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3. FÍSICA MODERNA E CONTEMPORÂNEA NO ENSINO SECUNDÁRIO

3.1. Pertinência

A adequação da educação em ciência ao mundo contemporâneo prende-se, igualmente, com os próprios conteúdos a incluir nas propostas curriculares. Discutiremos de seguida a relevância e a possibilidade de incluir nos currículos científicos da escolaridade pré-universitária, tópicos relativos ao conhecimento construído pela ciência, nomeadamente no domínio da Física, ao longo do século XX e as suas implicações para a nossa vida diária. Deste modo a educação científica poderá participar na construção de uma cultura, de visões do mundo e uma consciência global da contemporaneidade.

De facto, como ilustraremos a seguir, nas últimas três décadas tem sido desenvolvida uma argumentação em que se defende a procura de soluções didáctico- pedagógicas que permitam a inclusão de tópicos como a Relatividade, a Física Quântica ou mesmo temas do domínio da Complexidade, nos níveis de ensino pré-universitários. Destaca-se, como precursor o professor e físico húngaro George Marx, e o trabalho apresentado nos Danube Seminars em 1975 (Ogborn, 2003). No topo desta argumentação está o facto de que o desenvolvimento do conhecimento humano ao longo do século XX, nomeadamente o conhecimento científico da Física relativista, quântica, e da complexidade encontra um impacto determinante na comunidade científica e na vida dos cidadãos. Este conhecimento é hoje amplamente aceite e reconhecido pelas comunidades científicas que comunicam e se entendem à luz de um novo paradigma que não é o da ciência moderna do século XIX. Pode-se dizer que um entendimento, mesmo não muito aprofundado, das transformações da matéria e do universo, bem como das relações entre a ciência, a tecnologia e a sociedade, pressupõe um entendimento da Física do século XX, ou seja, da Física Moderna e Contemporânea31.

A questão que se coloca é: como tem estado desaparecida dos programas curriculares, de um modo geral, a Física que começou a desenhar-se a partir do final do século XIX, amadureceu ao longo do século XX, que mudou as concepções do mundo e a vida das pessoas, e está na base de grande parte da tecnociência? Ou ainda: que apropriação fez a escola do desenvolvimento do pensamento, no sentido de desenvolver olhares críticos e atentos aos caminhos do mundo, em grande parte resultantes do conhecimento científico construído no último século?

31 Correndo o risco de se gerar alguma confusão com a designação “ciência moderna” associada ao

mecanicismo, entende-se aqui por “Física Moderna e Contemporânea” a que se desenvolveu a partir dos primeiros anos do século XX.

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As recomendações da comunidade científica e da investigação em educação em ciência32, bem como de recomendações ao mais alto nível33, são variadas. Ostermannn e Moreira (2000) fazem uma revisão bibliográfica sobre Física Moderna e Contemporânea no Ensino Secundário34, onde é possível constatar que grande parte da literatura científica recai sobre as razões de tal inclusão. Para além da vasta publicação brasileira, destacam-se os periódicos Physics Education, International Journal of

Science Education e, com uma ênfase mais histórico-filosófica, a revista Science and Education. Também as conferências do Groupe International de Recherche sur l’Enseignement de la Physique (GIREP) tem dado especial relevo ao tema, destacando-

se as conferências de 2002 (Physics in new fields and modern applications

- opportunities for physics education) e 2008 (Frontiers of Physics) (GIREP, 2008).

O Quadro 8 procura sistematizar as razões justificativas para a inclusão da Físca Moderna no Ensino Secundário, que agrupamos em cinco dimensões, conjunto que abarca os principais aspectos referidos na literatura: (1) as de ordem motivacional, que contribuem para fazer aumentar o interesse dos alunos pela Física e pelo conhecimento; (2) as de ordem estética e/ou emotiva, que contribuem para o apreço pelo conhecimento e para uma aproximação a este; (3) as que contribuem para um melhor entendimento da natureza da ciência; (4) as que estabelecem ligações com o mundo de hoje em múltiplas dimensões como a cultural, social e tecnológica; (5) as de ordem cognitiva que apontam contributos da abordagem da ciência moderna na potenciação das capacidades de raciocínio e de imaginação dos alunos; e, por fim, (6) as de cariz mobilizador, na medida em que contribuem para a definição de percursos de vida dos alunos, como a escolha de carreiras ligadas à ciência.

Na perspectiva de desenvolvimento deste trabalho, realçamos a ideia de que, contrariamente a concepções de muitos professores e alunos, que conhecemos por experiência própria, a ciência contemporânea, e a ciência em geral, não pertence apenas à dimensão pratico-tecnológica do conhecimento. Ela faz parte da cultura como a poesia, a música, a literatura, a filosofia e que, tal como estas dimensões, é enriquecedora para os indivíduos. Como escreve Angelo Mastroianni, «o espírito

também se enriquece com o raciocínio, o cálculo, a previsão, o indeterminismo»

(Mastroianni, 2009, p. 27). Igualmente, a reflexão em torno da ciência contemporânea deve concorrer com outros tipos de argumentação, na tomada de consciências individuais e colectivas. Estas duas ideias encerram, quanto a nós, uma grande parte das razões justificativas para a inclusão da Física Moderna e Contemporânea no Ensino Secundário e, eventualmente, em níveis mais precoces.

32 Assume aqui um papel importante e decisivo a Conference on Teaching Modern Physics realizada no

Fermilab (Illinois) em 1986, realizada com o objectivo específico de incrementar o ensino e divulgação da Física Moderna nas escolas secundárias e disciplinas de Física geral em cursos universitários. Nesta conferência, cerca de 100 professores interagiram com 15 Físicos com o objactivo de promover o ensino de tópicos de Física Moderna no Ensino pré-universitário e nas disciplinas introdutórias na Universidade (Aubrecht, 1986) citado em Ostermann e Moreira (2000).

33 Refira-se, como exemplo, o Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação

para o Século XXI, coordenado por Jacques Delors (1998).

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Dimensão Razões justificativas Referências

Motivacional

Estímulo à curiosidade Barrojas (1998)

(a)

; Aubrecht (1989) Beleza do conhecimento Torre (1998) (a) Entusiasmante para o professor por

proporcionar a utilização da novidade Barrojas (1998)

(a)

Os temas interessam aos alunos Swinbank (1992)

Estética / Emotiva Liga o aluno à sua própria história e à

história da humanidade Torre (1998)

(a)

Natureza da Ciência

Reconhecimento da Física como um

empreendimento humano Barrojas (1998)

(a)

Integra a cultura humana Torre (1998) (a) Contribui para uma melhor imagem da

ciência e do trabalho científico, superando a visão linear, meramente cumulativa

Gil-Pérez e Solbes (1993); Wilson (1992)

Contemporaneidade

Proporciona melhor entendimento do mundo criado pelo homem, nomeadamente no domínio tecnológico.

Terrazzan (1992, 1994) (a); Torre (1998) (a)

Paulo (1997) (a);

Valadares e Moreira (1997) (a) Permite compreender e tomar posição em

debates contemporâneos

Eijkelhof, Kortland, e Loo, (1984)

Sintonia com os meios de divulgação

científica Wilson (1992)

Contribui para a cultura científica Carvalho et al. (1999) (a)

Cognitiva

Contacto com a pesquisa científica actual Barrojas (1998) (a)

Desenvolvimento de atitude crítica face a

mitos e práticas obscurantistas Torre (1998)

(a)

Aumenta a capacidade cognitiva Paulo (1997) (a)

Mobilizadora Atracção de jovens para carreiras científicas

Barrojas (1998) (a); Stannard (1990);

Kalmus (1992) (a); Wilson (1992) (a)

Citado em Ostermann e Moreira (2000)

Quadro 8: Razões justificativas para a inclusão da Física Moderna e Contemporânea no Ensino Secundário

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A nível internacional podem apresentar-se alguns exemplos de currículos que, de uma forma consistente, têm vindo a incluir a FMC em níveis correspondentes ao Ensino Secundário. Um marco histórico e decisivo foi o Harvard Project Physics que esteve implementado nas décadas de 70 e 80 (Holton, 2003). Este projecto deu origem a um conjunto de textos, o Project Physics (Holton e Rutherford, 1980), com grande projecção internacional, incluindo em Portugal. Tratava-se de uma abordagem inovadora da Física neste nível de ensino que, para além de avançar até à Física Nuclear, incluía algo sobre a natureza da ciência como os seus métodos e a sua relevância (Holton, 2003). No Reino Unido, a FMC está presente no final do Ensino Secundário com temas como o efeito fotoeléctrico ou o comportamento ondulatório e corpuscular da matéria. Uma ideia mais inovadora foi, porém, desenvolvida neste contexto, por Ogborn e Whitehouse (Ogborn, 2006; Ogborn & Whitehouse, 2000), a partir da ideia dos muitos mundos de Feynman. Também no Reino Unido, numa altura em que o ensino das ciências está a ser repensado, o projecto Twenty First Century

Science (Nuffield Curriculum Center, 2002; Millar, 2007) com ênfase na FMC e nas

questões da Natureza da Ciência, se reveste de grande importância. Em Portugal saliente-se o papel de grupos de investigação ligados a Helena Caldeira, que têm estudado a questão para Portugal, no que concerne a razões e possibilidades (Lobato, Caldeira & Greca, 2005; Caldeira, 1991).