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3. PESQUISAS SOBRE ENSINAR A PROJETAR

3.1. ENTENDIMENTOS

Esse item abrange três noções importantes para a tese: (i) projeto, desenho ou ideia projetual, (ii) ambiente, e (iii) ver/perceber a cidade.

Para tanto é essencial ressaltar que essa investigação está centrada em: (i) alunos de arquitetura observados em período muito inicial de suas inserções acadêmicas; e (ii) nos desenhos elaborados por estes estudantes, os quais ainda não exibem a linguagem própria da representação arquitetônica, no que se refere a normas, códigos e caracteres, a ponto de podermos qualificar tais ‘desenhos’ como ‘projetos’50. Diante da dificuldade em compreender

tais ‘desenhos’ como uma espécie de ‘projeto’, recorre-se à etimologia da palavra ‘desenho’ e das especificidades da mesma em língua portuguesa para aferirmos sua conformação etimológica e rebatimentos. Diferentemente de outros idiomas, em português a definição da palavra ‘desenho’ está alicerçada em dois polos: “a arte e a técnica de representar (...) um tema real ou imaginário” (Dicionário Brasileiro Aurélio – FERREIRA, 2004); “arte de desenhar” e “planta, plano” (no equivalente português, Dicionário Priberam da Língua Portuguesa). Essa natureza híbrida conserva “(...) um sentido mais amplo ligado ao conceito originário que se referia não só a um procedimento, um ato de produção de uma marca, de um signo (de-signo), como também, e principalmente, ao pensamento, ao desígnio que essa marca projetava” (MARTINS, 2007, p. 1). Tal fato não ocorre no inglês, por exemplo, em que “(...) a existência de outras expressões como drawing com outra raiz etimológica ‘especializou’ o sentido de cada um dos dois termos (drawing e design) não apenas pela sua existência arraigada nos hábitos e usos presentes no quotidiano da língua (...)” (idem, p. 2).

Deste modo, no contexto da língua portuguesa o significado que imprimimos aos ‘desenhos’ dos alunos corresponde ao ‘desígnio’, “intenção, projeto, plano, propósito,

vontade” (Priberam), abarcando, assim, perspectivas que aproximam ‘desenho’ e ‘projeto’. Assim, referimo-nos aos desenhos dos estudantes como ‘ideias projetuais’ pelo fato de, mesmo desprovidas do arsenal técnico intrínseco às representações arquitetônicas, apresentarem tais ‘desígnios’.

Soma-se a isto, o fato de, temporalmente, o desenho ter “(...) pouca ou quase nenhuma participação na produção de edifícios em muitos períodos da história” (BARKI, 2003, p. 97), sendo o seu uso em arquitetura, relativamente recente e advindo das formulações da Renascença italiana51, quando foram desenvolvidas estratégias de elaboração das imagens do edifício antes de sua construção, fatos que reforçam nossos objetivos em torno de não reduzir a importância das materializações imagéticas desvinculadas das normas de representação projetiva.

Nosso enfoque, portanto, distancia-se de entendimentos que delimitam o ‘projeto’ alicerçado à divisão social do trabalho, enquanto reflexo da “(...) gradativa distinção entre o ‘pensar’ e o ‘fazer’, entre o ‘conceber’, o ‘produzir’ e o ‘usar’ o espaço” (ELALI, PINHEIRO, 2003, p. 132)52, e aproxima-se do ponto de vista de Joaquim Vieira que, no texto ‘O desenho e

o projeto são o mesmo?’, ao argumentar sobre pontos que separam e unem tais práticas, aponta para o momento em que acredita haver a ruptura entre ambas:

(...) pode ser considerado do desenho a revelação de uma imagem que nos ocorre. Essa imagem pode ter uma origem numa intensa experiência sobre a realidade e pode ser o resultado de um sonho ou de uma projeção de imagens mentais. A nossa vontade satisfaz-se na corporização bidimensional e codificada de uma referência dessa experiência interior. Tudo se resume a isso. Não está presente o desejo de transformar o resultado desse processo noutra realidade. Quando isso acontece considero que acaba o desenho e começará o projeto (VIEIRA, 1995, p. 48).

Outra noção a esclarecer é a de ambiente. Em termos gerais, nosso entendimento sobre esse termo corrobora a definição ampliada da Psicologia Ambiental, segundo a qual trata-se

51 Segundo Pinto (2007b), desde então, o projeto passou a reunir “(...) o processo heurístico (conceptuais e

expressivos), as metodologias, os conhecimentos dos sistemas e as tecnologias construtivas, sintetizando-se no modo gráfico codificado que permite determinar, antever, simular e avaliar os modos de construir e habitar” (p. 18). Foi quando se separou “(...) o ‘aqui-e-agora’ de acontecimentos passados e daquilo que podia ser imaginado, simulado, ou até mesmo desejado. Logrou formular ideias e propósitos que poderiam ser compartilhados. Logrou enxergar alternativas de futuro” (BARKI, 2003, p. 25).

52 Os autores exemplificam tais entendimentos com citações oriundas de períodos diversos, dentre as quais

destacamos a de Corona & Lemos, 1972 (apud ELALI, PINHEIRO, 2003, p. 132): “(...) atividade de criar propostas que transformam especificações em um objeto concreto”. Jones (1978 [1970]), acerca de compreensões de outros autores sobre o projeto, afirmou que muitas vezes elas objetivam isolar a essência do projeto e reduzi-lo a um método standard válido para todas as situações (p. 3). Nesse sentido, o entendimento de Archer faz-se representativo: “Uma finalidade – um problema controlado – uma atividade resolvida” (ARCHER, 1965 apud JONES, 1978 [1970], p. 3).

de um “(...) conceito multidimensional, compreendendo o meio concreto físico em que se vive, natural ou construído, o qual é indissociável das condições sociais, econômicas, políticas, culturais e psicológicas daquele contexto específico” (CAMPOS-DE-CARVALHO, CAVALCANTE, NÓBREGA, 2011, p. 28). Assim, o ambiente corresponde à soma de fatores objetivos e subjetivos, de modo que o ser humano é entendido como parte intrínseca do meio.

Em consonância com tal conceito, nos utilizamos também de entendimentos acerca do termo espaço, considerando-o não como um meio homogêneo e único, mas como algo plural. Partimos, portanto, de uma natureza espacial arquitetônica/urbana vista como produto da linguagem e em correspondência à tese de que há tantos espaços quantas forem as suas representações. Nesse sentido, o conceito de Milton Santos para espaço também nos serve de parâmetro para possíveis elaborações. Segundo definição do autor, o espaço é fundamentalmente “(...) algo formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório de sistemas de objetos e sistemas de ações” (SANTOS, 1996, p. 81-99).

Dos entendimentos que distinguem lugar das outras duas entidades aqui abordadas (ambiente e espaço), recorrente em algumas disciplinas elementares para esta pesquisa – como ocorre na Psicologia Ambiental, na Geografia e até mesmo em Arquitetura –, corroboramos Tuan (1983) ao indicar que parte de um espaço sem diferenciação modifica-se para lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor. Assim, para o autor, “quando o espaço nos é inteiramente familiar, torna-se lugar” (idem, p. 83), e “o espaço transforma-se em lugar à medida que adquire definição e significado” (ibidem, p.151). De forma semelhante, Norberg-Schulz afirma que o lugar é mais do que uma localização geográfica, ou seja, mais do que um simples espaço, podendo ser entendido como “(...) a concreta manifestação do habitar humano” (NORBERG-SCHULZ, 1980, p. 6).

De acordo com estes autores, a transformação de espaços em lugares passa, necessariamente, pela experiência, que, por sua vez, tem influência direta na percepção e na cognição ambiental, no nosso caso específico, em meio urbano.

Em se tratando da percepção que se tem sobre o ambiente em que vivemos – nesse caso, eminentemente urbano –, torna-se fundamental nos voltarmos para autores que procuram examinar o tecido da cidade e/ou o conjunto arquitetônico para, em seguida, decompô-los e sintetizá-los em tipos, enquanto estruturas formais.

Apesar do crédito inaugural de tais análises tipológicas ser atribuídas a Severio Muratori – com o seu trabalho Storia Urbana di Venezia (1960), no qual o autor propõe um método de análise de cunho morfológico e que foi a base para o desenvolvimento de inúmeros estudos –, nossa principal referência é Kevin Lynch e os procedimentos metodológicos

enunciados em A Imagem da Cidade (escrito originalmente em 1960), construídos em torno da valorização da relação da pessoa com o ambiente e do real confrontado com o imaginado. Ao estabelecer relações e desenlaces entre a arquitetura e a paisagem urbana, utiliza-se de uma abordagem (que consideramos) essencial para esta tese, segundo a qual a imagem da cidade seria algo que se forma através de um conjunto de sensações experimentadas diante da observação e vivência de determinado ambiente. Para o autor, "(...) o desenvolvimento da imagem é um processo interativo entre observador e coisa observada, [assim sendo] é possível reforçar a imagem tanto através de artifícios simbólicos e do reaprendizado de quem a percebe, como através da reformulação do seu entorno" (LYNCH, 1997 [1960], p.12); valorizando o “(...) modo como as pessoas experienciam os aspectos ambientais presentes em seu entorno (...), não apenas os aspectos físicos, mas também os aspectos sociais, culturais e históricos” (KUHNEN, 2011, p. 250).

Partindo para o entendimento de cognição ambiental como etapa posterior ao exercício da percepção, Aragonés (1998, p.44) indica que “existem diferentes formas de aproximar-se do estudo da cognição ambiental”, tais como: “atividade de conhecer, pela aquisição, organização e uso do conhecimento (...), [ou seja, um] processo de chegar a conhecer, mas não os seus conteúdos” (NEISSER, 1981, p. 23) ou “conhecimento, imagens, informação, impressões e crenças que os indivíduos e grupos têm sobre os aspectos elementares, estruturais, funcionais e simbólicos dos ambientes físicos, reais ou imaginários, sociais, culturais, econômicos e políticos” (MOORE, DOLLEDGE, 1976, p. 3).

Acerca da aproximação da disciplina arquitetônica para com os conceitos cristalizados pela Psicologia Ambiental, em parte aplicados nesta tese, apontamos para a observação de Prak (1977 apud SALAMA, 2008, p. 109), segundo o qual “a principal razão desta disciplina (a Psicologia Ambiental) ter se tornado parte essencial da Arquitetura é simplesmente porque o senso comum do arquiteto não é equivalente ao senso do usuário”. Esse pensamento é reforçado numa formulação do próprio Salama sobre o diálogo e complementaridades entre as duas disciplinas, ao comentar que ”uma classe de principiantes em ‘projeto de arquitetura’ ou de ‘relação pessoa-ambiente’ poderia e deveria envolver exercícios de análise crítica sobre a forma de como as pessoas percebem e compreendem o ambiente construído” (SALAMA, 2008, p.103).

Complementando esse argumento, cabe levantar a crítica de Pallasmaa (2006) sobre as limitações da Arquitetura decorrentes dos excessos do oculocentrismo (superioridade da visão sobre os outros sentidos humanos); paradigma que ainda persiste na cultura ocidental e que restringe a plenitude da percepção gerada através da atividade sinestésica, pois envolve “uma

interpretação absoluta do conhecimento onde verdade e realidade são centradas e geradas a partir do campo da visão” (p. 16).

Por sua vez, ao discutirem memória espacial, Ozak e Gokmen (2009) indicam que ela é criada por meio de três processos: detecção, percepção e codificação53. Para ‘detectar’ o espaço a pessoa utiliza a visão, a audição, o tato, o olfato e o paladar a fim de ter uma ideia dos componentes físicos do espaço e dos fenômenos que ocorrem nele. Na fase de ‘percepção’, ocorrem os alcances individuais e alguns julgamentos, na formação dos quais são aplicados critérios próprios para avaliação dos dados recolhidos no processo anterior, o que reforça as diferenças individuais. Na fase final, o espaço percebido é ‘codificado’ para a memória de longo prazo, através de processos como associação, correspondência, comparação e orientação.

Nesse sentido, apesar de reconhecermos a importância desse processo, nosso estudo prioriza o termo ‘percepção’ pois, corroborando Arnheim (1969), acreditamos que quaisquer separações entre ver/perceber e pensar/raciocinar é irreal e pode conduzir ao engano.