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O ENSINO DE ARTE QUE QUEREMOS: construção, e não conclusão

Maura Penna, Yara Rosas Peregrino Fábio do Nascimento Fonsêca,

Lívia Marques Cavalho

A luta das camadas populares pelo acesso aos bens materi- ais e simbólicos é histórica. Neste percurso, a população brasileira alcançou o direito, na letra da lei, ao ensino fundamental público e gratuito. É um ganho, embora ainda não tenha se realizado plena- mente; mas de fato, nas últimas décadas do século XX, em nosso país, mudou notavelmente o alcance da educação formal. Muitos grupos antes totalmente excluídos sentaram-se nos bancos escola- res, embora os mecanismos estruturais de seletividade e exclusão inviabilizem a sua permanência na escola com qualidade de apro- veitamento, como mostra a persistência de elevados índices de repetência e evasão.

Por tais razões, a questão educacional no país continua no centro do debate político. De um lado, a exclusão de um grande contingente de brasileiros do acesso aos direitos sociais elementa- res e da participação nos processos sociais, políticos e econômicos aponta para a necessidade da educação fundamental como um dos

instrumentos capazes de responder às exigências da cidadania, entendida aqui como o atendimento às necessidades básicas de toda a população (cf. Minto e Muranaka, 1995, p. 58). De outro lado, o processo de reestruturação produtiva em andamento, a globalização da economia e as demandas por mais qualidade e competitividade industrial indicam que “não se concebe mais uma alternativa de desenvolvimento econômico e social para o país sem se discutir alternativas para a educação” (Oliveira, 1995, p. 9).

Neste sentido, o alcance de uma oferta educacional com qualidade para todos coloca-se como exigência central para a de- finição das políticas educacionais, implicando o enfrentamento dos problemas estruturais que afetam a escola pública no país. Neste contexto, a discussão de propostas curriculares, ainda que necessária, não é condição suficiente para operar as mudanças indispensáveis para atingir a efetiva qualidade da educação públi- ca. É com esta compreensão que se buscou analisar, nesta coletâ- nea, as propostas para o ensino de arte contidas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN).

Como produção cultural, a arte – em sua diversidade de manifestações, incluindo as eruditas – é um patrimônio da huma- nidade, que todos deveriam ter condições de usufruir. Em nossa sociedade de classes, contudo, tornou-se “capital cultural” (nos termos de Bourdieu e Darbel, 1985), servindo às disputas de poder em diversos campos sociais. Neste quadro, o ensino de arte tem um importante papel a cumprir: é “o espaço por excelência para a realização de um projeto de democratização no acesso à arte e à cultura” (Penna, 1995c, p. 22). A arte na escola é especialmente necessária àqueles grupos sociais que, em seu cotidiano, estão mais distanciados das formas de arte socialmente valorizadas – por serem historicamente elitizadas –, que poderiam não apenas enriquecer a vida de cada um, mas também constituir um capital cultural que lhes permitiria uma participação mais ampla e ativa na sociedade.

Assim sendo, o ensino de arte precisa se comprometer com o projeto de ampliar o alcance e a qualidade da experiência artís- tica do aluno, como propõe Lanier (1997, p. 46). Para tanto, é ne- cessário reconhecer como significativa a diversidade de manifes- tações artísticas, “adotando” a vivência do aluno como o ponto de partida para um trabalho pedagógico que possa, realmente, resul- tar em mudanças no seu modo de se relacionar com a arte em seu cotidiano. É este o desafio de qualquer processo educacional que se pretenda realmente efetivo: partir da prática social para promo- ver uma mudança qualitativa desta mesma prática social, como coloca Saviani (1984). O ensino de arte, portanto, deve visar uma mudança na experiência de vida, e não apenas permitir ao profes- sor, como muitos reivindicam, ter a sua matéria escolar respeitada, podendo aplicar provas para dar notas, sendo uma preocupação para o aluno, mas sem que nada signifique para a sua vida. Essa seria a tentação de uma prática escolar “protetora”, mas incapaz de ultrapassar, em seus resultados, os muros da escola.

Os PCN-Arte trazem indicações que podem contribuir para a construção do ensino de arte que queremos. Em muitos pontos, expressam uma concepção ampla de arte, que integra as produ- ções populares, eruditas e da indústria cultural. Suas propostas procuram resgatar os conteúdos específicos da arte e, mais preci- samente, os conteúdos de cada linguagem artística. Apesar dos limites de seu processo de elaboração, discutidos no primeiro arti- go desta coletânea, os Parâmetros para Arte não são alienígenas: eles refletem o próprio percurso da área e, nesta medida, eles a- pontam para a frente, para uma renovação, ajudando a consolidar uma nova postura pedagógica e a concepção da arte como uma área de conhecimento específico.

Pairam dúvidas, contudo, sobre a possibilidade - ou não - de os PCN-Arte trazerem mudanças efetivas para a prática peda- gógica na área. Em certos contextos, o uso dos PCN pode ser, por enquanto, mais uma intenção do que uma realidade do trabalho escolar, como constatamos através de pesquisa de campo, realiza-

da em 1999 e 2000, nas escolas públicas (estaduais e municipais) da Grande João Pessoa, com turmas de 5a a 8a séries (Penna, 2000a e 2001). Neste universo, 82,8% dos professores de Arte eram graduados em Educação Artística, e mais 3,2% estavam cur- sando esta licenciatura, sendo portanto expressivo o índice de formação na área. Na coleta de dados através de questionários, em uma pergunta em que eram apresentadas alternativas, 59,7% dos professores citaram os PCN-Arte como um dos fatores considera- dos no planejamento de aulas. Ou seja: era colocada para o pro- fessor a questão “você planeja suas aulas com base em quê?”, sendo dadas diversas alternativas, como: com base nas orientações da direção; nos PCN-Arte; no interesse dos alunos, etc.

Logo de início, encontramos certa inconsistência em al- gumas respostas, pois, dentre os professores que declararam pla- nejar com base nos PCN, 15,3% não haviam lido o documento, conforme a sua própria resposta a outra pergunta. Ora, é meio difícil planejar aulas com base em Parâmetros que não foram li- dos. Mas mesmo no caso dos professores que declararam ter lido os PCN-Arte para as 5a a 8a séries e declararam utilizá-los como base para o planejamento de aula, estas menções aos PCN pare- cem refletir mais uma intenção do que uma realidade. Isto porque os PCN-Arte não foram retomados por nenhum professor nas respostas espontâneas à pergunta sobre por que trabalhava com determinada linguagem – ou linguagens artísticas – em sala de aula. Claro que a escolha da linguagem artística a ser trabalhada é uma questão básica do planejamento, mas nesta pergunta deixa- mos o porquê em aberto, de modo que o professor apresentasse por si mesmo as razões de sua escolha. Neste momento, o único fator anteriormente apresentado, como alternativa na pergunta a respeito do planejamento de aulas, que foi retomado espontanea- mente pelos professores foi o “interesse dos alunos”. Isto eviden- cia, portanto, que os PCN-Arte não eram, ainda, uma referência efetivamente incorporada na prática pedagógica do professor, e as menções aos PCN eram mais uma intenção do que uma realidade:

faziam parte de seu discurso, mas não de sua prática. Embora este dado seja fruto de uma pesquisa localizada, com escolas públicas de João Pessoa/Paraíba, em 1999 e 2000, acreditamos que isto possa estar acontecendo também em outros espaços, sendo portan- to provável a existência de um descompasso entre a realidade das escolas e a renovação pretendida pelos PCN-Arte.

Na verdade, mesmo com a proposta curricular dos PCN, várias questões fundamentais para o ensino de arte permanecem não respondidas, e muitos são os fatores que podem comprometer uma aplicação satisfatória da proposta para Arte, como discutido ao longo dos artigos desta coletânea. A não definição da formação do professor que deverá pôr em prática os PCN nos 3o e 4ociclos é uma questão crucial, pois pode permitir a idéia de que um mes- mo professor possa atuar nas várias modalidades artísticas - artes visuais, música, teatro e dança. Pudemos observar como esta é uma interpretação corrente da proposta, nas discussões realizadas durante o VI ENEARTE/Encontro Nacional dos Estudantes de Arte (São Luís/MA, janeiro de 2001). Como bem expressou a Profa. Alice Fátima Martins, em mesa redonda sobre o tema reali- zada neste evento, é apenas “uma questão de bom senso” a pres- suposição da formação específica do professor, pois de fato não há indicações a respeito. A relação custo/benefício, que muitas vezes norteia a contratação de professores, pode admitir a pretensão de um único professor realizando as propostas dos PCN-Arte em todas as linguagens artísticas. No entanto, isto não apenas contra- diz a amplitude e profundidade das propostas específicas, como também atualiza a polivalência - já tantas vezes criticada em rela- ção à prática da Educação Artística -, o que conduziria, inevita- velmente, a um esvaziamento de conteúdos. Se os PCN-Arte fo- rem implementados desta forma, estarão sendo reduzidos a meros atos de discurso, mascarando, na verdade, a ausência de renova- ção das ações pedagógicas em Arte.

Por outro lado, a flexibilidade presente na proposta dos PCN-Arte - que permite que cada escola escolha as modalidades

artísticas a serem trabalhadas, que não propõe uma sequenciação de conteúdos, indicando que podem ser abordados em qualquer ordem, a critério do professor1 - pode levar a conseqüências práti-

cas que não foram pretendidas. Ou seja, tal orientação pode gerar a visão de que qualquer coisa (dentre as propostas) pode ser feita e, então, o que se fizer em Arte está bom, qualquer coisa serve... E isto poderia vir a aparentemente confirmar que a arte não tem uma função clara a cumprir na escola!

Desta forma, parece que certos impasses ainda não pude- ram ser enfrentados com clareza pelos PCN-Arte, até porque eles não podem, sozinhos, responder por processos históricos que afe- tam o papel da arte na escola, ou por decisões mais amplas de política educacional. Nesta medida, estão traçados os seus limites. É sem dúvida importante que os termos normativos para a prática pedagógica sejam coerentes e bem orientados, e, em grande parte, os Parâmetros para Arte respondem adequadamente a essas exi- gências, de acordo com o desenvolvimento da própria área. Con- tudo, as normas contam sobretudo pelos seus efeitos, de modo que os PCN dependem de sua concretização - ou seja, a sua realização na prática escolar. Interessa prioritariamente, portanto, como esses Parâmetros serão utilizados.

A forma como serão aplicados os PCN, aliás, parece tam- bém estar suscitando preocupação na própria Secretaria de Educa- ção Fundamental do MEC. Conscientes de que alguns fatores po- deriam comprometer uma aplicação satisfatória da proposta dos PCN, essa Secretaria elaborou o projeto Parâmetros em Ação, a ser desenvolvido em parceria com as secretarias de educação esta- duais e municipais, além de escolas de formação de professores em nível médio e superior. De acordo com o texto “Aos Professo- res e Professoras”, assinado pelo Ministro da Educação, que abre todos os volumes dos Parâmetros em Ação, este programa é “or-

1A respeito da flexibilidade da proposta, ver a análise apresentada no artigo “A orienta-

ganizado em módulos de estudo compostos por atividades dife- renciadas”2e “tem como propósito apoiar e incentivar o desenvol-

vimento profissional de professores e especialistas em educação,

de forma articulada com a implementação dos PCN” (MEC,

1999b e 1999c – grifos nossos). Esta propalada articulação já não se concretiza a partir dos conteúdos dos módulos para Arte: nas séries iniciais, limitam-se às Artes Visuais (cf. MEC, 1999b, p. 92-99 – módulo 6) e o volume para o 3º e 4º ciclos contempla apenas as modalidades Artes Visuais e Música (cf. MEC, 1999c, p. 48-145 – módulos 3 a 9). É clara, portanto, a omissão em rela- ção aos conteúdos específicos de Dança e Teatro. Já que, segundo os PCN-Arte, a escolha das modalidades artísticas a serem traba- lhadas é uma decisão de cada escola, nada explica a não inclusão de orientações para as quatro modalidades propostas para a área.

Evidentemente que a proposição do MEC em investir na formação continuada dos professores é bastante coerente, sobretu- do no momento em que esses professores têm a responsabilidade de implementar uma proposta nova. A formação continuada, no entanto, não pode ser reduzida a mero treinamento, e neste sentido questionamos o caráter mecânico e direcionista da proposta apre- sentada pelos Parâmetros em Ação (MEC, 1999b e 1999c), onde o professor é visto como um mero executor de decisões que vêm de cima, sem qualquer autonomia.

Diante deste quadro, esperamos que os PCN-Arte não se tornem uma camisa de força para o trabalho do professor, mas antes sejam um instrumento para a construção do ensino de arte que queremos. Pois este ensino que queremos precisa ser cons-

truído, e esta é uma tarefa ampla e árdua, que passa por atos de

política educacional, por investimentos em recursos materiais e

2Os módulos foram publicados em volumes destinados aos diversos níveis de ensino.

Dentre eles, analisamos o volume para as séries iniciais - 1º e 2º ciclos (MEC, 1999b) - e para os 3º e 4º ciclos (MEC, 1999c) do ensino fundamental. Este material, no entanto, tem uma circulação limitada, pois o MEC só os distribui para as entidades envolvidas na realização do projeto.

humanos, pela própria formação do professor. Mas esta constru- ção depende, também, da atuação de cada professor em sua sala de aula, e realiza-se através de suas decisões e atos cotidianos, na dinâmica do espaço escolar. Assim, o ensino de arte que queremos reafirma o papel essencial do professor, especialmente por se tra- tar de uma área de conhecimento que precisa necessariamente considerar a diversidade cultural e artística do país, que precisa reconhecer e trabalhar com as manifestações artísticas significati- vas em cada contexto escolar específico. Reafirma, ainda, a auto- nomia e a reflexão como marcas da profissão docente, entenden- do-se autonomia como o direito e a responsabilidade de tomar decisões profissionais, ou seja, a não dependência de “receitas”, “pacotes prontos” e serviços excessivamente diretivos ou mesmo autoritários de supervisão pedagógica (cf. Giovanni, 2000, p. 50).

Cabe, então, retomar o que já foi dito no prefácio desta co- letânea: é necessário buscar uma aplicação crítica e criativa dos Parâmetros, e para tal temos, antes de mais nada, de conhecê-los, analisá-los e colocá-los em discussão, do modo mais amplo possí- vel. Somente assim poderemos nos apropriar dos PCN-Arte como um instrumento para a construção do ensino de arte que queremos.