de 1888, um sábado.17 Interessante destacar dessa conferência alguns pontos. Jardim procurou logo identificar-se com a plateia, majoritariamente composta por comerciários. Dizia-se um homem do povo e para o povo. Lembrou sua origem humilde e seus tempos como secretário comercial na capital do Império, o que pode ser relacionado à teoria da “autoridade do falante” (BORDIEU, 1996, p. 87) como elemento importante de convicção, segundo Murilo de Carvalho (2000), já sublinhado nos fundamentos da Retórica. Ou seja, os ensinamentos das tardes das discurseiras,18 ainda nos tempos do preparatório, eram ali praticados pelo orador, que buscava uma aproximação estreita entre seus argumentos e sua própria história. Apresentando-se como pertencente à própria plateia, Jardim defendeu seus pontos de vista.

Várias vezes utilizou-se do termo “proletário”, preocupando-se mesmo em desenvolver o conceito em uma longa explanação sob a ótica da filosofia positivista. Voltemos à sua fala na questão do “fechamento das portas”. A igualdade absoluta não existiria, como provado pela filosofia natural e social. A primeira mostraria as distinções físicas, intelectuais e morais entre os homens, e a segunda demonstraria a necessidade de uma ação livre. Assim sendo, a igualdade absoluta impediria a liberdade. Havia, portanto, a fatalidade das classes, que, no entanto, não era um impedimento para a solidariedade por meio da harmonia entre proprietários e trabalhadores: “[...] harmonia belíssima, senhores, que a humanidade estabeleceu entre o capital e o trabalho, entre o forte e o fraco! Harmonia belíssima que é proteção ao fraco,

16 Especificação contida na introdução do livro Propaganda Republicana. Embora a apresentação das águas não tenha recebido

qualquer classificação neste sentido, tudo indica que aquele evento realizado no Teatro Politeama tenha sido igualmente público. JARDIM, Antônio da Silva. Propaganda Republicana – 1888-1889: Discursos, opúsculos, manifestos e artigos coligidos, anotados e prefaciados por Barbosa Lima Sobrinho. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura. Fundação Casa de Rui Barbosa, 1978, p. 30.

17 Conforme outro comunicado publicado na imprensa: ASSOCIAÇÃO dos empregados no comércio do Rio de Janeiro. Gazeta

de Notícias. Rio de Janeiro, ano 14, n. 300, p. 3, 26 out. 1888.

18 Assim se referiu Jardim às aulas de retórica, entre amigos, nos tempos do curso preparatório, ainda na década de 1870, no Rio

ao pobre, ao proletário, e vantagem ao forte, ao proprietário das riquezas, ao patriarcado!” (JARDIM, 1978, p. 218). Defendeu a dignidade da pobreza, pois, atrelada à necessidade do trabalho, contribuía para o desenvolvimento de novas forças sociais: “[...] desde então reconheceu-se de todo o valor do proletariado, essa massa tornada poderosa pelo número, em cujas mãos está afinal a sociedade moderna” (JARDIM, 1978, p. 218). Pela primeira e única vez em seus discursos hoje disponibilizados, Jardim abordou diretamente a ideologia marxista,19 atribuindo-lhe um caráter anacrônico:

Há ainda hoje uma escola, que não compreende a ligação simpática entre o capital e o trabalho, entre o pobre e o rico. Partindo, é verdade, de um ponto exato – que toda a riqueza é social em seu destino e em sua origem, - o comunismo quer a divisão da propriedade, que deve ter uma apropriação individual (JARDIM, 1978, p. 221).

Alongou-se em explicar por que a riqueza pode ser considerada social em sua origem e em seu destino, apresentando situações relacionadas principalmente ao comércio. Muito aplaudido, seguiu contrapondo outros argumentos. Por exemplo, para que a propriedade tivesse um fim social, deveria receber uma apropriação individual. Defendeu os grandes capitais, contra o que chamou de condenação da grande propriedade, a exposição do rico ao “ódio público, considerado incapaz de inteligência e bons sentimentos” (JARDIM, 1978, p. 221). Dessa forma, reconhecia que a concentração da riqueza, quando bem administrada e aplicada, produziria melhoramentos e resultados maiores. Ao contrário, a lei contra a propriedade seria um atentado à liberdade de grandes inconvenientes sociais, pois era inerente aos ricos a “generosidade eficaz”:

Temos exemplos dessa generosidade [...]. Que os ricos, os fortes, protejam aos pobres e que os pobres, sentindo-se fracos, procurem apoio em outros fracos, auxiliem aos companheiros, a todos que lutam quase vencidos na carreira da existência. De uma tal arte ricos e pobres, fortes e fracos, unem-se e combinam- se, fundam associações de mútua beneficência, desenvolvem a fortuna comum, marchando à felicidade geral (JARDIM, 1978, p. 222).

Defendeu que o reivindicado direito ao descanso fosse regulado por postura municipal derivada da alteração dos costumes. Com isso, contrapunha-se à votação da questão pelo Parlamento, pois não teria o governo o direito de intervir no assunto, que deveria ser solucionado com acordos entre empregadores e empregados. E se uma determinada casa trabalhasse bem apenas aos domingos? indagava. Tratava-se de uma arbitragem social, como vinha defendendo o correligionário Quintino Bocaiuva.

19 Alonso explica a pouca penetração de autores socialistas no Brasil oitocentista: “Esquemas mentais absolutamente estranhos à

tradição imperial não teriam gerado uma crítica suficientemente inteligível dela. [...] As obras da geração de 1870 partem dos temas e dilemas do publicismo radical da década anterior e buscam na política novas respostas.” ALONSO, A. Ideias em Movimento..., p. 177

Depois de ressaltar o mérito dos comerciantes e também dos empregados do setor, Jardim dedicou-se em mostrar as vantagens do trabalho moderado em benefício de todos que integravam o setor. Frisando que suas ideias estavam ligadas à escola positiva de August Comte, classificou como mais produtivo o trabalho moderado, uma vez que poderia ser contínuo, prazeroso, salutar, ordeiro e, portanto, promotor do progresso. Assim, Jardim se inseria no amplo debate intelectual que buscava conformar os novos tempos da almejada modernidade. Naqueles anos de 1880, sobretudo no período pós-Abolição, alguns temas tornaram-se obrigatórios, como o lugar e o papel dos trabalhadores negros em novas projeções sociais. Naquela ebulição de ideias, o termo república, conforme pontua Maria Tereza Chaves de Mello (2011) tornou-se autônomo nas disputas discursivas como sinônimo de outro conceito amplamente difundido: a democracia. A autora atribui aos “republicanos radicais” ligados ao positivismo – vertente em que ela inclui Silva Jardim como principal representante – uma formulação mais ampla de povo e igualdade social com relação ao que fora formulado por Assis Brasil, um dos principais teóricos do federalismo republicano.20

Embora a autora tenha localizado, nos “niveladores” de extração socialista – um grupo diminuto integrado por Evaristo de Moraes e Lúcio de Mendonça –, a mais extremada concepção de igualdade, ela também destacou a fala de Jardim, que evocava o povo não como a entidade abstrata saída da revolução francesa, conforme já apontado largamente pela historiografia, mas como grupos definidos. A autora então transcreve a parte final do seguinte trecho do discurso realizado em 7 de abril de 1889, na Associação Comercial de São Paulo: “[...] somos em nossa origem a burguesocracia de que, como republicanos, procuramos fugir, desejosos convosco de uma sociocracia, em que seja feita a vontade de todos, a vontade de Povo, isto é do pobre, isto é, do fraco, isto é do proletariado; - democracia afinal! (JARDIM, 1978, p. 340).

Além da fala de Jardim, tomado como representante do positivismo, Mello (2001) lembra ainda as leis trabalhistas entregues pelo Apostolado ao Governo Provisório e que foram consideradas avançadas para a época, conforme análise de Murilo de Carvalho. Explica que August Comte via a evolução científica e industrial como meios para o surgimento de uma nova camada social: o proletariado. Esse último pressuposto fica bastante claro na fala do propagandista, que, mais de uma vez, dirigiu-se à plateia formada por trabalhadores urbanos, empenhado em demonstrar o potencial que tinham como agentes de mudança pela sua força numérica: “[...] e desde então reconheceu-se de todo o valor do proletariado, essa massa tornada poderosa pelo número, em cujas mãos está afinal a sociedade moderna” (JARDIM, 1978, p. 218). Contudo, as diferenças sociais foram de certa forma naturalizadas em sua fala e a democracia relegada a um modelo ideal de governo republicano que, no entanto, seria adiado para um momento

20Ver: MELLO, Maria Tereza Chaves de. A República e o sonho. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, n. 45, pp.121-139,

oportuno, quando o povo brasileiro estivesse para ele preparado.

Lembremos que, no início de 1889, quando rompeu publicamente com a direção partidária, Jardim alinhou-se à ideia, também positivista, da ditadura republicana. José Murilo de Carvalho (2011) ressalta que a república só foi separada da democracia por positivistas como Aníbal de Carvalho, Júlio de Castilhos e Silva Jardim. A democracia representativa, nos moldes liberais, seria, de acordo com a concepção comtiana, característica do estado metafísico da humanidade que sucedeu ao estado teológico e que deveria ser substituída pelo estado positivo, cujo governo adequado seria exercido pela ditadura republicana, em benefício do bem coletivo, na qual o Parlamento cumpriria somente função orçamentária. Moldando o seu discurso à plateia, Jardim afirmou que a classe que mais trabalhava no Brasil era a dos empregados no comércio, comparando-a ao “proletariado agrícola”.há pouco formado pelo escravo, que trabalhara sob pressão material e sem estímulo, e que mostrara muitas vezes tendência natural para a revolta contra o jugo injusto e contínuo. Além disso, desprovido dos estímulos “da inteligência e da independência”, o trabalho escravo tinha sido por séculos caracterizado “pelo vagar, pela fuga demorada, ou pela moléstia”. Obteve, portanto, um resultado menor que o do “nobre proletariado comercial.” Deteve- se em explicar o significado do termo: proletário era todo aquele que, não tendo fortuna, “vivia do trabalhado diário ou mensal.” O proletariado do setor terciário brasileiro pertenceria à “raça caucásia” (JARDIM, 1978, pp. 223- 224), formadora da nação brasileira e que, ao contrário da raça negra, caracterizava-se pelo desenvolvimento da inteligência. Declarações como essas, que poderiam ser classificadas de preconceituosas, não foram exceções no conjunto discursivo de Sila Jardim. Elas serão analisadas no próximo capítulo.

Na conferência sobre o fechamento das portas, o advogado tentou cooptar a simpatia da plateia, formada por comerciantes e, majoritariamente, por comerciários, primeiro questionando a aventada indiferença do comércio em alguns movimentos sociais. Seria injusta essa afirmação. Na luta abolicionista, teria presenciado, em Santos, a atuação de comerciantes, auxiliando, inclusive com o emprego de grandes capitais, o acoitamento dos fugitivos. Segue justificando, por outro lado, a tendência do conservadorismo da classe, cuja preocupação com a vida prática “imprimi-lhe um espírito de ordem.” Defende-se, então, da pecha de agitador, qualidade que passou a relativizar de forma mais ou menos aguda, dependendo da audiência.

É um agitador, é um revolucionário, segundo se pensa, quem vos fala. Mas jamais, senhores, eu quereria para a obra política que empreendo, o concurso de uma classe, quando esse concurso não fosse consciente e refletido; jamais enquanto ela não tivesse compreendido que transformação não é revolução armada, e que a revolução não era anarquia. (JARDIM, 1978, p. 223).

Vale aqui destacar a crítica ao sistema eleitoral e às discriminações nele contidas, conforme objetivou demonstrar. Recorreu, como muitas outras vezes, à ironia, afirmando que a Monarquia prezava muito pelo comércio, que só serviria para fornecer-lhe capitais em ocasiões perigosas. Tanto isso era certo, asseverou, que a Constituição excluía do grupo de não votantes, por pertencer à classe de servir, os guarda-livros e os primeiros caixeiros das casas de comércio. Indignado, segundo as observações do taquígrafo, o conferencista denunciava o descaso do governo com a classe comercial: “Quer dizer que a Constituição de nosso País admite a hipótese de se considerar criado de servir o guarda-livros e o primeiro caixeiro! Quanto ao 2º, 3º e 4º caixeiros, estes, pela Constituição, são criados de servir, são assim considerados” (JARDIM, 1978, p. 229). Jardim demonstrava estar atento a uma forte demanda da plateia referindo-se, na verdade, ao 2º artigo da legislação eleitoral vigente – a Lei Saraiva – que reiterava os dispositivos do inciso III do artigo 92 da Constituição de 1824 sobre o exercício da cidadania: estavam excluídos os criados de servir, grupo em que não deveriam ser incluídos os guarda-livros e os primeiros caixeiros das casas comerciais, os criados da Casa Imperial que não fossem de “galão branco” e os administradores de fazendas rurais e fábricas. 21

Lembremos que o Decreto nº 3.029 de 1881 inaugurou o sufrágio direto no Brasil, mas manteve exigências censitárias para a qualificação do eleitor e proibiu o voto dos analfabetos, o que deixava de fora grande parte da população, pobre e iletrada.22 Praticamente, anulavam-se assim os efeitos permitidos pela letra fria da lei que facultava aos ex-escravizados nascidos no Brasil a condição de elegíveis e eleitores.23 Mas o que Jardim destacava em sua fala, essencialmente corporativa, é que parte considerável dos comerciários continuava excluída do exercício da cidadania por fazer parte da categoria “criados de servir.” Não encontrei, no entanto, nenhuma crítica do conferencista ao fato de que a categoria “criados de servir” certamente abarcava, de forma generalizada, as muitas ocupações exercidas, no pós-Abolição, 21 Ver: CONSTITUIÇÃO POLITICA DO IMPERIO DO BRAZIL (DE 25 DE MARÇO DE 1824).

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm. Acesso em: 12 ago. 2020.

22 Comentando a exigência da alfabetização pela Lei Saraiva, Chalhoub destaca que, no Brasil oitocentista, negro

na escola era caso de polícia. O autor cita ofício reservado, de 1835, do então chefe de polícia da Corte, Eusébio de Queiróz, ordenando que se investigasse as denúncias sobre reuniões de pretos Minas a título de escola de ensinar a ler e escrever”, muito embora ressalvando que tal providência fora tomada quando na própria cidade do Rio havia certo sobressalto com a possível rebeldia dos negros devido aos acontecimentos recentes em Salvador. “O fato de haver africanos reunidos pode ter sido mais relevante no caso do que o motivo escolar mencionado.” CHALHOUB, S. Precariedade estrutural: o problema da liberdade no Brasil escravista (século XIX). História Social, n. 19, 2º semestre, pp. 33-62, 2010, p. 42. Abordando um outro período, Schwarcz aponta a ligação entre a lei do Ventre Livre, em 1871, e a criação de estabelecimentos para a educação de ingênuos e libertos. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, pp. 38-39.

23 Lembremos que a Constituição de 1824, embora reconhecendo os direitos civis de todos os cidadãos brasileiro

a partir da revogação do dispositivo colonial da “mancha de sangue,” manteve a diferenciação dos direitos políticos com bases em critérios censitários, cujos limites, já bastante restritivos, não valiam para aquele que não tivesse nascido ingênuo, ou seja, livre. Assim, a manutenção da escravidão e o impedimento legal de direitos políticos plenos aos libertos “tornaram o que hoje identificamos como ‘discriminação racial’ uma questão crucial na vida de amplas camadas das populações rurais e urbanas do período”. MATTOS, Hebe. Escravidão e cidadania no Brasil monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2 ed., 2000, pp. 20-21.

pelos egressos do cativeiro, fossem bom senso eles “13 de maio” ou portadores de precária liberdade mais antiga.

Ao fim do discurso, em que, como vimos, a luta de classes do marxismo era refutada e substituída pela propostas positivistas de relações harmoniosas entre o pobre, o fraco e a benevolente classe proprietária, Jardim novamente apontou a força do proletariado, termo que, por várias vezes, ele apresentou, inclusive explicando o seu significado, em um claro esforço de introduzir o conceito na cena política do País:

À classe operária que é o vasto corpo social, cabe produzir o trabalho e também a regeneração social, pela educação de seus membros e a proteção mútua; também a colaboração em negócios públicos, ou interesse pelas questões sociais, por uma justa apreciação, auxiliando a formação da opinião pública, a maior força humana, pois tem pela sua força numérica a serena persuasão de um conselho e a opressora imposição de uma ordem. (JARDIM, 1978, p. 230).

Necessário um parênteses para que se relativize a interpretação acima. Maria Auxiliadora Dias Guzzo (2003) lembra que não há evidências de que o advogado fluminense tenha lido Karl Marx.24 Não há, em seus escritos, a menor referência ao teórico alemão. Apenas a palavra comunismo é usada de forma vaga. Em contrapartida, argumentações, principalmente baseadas no caráter determinístico da história, eram próprias da época, apresentando o próprio positivismo uma visão teleológica dos rumos da humanidade, também presente no marxismo. Além disso, no que diz respeito à defesa do proletariado, Jardim não se baseia no ideário marxista, pois nomeia como proletários os ex-escravos e seus descendentes, bem como imigrantes e homens livres pobres em geral. A autora, com tais argumentos, nega afirmações, como a de Maurício Vinhas de Queiroz, de que Jardim teria defendido um governo socialista. Certamente que não, acrescento: ele propunha uma sociedade que funcionasse harmonicamente como uma grande engrenagem azeitada pelo progresso e pela ordem.

Certo é, que sendo ou não um leitor direto de Karl Marx, Jardim apropriou-se das ideias marxistas para refutá-las, inclusive ressignificando a categoria proletário para delinear o Brasil republicano de seus sonhos.25 Mais de uma vez, defendeu que os trabalhadores egressos da escravidão deveriam incorporar- se ao proletariado e, para tanto, era indispensável a valorização da lavoura, que necessariamente passaria pela modernização. Por ocasião do primeiro aniversário da Lei Áurea, afirmou que o movimento abolicionista visava não ao que vinha ocorrendo, mas à “completa incorporação do proletariado à sociedade moderna” (JARDIM, 1978, p. 354). Fazia, com isso, uma de suas mais claras adesões à parte 24 Leão registrou que Jardim havia deixado de lado “leituras revolucionárias” para se dedicar aos autores ligados ao positivismo,

o que indica um escopo de leitura maior, embora não definido, do nosso personagem. LEÃO, J. Silva Jardim..., p. 61.

25 Baseio-me no conceito de apropriação que refuta a passividade do receptor, atribuindo-lhe a capacidade de

variação, de desvio, de reinterpretação. CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002.

final do pensamento comtiano. Nos textos dedicados ao proletariado, Comte propôs dignificar pobres e ricos, preparando os primeiros para o trabalho e limitando as ambições exacerbadas dos segundos, evitando, assim, o agravamento das injustiças socais, que poderia alavancar novos processos revolucionários, como os ocorridos na França no século anterior. Opunha-se com tal expediente à ideia de lutas de classes.26

O seu discurso, a despeito das considerações destacadas sobre a fraqueza do pobre a depender da atestada benevolência dos ricos proprietários, teria “causado uma bela impressão na classe caixeiral”

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