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O ensino das ciências físico-químicas em Portugal no Ensino Secundário

2. EDUCAÇÃO NUM MUNDO EM MUDANÇA

2.4. O ensino das ciências físico-químicas em Portugal no Ensino Secundário

A questão que agora colocamos, é a de saber se os programas da área das ciências, nomeadamente as ciências físicas e químicas, respondem aos desafios que se colocam na contemporaneidade, na linha que tem sido apresentada. Para uma operacionalização da procura de uma resposta a esta questão, procuraremos um encontro de conceitos. As questões da natureza da ciência e da transdisciplinaridade, pela multidimensionalidade e cruzamentos que lhes são próprios, encontram eco na perspectiva mais vasta da complexidade. Assim, na linha do que vem sendo o quadro conceptual de referência deste trabalho, socorremo-nos da complexidade enquanto

forma de ver para a construção de uma perspectiva de análise que consideramos

pertinente no contexto da educação em ciências. Analisar os programas escolares do ponto de vista da inclusão da complexidade significa procurar indicadores que reflictam, na visão que é apresentada da realidade e do ensino e aprendizagem das ciências, os respectivos princípios inerentes. Uma análise efectuada por Cardoso (2005), neste âmbito, é agora apresentada.

25 Basarab Nicolescu associa a lógica do terceiro incluído a linguagens matemáticas. Exemplo desta

ligação pode ser feita no teorema de Gödel, para explicar a existência de uma unidade interlocutora entre níveis de realidade.

26 A extinção da Área de Projecto foi decidida pelo Ministério da Educação no quadro das medidas de

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Seguindo uma metodologia indutiva de análise, sustentada por um quadro de referência que possui aqueles princípios como estruturantes, construído a partir da revisão da literatura27, e seguindo indicações para uma nova Didáctica das Ciências (Bonil, Sammartí, Tomás, & Pujol, 2004; Izquierdo, Espinet, Bonil, & Pujol, 2004; Garcia, 2004) foram definidas categorias de análise abrangentes e que são:

-a perspectiva dos sistemas complexos,

-a perspectiva hologramática, -a perspectiva dialógica

-a perspectiva global de sustentabilidade -a perspectiva transformadora da realidade.

As três primeiras são directamente baseadas nos princípios do pensamento complexo de Edgar Morin (Morin, 2002a), e justificam-se pela importância que este filósofo tem tido no entendimento da complexidade. As outras duas categorias de análise, sendo transversais na abordagem complexa, revestem áreas de particular interesse numa educação que se deve voltar para a acção e não apenas para a contemplação e explicação do real, e que assume os valores como globais. Estas categorias não podem ser consideradas mutuamente exclusivas mas pretendem constituir um suporte metodológico modelizador e simplificador da análise. Os indicadores enumerados, resultantes do quadro teórico de referência, foram os explicitados no Quadro 6, contribuindo para a definição do significado de cada uma das categorias. Admite-se esta proposta como uma entre outras possíveis.

Tratando-se da análise de um programa disciplinar privilegiou-se a análise qualitativa em detrimento da quantitativa, não tendo sido considerada a frequência com que os indicadores estão presentes. Na actual matriz curricular dos cursos de ciências de cariz não-profissionalizante, as disciplinas de Física e de Química figuram em separado no 12º ano, ao contrário dos 10º e 11º anos em que as ciências físico-químicas se apresentam numa única disciplina, Física e Química A. Se esta última disciplina é frequentada pela grande maioria dos alunos que enveredam pelo ramo de estudos na área das ciências, já a Física e a Química do 12º ano são frequentadas por um número consideravelmente menor de alunos28. Sendo uma opção para aqueles que se encontram, por razões diversas, mais motivados para a sua frequência, interessa saber que nova consciência e novas visões do mundo de hoje, para além dos novos saberes estritamente disciplinares, pode resultar da sua frequência. Assim, a título indicativo, apresenta-se de seguida a análise feita aos programas destas duas disciplinas29.

27 A principal base de trabalho para a procura das categorias de análise é o número monográfico da revista

Investigacion en la Escuela, Complejidad e education. Sevilha, 2004.

28 Por exemplo, na Escola Secundária de Vagos, no ano lectivo de 2010/2011, estavam matriculados 72

alunos na disciplina de Física e Química A, no 11º ano, e apenas 9 alunos em Química e 5 alunos em Física no 12º ano.

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Categorias Indicadores

Perspectiva dos sistemas complexos

- consideração de sistemas não lineares;

- explicação dos fenómenos em termos de multi- causalidade e múlti-efeito;

- uso de descrição indeterminista da evolução dos sistemas; - explicitação de interacção e inter-dependência;

-explicitação da relação com o meio;

- explicação dos sistemas em termos de auto regulação, emergência e recursividade;

- explicitação da irreversibilidade; -uso de modelização.

Perspectiva hologramática

- educação para os valores de justiça global - educação para o ambiocentrismo

- educação para a mudança em co-evolução - abordagem de temas transversais

- diálogo disciplinar - educação na equidade

Perspectiva dialógica

- visão holonomica

- uso dos conceitos de incerteza e probabilidade - complementaridade de noções contraditórias - complementaridade das razões e das paixões

Perspectiva global de sustentabilidade

- educação para a preservação do ambiente - educação para a escassez de recursos - educação para a ecologia à escala global

Perspectiva de acção

transformadora da realidade

- educação para a cidadania

- educação para a democracia participada - apelo ao papel activo de cada indivíduo - educação para a intervenção

- incentivo de estratégias ecológicas de acção

Quadro 6: Categorias e indicadores da inclusão da complexidade nos programas disciplinares

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Programa de Química do 12º ano

O programa de Química do 12º ano é explicitamente caracterizado pelos seus autores como um programa de orientação CTS sob a temática dos "Materiais, sua estrutura, aplicações e implicações da sua produção e utilização" (Programa de Química, 12º, p. 4). Uma leitura geral do programa realça o facto de a ciência ser apresentada na sua interface com a tecnologia e a sociedade. Esta tónica vai de encontro à dimensão “Contexto da actividade científica” de Silva e Sequeira (2006) (cf. item 2.3.1, Parte 1). Tal dimensão é notória, não só na perspectiva geral que é explicitada nos capítulos introdutórios como também na escolha e desenvolvimento dos tópicos das unidades temáticas, como se verá. Esta apresentação é feita tendo em linha de conta a

visão ecológica global e ideias de bem para a humanidade.

Fazendo a análise do ponto de vista da complexidade, e aplicando a categorização de indicadores apresentada no Quadro 6, apresentam-se os seguintes resultados:

i) No que respeita à inclusão de aspectos relacionados com a teoria dos sistemas complexos, são encontradas evidências de que o real é apresentado como resultado da interacção entre sistemas (…compreender a química dos

sistema vivos, (p. 5); …quais são as interacções entre sistemas, (p. 7) em

relação de dependência com o meio, incluindo a dependência energética (pertinência social [das escolhas], cultural, ambiental… (p. 4; impacte da

indústria petrolífera, impacte ambiental, reservas energéticas…) e com a

possibilidade de um determinado grau de organização (sistemas químicos

organizados, (p. 6)). O acaso e indeterminismo está subjacente na referência a

acidentes ambientais e catástrofes, (p. 39). Não são claramente explícitas referências ocasionais ou sistemáticas aos conceitos de multicausalidade, recursividade, auto-regulação e emergência.

ii) A perspectiva dialógica é encontrada, por exemplo, na enumeração das razões apontadas para uma educação em Química, onde são incluídas razões científicas, económicas e de cidadania, mas também culturais, estéticas e humanistas (p.10) numa clara complementaridade entre a razão e o intuitivo, o pensar, o sentir e o agir. São aconselhados os temas geradores de controvérsia (p.9), a análise dos prós e contras de opções tomadas a nível tecnológico (exemplo dos compósitos (p. 62). Nas sugestões metodológicas está subjacente a hipótese de nem todas as questões serem plausíveis de ter uma única resposta, ou mesmo uma resposta (p. 12), o que encontra eco na ideia de incerteza. A visão holonomica está subjacente no entendimento dos materiais nos seus múltiplos aspectos de exploração, inovação, utilização e impacte.

iii) A perspectiva hologramática está presente na ideia de que os interesses particulares estão conjugados e dependentes dos interesses colectivos. Por esse motivo foi aqui considerada a perspectiva ética de humanidade que se encontra no programa (…a construção do conhecimento enquadrada num vasto leque

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de competências, atitudes e valores (p.3) ou ideias de democracia e cidadania.

No que respeita à perspectiva transdisciplinar, ela pode ser encontrada nas referências à interface da Química com a Biologia e a Medicina (p. 6), o apelo à abordagem multi, inter e transdisciplinar e ao uso de situações problema retiradas de contextos reais (p.8), o que se concretiza no desenvolvimento do programa, por exemplo, na sugestão de actividades de sala de aula relacionadas com a comparação de métodos para prevenir a ferrugem, num estudo químico, de uso e de viabilidade dos recursos (p.25).

iv) A perspectiva da acção transformadora da realidade, ligada à ideia de uma educação para a acção, emerge da referência a desafios que actualmente se

colocam aos químicos e engenheiros químicos (p.4,5) como a síntese de novos

materiais, a procura de novos processos de produção ou a procura de métodos de redução do impacte da acção do homem no equilíbrio global. Também o estudo de materiais inovadores como os biomateriais, os compósitos e os

materiais de base sustentada (p.59), uma vez que é feito integrado no estilo de

vida das sociedades e no contexto histórico, tem subjacente um apelo à intervenção e incentivo a escolhas individuais responsáveis e a estratégias ecológicas de acção.

v) A perspectiva global de sustentabilidade cruza todo o programa, dando, por exemplo, nome a uma unidade: Combustíveis, energia e ambiente, onde é referido o impacte da indústria petrolífera (p.37) ou tratadas formas química e economicamente viáveis de implementar a exploração de combustíveis alternativos aos tradicionais (p. 41).

Programa de Física do 12º ano

Na Introdução, o Programa de Física do 12º ano refere claramente que o ensino da Física não pode ser subordinado a «uma qualquer aplicação tecnológica», antes requer um nível de abstracção a assumir. Embora referindo a contextualização como desejável, deixa aos professores a tarefa de a implementar e gerir, «em função dos

interesses e expectativas dos alunos» (p. 330): «A sempre desejável contextualização,

quando se ensinam assuntos de Física, não é um fim em si mesma mas sobretudo um meio pedagógico». Esta ideia está subjacente ao desenvolvimento dos tópicos do

programa onde não se encontram de forma significativa, nos conteúdos e objectivos específicos definidos, ligações a outras áreas e dimensões da vida e da cultura humana. Essa ligação é feita apenas nos objectivos gerais, onde estão subentendidas algumas dessas ligações: «- Realçar as relações entre ciência e tecnologia e a sua importância; -

Realçar o papel da física no desenvolvimento das sociedades e na qualidade de vida das populações, tendo também em conta preocupações éticas, já que esse desenvolvimento pode vir acompanhado de aspectos negativos (produção de armas,

30 À semelhança do Programa de Química, As páginas assinaladas referem-se à versão do programa de

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impactes ambientais nocivos, etc.).» (p. 4,5). No final de cada tópico, um item

designado Física em Acção ilustra uma aplicação da física a um aspecto do dia-a-dia. Como inovação em relação a anteriores programas de Física para o Ensino Secundário, este programa inclui o capítulo Física Moderna, onde os sub-temas são Relatividade, Introdução à Física Quântica e Núcleos Atómicos e Radioactividade. Na Introdução deste capítulo é feita referência ao «modo como se constrói a ciência».

Analisando o programa do ponto de vista da inclusão de aspectos relacionados coma teoria dos sistemas complexos, o programa apresenta sistemas simples correspondentes a modelos laboratoriais ou corpos os sistemas de corpos com interacções limitadas e bem definidas, com um número reduzido de variáveis (pêndulo,

corpo, circuito eléctrico…) mas onde é explicitada, por vezes, a sua relação com o meio

e feita a explicitação da irreversibilidade, (efeito do atrito sobre o movimento dos

corpos (p. 20), movimento harmónico amortecido, p.21). São apresentados sistemas não

lineares mas o seu estudo é simplificado de modo a linearizar o tratamento matemático dos mesmos (ex movimento de um projéctil, p. 18).

São apresentadas recomendações de uso de modelizações e simulações computacionais (p.6), e salienta-se o papel da incerteza, referindo-se a incerteza

experimental, e que esta proporciona um critério para controlar os resultados experimentais à luz de determinada teoria (p.7).

A perspectiva dialógica pode ser encontrada na referência às "vantagens e

desvantagens da aplicação da energia nuclear" (p.59).

Sobre este programa de Física, e uma vez que ele servirá de contexto para o desenvolvimento deste trabalho, parece pertinente apresentar aqui, ainda, uma leitura que então foi feita, numa outra perspectiva: procurámos, de forma mais explícita, as evidências de uma ligação com a contemporaneidade. Tomámos em consideração os aspectos temáticos e metodológicos e também, de uma forma mais alargada, indicadores das possíveis concepções acerca do ensino da Física nos dias de hoje. Os resultados desta análise apresentam-se no Quadro 7.

Em resumo, poderemos dizer que o programa de Física do 12º ano estabelece como mais importante uma aprendizagem sólida de alguns conceitos e leis físicas considerados fundamentais para o prosseguimento de estudos no Ensino Superior pressupondo que os alunos que escolhem Física no 12º ano irão enveredar por estudos em áreas afins da Física ou Engenharias. A relação com a cultura, a humanidade e o mundo são aqui apresentados de forma limitada, comprometendo a formação global e, mesmo, as escolhas dos alunos. Desta forma, o programa parece não dar uma resposta satisfatóra à Recomendação 3 do Report to the Nuffield Foundation, (Osborne e Dillon, 2008) resultado de um estudo sobre o ensino das ciências na União Europeia, respondendo ao desafio da Agenda de Lisboa, que estabelece o conhecimento como a base da economia: «EU countries need to invest in improving the human and physical

resources available to schools for informing students, both about careers in science – where the enphasis should be on why working in science is an important activity – and careers from science where the enphasis should be on the extensive range of ptencial careers that the study of science affords» (ibidem, p.18). Ainda segundo este relatório, a

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si mesmo, e não vista como uma preparação para estudos futuros: «Such a curriculum

[…] would represent an introduction to the cultural capital offered by science , its strengths and limitations, and develop an understanding , albeit rudimentary, of the nature of science it self» (ibidem, p.21). Defendem os autores deste relatório que isto é

válido para todos os estudantes incluindo os futuros cientistas.

Sobre a Contextualização

1. «…desejável…» (p. 3). É deixada ao professor a concepção e gestão da “contextualização”, «…em função dos interesses e expectativas dos alunos.» 2. «…não é um fim em si mesma mas sobretudo um meio pedagógico.»

(p. 3).

Sobre a ligação a outras áreas da vida e da cultura humana

1. «Realçar as relações entre a ciência e a tecnologia e a sua importância.» (p.4)

In Objectivos gerais

2. «Física em acção» Tema no final de cada capítulo onde se faz a aplicação das leis físicas a situações do dia-a-dia

Sobre a ligação Física / Cidadania

1. «Realçar o papel da Física no desenvolvimento das sociedades e na qualidade de vida das populações, tendo também em conta preocupações éticas, já que esse desenvolvimento pode vir acompanhado de aspectos negativos (produção de armas, impactes ambientais nocivos, etc.).» (p.4)

In Objectivos gerais

2. «Referir vantagens e desvantagens da aplicação da energia nuclear.» (p.59)

In Objectivos do subcapítulo Núcleos Atómicos e Radioactividade

Inclusão de tópicos de Física Moderna e Contemporânea

1. No capítulo Física Moderna, inclusão dos temas - Relatividade

- Introdução à Física Quântica - Núcleos Atómicos e Radioactividade

Com o objectivo explícito de introduzir as bases da Física Moderna

2. «Novos conceitos ou teorias são introduzidos para resolver problemas científicos não explicáveis pelas teorias vigentes.» (p. 51)

Referência explícita ao modo como se constrói a ciência.

Quadro 7: Elementos de contemporaneidade no Programa de Física do 12º ano, em Portugal.

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Quanto aos programas analisados poderemos dizer que, se o programa de Química do 12º ano parece dar passos importantes no sentido de responder a desafios específicos da contemporaneidade, o programa de Física, pelo contrário, parece não ter aproveitado o momento para a apresentação de propostas mais ousadas e mais concordantes com as exigências do nosso tempo. Porém, embora não o fomentando explicitamente, o programa não é impeditivo de acções mais inovadoras ao nível das práticas de sala de aula. Pensamos haver lugar para uma Didáctica que inclua propostas mais inovadoras. Nestas condições, o programa pode ser visto como um guia que carece de ser reinventado. As propostas da complexidade podem ser importantes nessa reinvenção, através do cruzamento disciplinar, de um pensamento baseado na itinerância, na ultrapassagem de reducionismos. Nesta perspectiva, estamos perante uma reconceptualização dos programas disciplinares, muito pertinentemente feita na linha de Bloom (2003), que chama a complexidade para um novo entendimento do currículo: «Complexity reconceptualize curriculum as a fluid, interactive and unpredictable

process oriented towards the expansion of the space of the possible knowing/acting at both individual and collective levels».

O actual mundo em mudança impõe estas perspectivas. Uma das vertentes importantes a explorar é a contemporaneidade dos conteúdos disciplinares, aliadas às finalidades da edução. O ensino da Física integra este cenário, sendo a Física Contemporânea uma área que se destaca, pela necessidade de procurar sentidos para um campo de conhecimento tão importante nos dias de hoje e tão contra-intuitivo. Aqui há que procurar formas de colocar aquelas perspectivas em acção.

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