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Ensino do Português e educação de Surdos

Rafaela Cota da Silva

TWO LANGUAGES AND TWO INTERLANGUAGES? PORTUGUESE INTERFERENCE IN PORTUGUESE SIGN LANGUAGE

3. INTERFERÊNCIA LINGUÍSTICA: PORTUGUÊS – LÍNGUA DE SINAIS PORTUGUESA

3.1. Ensino do Português e educação de Surdos

Desde que o ensino de surdos foi estruturado a partir do Dec. Lei 3/2008, Portugal conta com uma rede de Escolas de Referência para o Ensino Bilingue de Alunos Surdos (EREBAS). Assim, e como também está plasmado no Dec. Lei 54/2018, a língua de acesso ao currículo é a LSP e o português é aprendido como língua segunda. Esta metodologia tem permitido que o contacto com o português seja norteado pelo ensino explícito:

As escolas de referência para a educação e ensino bilingue constituem uma resposta educativa especializada com o objetivo de implementar o modelo de educação bilingue, enquanto garante do acesso ao currículo nacional comum, assegurando, nomeadamente:

a) O desenvolvimento da língua gestual portuguesa (LGP) como primeira língua (L1);

b) O desenvolvimento da língua portuguesa escrita como segunda língua (L2) (Dec. Lei 54/2018).

Para além deste normativo legal, existe também o Programa de Português L2 para alunos surdos (2011) que ressalta a importância do português escrito no ensino bilingue:

A língua portuguesa, no seu modo escrito, assume o lugar de língua escrita e torna-se, hoje mais do que nunca, o meio de comunicação por excelência entre os surdos e a maioria ouvinte. Além disso, no mundo actual, a assumpção das tecnologias de informação e de comunicação veio trazer à escrita novos contextos de utilização quotidiana (...) Também a este nível a aquisição da língua portuguesa, na sua vertente escrita, abre caminho à plena integração dos surdos, ao permitir‐lhes interagir em

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situação de plena igualdade quer com outros surdos, quer com ouvintes. O bilinguismo torna-se, assim, a essência comunicativa para os surdos, pois permite a comunicação imediata, in praesentia, através da LGP, e a diferida, in absentia, através do português, propiciando o acesso aos valores, às crenças, ao conhecimento, enfim, à cultura do mundo em que se insere (Baptista (coord.), 2011, p. 16).

Ainda que as afirmações acima possam ser questionáveis uma vez que, como o Programa também defende em outros momentos, o acesso pleno à comunicação apenas é efetivo através da língua primeira dos surdos, uma língua visual, sendo a escrita, com esse fim, uma ferramenta redutora, não podemos negar a importância e autonomia conferidas à pessoa surda através do domínio da escrita. Este relevo educacional e social contribui para que o sistema educativo, onde se incluem como peça chave, os encarregados de educação, valorize e enfatize a necessidade de uma sólida aprendizagem do português. Convém relembrar que a maioria das crianças e jovens surdos são filhos de pais ouvintes e que estes, por sua vez, raramente dominam a LSP. Como afirma Sousa (2010, p. 37):

A maioria dos surdos, cerca de 90% a 95%, nasce em famílias ouvintes (...). Daqui se pode concluir que, apesar da língua gestual ser a língua natural das pessoas Surdas, muitas delas têm acesso à sua língua tardiamente, adquirindo-a como segunda língua.

Desta forma, o português parece adquirir também contornos de “língua emocional” uma vez que, numa primeira leitura, seria este idioma que potenciaria laços familiares. Todavia, esta é, a nosso ver, uma perspetiva simplista e centrada na maioria ouvinte que, de forma mais ou menos consciente, tenta aculturar a minoria.

A noção de identidade e cultura surdas, consolidadas na obra basilar de Paddy Ladd (2003), torna patente que a comunidade surda é uma minoria linguístico-cultural cuja língua visual se deve enaltecer e afirmar como marca identitária. A valorização da língua como pertença a um grupo entende-se no conceito de Deafhood, proposto por Ladd (2003), como posição e afirmação do Surdo e não da surdez, sobretudo através da língua, encarada num poema final do autor como marca genética: “we’ve got the language in our bloodstream” (Ladd [1988], 2003, p. 462).

Convém acrescentar que a minoria surda sofreu repressão e privação linguística ao longo de séculos. A história de educação de surdos, sempre aliada à necessidade de instruir a comunidade na leitura e na escrita da língua maioritária, teve um período obscuro denominado oralismo que resultou de um conjunto de decisões aprovadas no Congresso de Milão em 1880, evento organizado apenas por ouvintes, em que se chegou a oito resoluções sobre a educação de surdos. Uma delas foi a proibição de qualquer língua visual e a imposição da fala, nomeadamente “que estas crianças sejam separadas daquelas que estejam muito avançadas [na instrução da fala], para começarem a receber uma educação exclusivamente oral e terminar a educação efetuada por gestos” (Carvalho, 2007, p. 68).

Estas políticas educativas mantiveram-se até aos anos 90 do século XX em que, progressivamente, se caminhou para o modelo bilingue e bicultural que desembocou no Decreto- Lei 54/2018 que citámos no início desta secção. Este modelo pretende fomentar a identidade positiva no aluno que reconheça e divulgue a cultura da sua comunidade:

No espírito do Decreto- Lei e da Lei está o reconhecimento da interconexão inseparável língua- cultura (...) e está também o reconhecimento da LGP como uma língua com o mesmo estatuto da LP; a LGP é uma verdadeira língua e não um meio de superar incapacidades (...) o professor de Língua Gestual, para além de dar aulas a turmas de alunos Surdos deve (...) disseminar os valores e a cultura Surda (Coelho & Correia, 2019, pp. 54-55).

Pelo breve sumário que fizemos, entende-se que a educação de surdos e as políticas que a norteiam são um fator importante para podermos discutir eventuais interferências linguísticas. No passado, as línguas visuais saíram do palco da escola e foram inclusive reprimidas e proibidas. A comunidade surda amordaçada, para usar uma expressão de Harlan Lane (1997) usava a sua língua natural apenas na clandestinidade. Formavam-se códigos linguísticos exclusivos de comunidades escolares, em Portugal centradas nas principais cidades, Porto, Coimbra e Lisboa, que saíam do circuito em Associações de Surdos e casamentos na comunidade. Os sinais eram diversos e com um grau relativo de fixação, próprio de um idioma não registado e apenas de herança geracional. Com o fim da repressão oralista, as línguas de sinais de todo o mundo ganharam lugar nas políticas governamentais e passaram não apenas a ser livres, como objeto de estudo e ensino explícito. Por sua vez, a importância do português não foi descurada, tentando-se o ensino de um idioma oro- auditivo na sua vertente escrita, impreterivelmente, e na sua vertente oral, sempre que a criança/jovem o deseje e tenha o acompanhamento necessário para uma educação respeitosa da oralidade.

A estas políticas educativas que primam pela igualdade linguística, há um outro caminho que pretende juntar dois mundos, o visual e o auditivo. Referimo-nos, não aos tradicionais aparelhos retroauriculares, mas ao implante coclear, fenómeno em crescimento no nosso país. Não é propósito deste texto abordar uma perspetiva reabilitacional da surdez, visto que nos centramos na língua, logo, encaramos as pessoas surdas como minoria linguístico-cultural e não como portadores de deficiência. Porém, retomando Martinet (1995) as línguas são dinâmicas pois são usadas por utilizadores. No caso em apreço, o implante coclear pretende que o Surdo consiga ouvir ou ouvir melhor. Esta intenção, que a pessoa pode lograr ou não, pode ser um fator que espolete uma maior interferência da língua maioritária na língua natural. Tal deve-se, cremos, não apenas ao facto de um implante requerer uma cirurgia numa parte do cérebro, mas, e sobretudo, por necessitar de um acompanhamento pós-cirúrgico longo que implica exposição formal e orientada

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à língua oral. Desta forma, o indivíduo surdo, ser bilingue e bi-cultural, tem vários matizes no que concerne ao seu domínio e utilização do português e da LSP.