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Entre Historiografia e Genealogia Histórica

“Na História a gente confia já desconfiando” (Fala de guia turístico na Igreja de São Francisco, Salvador, BA)

A pesquisa historiográfica e a pesquisa de Genealogia Histórica são duas vertentes de estudo que, apesar de serem parentes, têm fontes filosóficas e percursos metodológicos diferentes. Neste capítulo, proponho estudar a diferença entre estas formas de se buscar informações no passado e, através do olhar sensível proposto por Merleau-Ponty (1991), debater o uso e as premissas de cada uma das buscas ancestrais em paralelo com a pesquisa vigente. Será também observado com mais detalhe a forma com que os estudos em dança têm direcionado o olhar sobre sua própria memória. O foco não é discutir e aprofundar em temas de história da dança e metodologias aplicadas, mas sim situar estes campos teóricos que investigam o passado para esclarecer a escolha e o aporte teórico do presente estudo pela Genealogia Histórica.

Historiografia, Novo Historicismo e Genealogia Histórica são termos que estão presentes nos trabalhos e pesquisas historiográficas que buscam falar sobre o pretérito e desenhar formas, situações e acontecimentos para que sejam visualizadas no presente. Cada termo possui implicações filosóficas e metodológicas específicas que fundamentam pesquisa sobre o passado. A filosofia tem sido o terreno de apoio de diversos discursos metodológicos que propõem um olhar sobre o tempo passado (arqueológico) como também define as premissas de cada proposta teórica característica.

A partir da década de 1980 a disciplina de Historiografia passou a integrar o que se nomeou de Novo Historicismo (que também é chamado de “Estudos Culturais”)21. Esta mudança se deu pela ampliação do campo de busca de material referencial para a formulação de material histórico. O Novo Historicismo é uma atualização da historiografia e propõe não somente o estudo de um fato/sujeito, mas, principalmente, o estudo do contexto no qual este       

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Windshuttle (1994, p. 16) explica que o novo historicismo e os estudos culturais são as correntes norte- americanas e inglesas, respectivamente, dos estudos contemporâneos em história.

algo está inserido. Já a Genealogia Histórica partiu do olhar de Michel Foucault (1977) que aplica as premissas da Genealogia de Friedrich Nietzsche em estudos históricos, o que tem como resultado prático o surgimento de novas narrativas relatando e explicando acontecimentos e situações que se passaram.

Michel De Certeau (2000) fala da historiografia e como ela secciona as épocas ditas “históricas” a fim de colocar em forma de blocos os acontecimentos anteriores:

Inicialmente a historiografia separa seu presente de um passado. Porém, repete sempre o gesto de dividir. Assim sendo, sua cronologia se compõe de

períodos (por exemplo Idade Média, História Moderna, História

Contemporânea) entre os quais se indica sempre a decisão de ser outro ou de não ser mais o que havia sido até então (o Renascimento, a Revolução). Por sua vez, cada tempo novo deu lugar a um discurso que considera morto aquilo que o precedeu, recebendo um passado já marcado pelas rupturas anteriores, logo, o corte é o postulado da interpretação (que se constrói a parte de um presente) e seu objeto (as divisões organizam as representações a serem reinterpretadas). O trabalho determinado por este corte é voluntarista. (DE CERTEAU, 2000, p. 15)

A Historiografia, portanto, faz uma espécie de seleção entre os fatos que devem ficar registrados e os que devem ser esquecidos, para que estes sejam melhor adequados aos recortes históricos. Assim se configura uma representação específica do passado, que é apresentada através do olhar do pesquisador-historiador sobre um conteúdo específico e que acaba por configurar uma identidade singular ao que é relatado.

Especificamente no campo da dança, as referências de estudos que buscam falar de seu passado trazem diferentes abordagens da busca e interpretação de fatos-informações presentes em documentos arqueológicos e na memória dos sujeitos. Procuro apresentar, discutir e comparar alguns estudos que levantam o tema e a relação entre a pesquisa e o pesquisador. Como nos esclarece Shelley Berg:

A qualquer momento nós tanto vivemos a história quanto vivemos na história... Porque história da dança, no momento da apresentação, é tanto construída como perdida. Estamos continuamente documentando o passado, mesmo quando criando o presente; a dança existe perpetuamente. (BERG, 1999, p.225).

O autor coloca que a disciplina de historiografia exige um empenho triplo, pois requer a pesquisa, a escrita e o ato da interpretação onde um elo formado entre os dois primeiros e o terceiro, dependendo do historiador, procura entender e explicar os eventos do passado.

Posteriormente o autor nomeia esta tríplice (pesquisa, escrita e interpretação) de “projeto historiográfico” onde cada uma das partes remodela e modifica a outra e juntas constituem um universo de apreensão, conhecimento e significância (p.225, 226)

O projeto historiográfico utiliza-se de materiais iconográficos, textuais e outros artefatos, mas, mesmo tendo em vista que o passado está além do alcance, o historiador está sempre interpretando os restos das pistas que ficaram. Na procura de evidências e documentos podem-se revelar dados, datas e ocorrências não esperadas que possam iluminar novas possibilidades e narrativas. Nestes pontos, a historiografia se aproxima da Genealogia, pois estas duas metodologias de pesquisa buscam revelar fatos e acontecimentos através das evidências do passado:

Ao escrever uma narrativa de eventos ou criando uma biografia, o historiador pode, em grande escala, clarear conceitos e estabelecer conexões contextuais que revelam novas áreas para investigação futura ou até descobrir ligações perdidas em documentação já existente. (BERG, 1999, p.226).

Berg fala que a historiografia na dança toca o ato performático22 em diversos pontos: na realização da seleção do recorte temporal e de gênero que semelhantemente acontecem no trabalho para estudo histórico e para a performance; no período de imersão e investigação do tema; na escolha da metodologia ou técnica que se utilizará para compor a narrativa; o momento do ensaios práticos são comparados a construção de elos conectivos entre os fatos encontrados pelo historiador; e, ao se apresentar, o historiador dá forma a uma visão de um recorte temporal, como o dançarino o faz com o movimento. Stephen Bann (1989, p.104) acrescenta sugerindo que objetos, textos e imagens contribuem para a materialização presente do passado. O autor nomeia este processo de “retórica da evocação” (rhetoric of evocation).

Estes estudos que propõem pesquisar o tempo pretérito e que se colocam como mais especializados, fazem parte de uma nova corrente de estudos históricos que foi nomeada de

New historicism que é traduzido para Novo Historicismo23, onde são discutidos estudos

históricos ditos “problemáticos” feitos nos últimos 20 anos. Aram Veeser (1989) discute diversas questões que cercam esta concepção e em seu livro The New Historicism, que agrega artigos que diferentemente relacionam e aplicam estudos históricos contemporâneos.

      

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O ato performático seria a ação de apresentar uma obra cênica e/ou espetáculo, perante o público.

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Este termo é encontrado na tradução de Francisco de Castro Azevedo do texto de Stephan Greenblatt “O Novo Historicismo: ressonância e encaminhamento” publicado em Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, n. 8, 1991, pp. 244-261

Este momento recente (final do século XX) dos estudos historiográficos se aproxima do que foi discutido por Foucault (1977) décadas antes, porém se mantém em uma vertente mais antropológica procurando descrever uma cultura em ação. O Novo Historicismo definiu novas maneiras de se estudar a história e novas percepções de como a história e a cultura definem e influenciam uma a outra. Portanto o Novo Historicismo, mais do que uma proposta metodológica, se configura como um conjunto de temas, preocupações e atitudes. Stephan Greenblatt (1989, p. 1) entende que o “Novo Historicismo não é um conceito (ou doutrina), e sim uma prática”. Uma de suas principais características é sua indecisão relacionada à teoria que o sustenta.

É importante que nós reconheçamos a modificação [entre arte e sociedade] e encontremos uma maneira de medir seu grau, porque é somente em tais medidas que nós podemos esperar detalhar o relacionamento entre arte e sociedade. Tal aviso é importante – metodologia e auto-consciência são características destacantes do Novo Historicismo e nos estudos culturais como oposição ao historicismo que está baseado em cima da crença na transparência dos sinais e procedimentos interpretativos...(GREENBLATT, 1989, P.12)

Mas apesar deste empenho em ampliar a visão e abrangência da pesquisa historiográfica, o estudo que é realizado na presente pesquisa, ainda está mais próximo do que é decupado por Foucault, por ele envolver a desconstrução de uma história já construída, além de questionar a influência do poder sobre ela.

Judith Newton (1988, p. 88) coloca Michel Foucault como uma espécie de “ponta pé” inicial para esta nova corrente de estudos históricos. Ela adiciona o filósofo como um dos desencadeadores primários desta nova corrente de estudos históricos. Newton diz que o trabalho de Foucault, focado nas relações sociais e culturais de poder, demonstram o como uma sociedade vai contra seus membros construindo e definindo o que aparentemente seria considerado como verdades universais. Greenblatt (1989, p.1) adiciona que Foucault (na Universidade de Berkeley, onde o autor compunha o corpus docente), com sua influência antropológica e social européia ajudou a formatar a prática crítica dos estudos norte- americanos em história. Desta forma, o filósofo contribuiu para que esta disciplina não tivesse um caráter de conceito teórico (doutrina), mas sim uma possível prática em história. Keith Windshuttle (1994, p.131) também coloca o filósofo francês e professor de história como quem mais contribuiu para o direcionamento da historiografia contemporânea. Bann (1989, p.103) revela que Foucault foi um teórico que tentou estabelecer as precondições teóricas da

pesquisa histórica e que o homem do século XIX não somente descobriu a história mas sentiu a necessidade de refazer a história de sua própria maneira.

A presente pesquisa além de realizar uma retrospectiva dos indivíduos relacionados à prática e pesquisa das teorias de Laban e procurar evocar o passado utilizando de evidencias de diferentes origens, ela também busca discutir o presente através de um novo olhar sobre passado desvelado. Os sujeitos agentes, participantes e construtores da história são as fontes de fatos e acontecimentos pretéritos relevados. As informações recolhidas (vide Capítulo 3) e entrecruzadas (vide Capítulo 4) constroem um novo olhar e conseqüentemente uma nova possibilidade de históriaque é, portanto, constituída a partir dos relatos dos sujeitos agentes desta história.

A presente pesquisa se aproxima da Genealogia, através destas características objetivas discutidas, que não se ocupam em entender e explicar eventos passados e sim recriar eventos passados a partir de novos estudos focados nos sujeitos atuantes e participantes dos eventos. A partir desta nova possibilidade introduzida, buscou-se realizar associações e pontes com fatos que possam discutir esta nova materialidade plural construída. A filosofia metodológica utilizada é explicada mais adiante ao levantar as principais bases da pesquisa genealógica em história.