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3. Conversas-entrevistas: desenvolvendo um método

3.2. Entrevistas e análise de material

Ao todo foram recolhidos depoimentos de 39 indivíduos. O passo seguinte foi organizar um roteiro que fosse a base para a análise das entrevistas e que também atuasse como forma de organizar o material relatado por cada pessoa. Este instrumento foi criado a partir do olhar meticuloso sobre o questionário inicial. Inicialmente separei as perguntas com base no tipo de respostas que elas geravam, ou seja, dentro de uma mesma entrevista perguntas diferentes levavam a respostas parecidas, logo elas faziam parte de uma mesma classe. As principais categorias de respostas foram a base para aglutinar os grupos de perguntas. Em seguida percebi que as próprias respostas poderiam ser divididas em dois grandes conjuntos: o primeiro, que revelava informações envolvendo as particularidades de cada pessoa; e o segundo, que informava as generalidades e que futuramente conformariam a visão geral do panorama dos estudos labanianos no Brasil.

Neste momento precisei parar para encontrar ‘o que’ e ‘de que forma’ iria construir a narrativa de cada indivíduo. O número de possibilidades era grande e o caminho se tornou nebuloso. Optei por começar a analisar as entrevistas e transcrever os relatos de acordo com os conjuntos de respostas já categorizados. Após ter transcrito um quarto de meu banco de dados descobri um possível caminho para confeccionar um texto único para cada indivíduo e que refletisse seu percurso singular. Parei a decupagem e voltei às transcrições já feitas para iniciar a composição narrada.

Cada relato individual deveria conter, nesta ordem, as seguintes informações: data e local de nascimento; percurso e mestre pessoal; trabalho e pesquisa pessoal envolvendo as teorias de Laban e o que fascina das teorias; opinião sobre o panorama brasileiro de estudos labanianos e se há troca entre os indivíduos; opinião sobre os Encontros que já aconteceram no Brasil; visão sobre perspectivas futuras e importância na diplomação em Laban. Ao reiniciar o trabalho de escuta, análise e escrita das entrevistas, já prossegui finalizando com a composição da narrativa de cada uma das entrevistas registradas31. Prossegui desta forma com o restante das entrevistas.

A linguagem utilizada para compor as narrativas foi uma mescla de minha interpretação e das palavras e orações relatadas por cada indivíduo. A interpretação aconteceu       

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Este foi mais um exemplo da prática criar uma teoria de forma com que o fazer de um retroalimenta o desenvolver do outro, ou seja, uma filosofia labaniana de atuação.

através de meu olhar sensível, como proposto por Merleau-Ponty (ver Capítulo 2) mesclado ao conteúdo das falas de cada indivíduo. A ordem de representação dos fatos obedeceu o roteiro de análise e composição da narrativa. Procurei transmitir alguns termos fielmente como foram ditos durante as conversas para que transparecesse a pluralidade de cada depoimento e história de vida relatada. Portanto, o que é descrito sobre cada indivíduo é uma junção de citações mesclando falas (exatamente como ditas durante as conversas-entrevistas, colocadas entre aspas) e reconstituições de falas de forma com que fosse possível uma organização e padronização da seqüência narrada. Cada indivíduo teve a chance de rever o texto que foi feito sobre si e realizar modificações para que ficasse o mais fiel possível aos fatos reais.

A organização do material recolhido oralmente e por escrito foi ordenado visando uma narrativa que, de certa forma, disponibiliza um relato histórico e uma fonte de memória. Alexandra Carter explica a significância deste trabalho para o feitio da história:

Com o próprio questionamento histórico, a edição do leitor é ambos um ato pessoal e público. Escolhas são feitas a respeito do que e de quem incluir e em que ordem. Estas escolhas aparentemente pessoais estão condicionadas pelos conceitos publicamente aceitos de uma disciplina ou o domínio de um objeto e, neste caso, uma noção reconhecida do que se constitui história. (CARTER, 2004, p.2)

A autora ressalta que todas as narrativas históricas contém um elemento irredutível e quase inevitável que é a interpretação do pesquisador e autor do relato. Por isso, todo texto é em parte pessoal, demonstrando a inclinação do pesquisador.

Ao pensar em como falar, escrever e narrar o percurso de cada indivíduo em particular encontrei na voz de teóricos das Ciências Sociais reflexões coerentes com a que estava sendo compelida a realizar.

Se aqueles os quais estudamos vem a ser co-participantes no desenvolvimento de nossas descobertas, então a maneira com que ‘nós’ estudamos ‘eles’ será diferente do indivíduo que pensa de si mesmo como um clínico tentando desenvolver entendimentos similares ao cientista no laboratório. O desejo em criar mudanças, diminuir opressão ou ajudar no desenvolvimento de um mundo mais justo, lança uma dinâmica de pesquisa diferente daquela do acadêmico descomprometido cujo principal propósito é aumentar o estoque de conhecimento teórico (TIERNEY & LINCOLN, 1997 p. viii)

Sendo uma pesquisadora que de certa forma esta inserida no universo da dança e que cuja pesquisa foi se consolidando ao passo em que foram sendo coletadas as informações dos indivíduos, observo nas palavras de Tierney e Lincoln (1997) uma identificação ideológica e metodológica no desenvolver e praticar a pesquisa aqui apresentada.

Cada depoimento compõe uma peça essencial e única do Universo labaniano brasileiro. Cada indivíduo relatou sua trajetória e sua relação com o legado deixado por Laban ao mundo e trazido para o Brasil em momentos e de formas distintas. Estas narrativas foram organizadas para comporem uma ficção individual e única de cada labaniano presente e atuante no território nacional. De Certeau (2005) defende que a própria história não é diferente da ficção. Desta forma, estaria criando uma ficção individual singular para construir um coletivo plural como proposta da genealogia labaniana brasileira. Esta é uma forma alternativa de se apresentar as entrevistas feitas.

Sylvie Fortin (2008) discute a aplicação das Práticas Qualitativas Criativas, contando que em seu estudo, onde relaciona a saúde de bailarinos à educação somática, o material que foi coletado através de entrevistas foi transformado em narrativas ficcionais poéticas “com a intenção de fazer expressar a dimensão emotiva que tenha sentido nas falas dos jovens dançarinos” (FORTIN, 2008, p.226). Ela explica que, epistemologicamente, tanto os métodos tradicionais de analisar os dados qualitativos, quanto os criativos, oferecem uma contribuição valiosa para o campo da pesquisa em dança. As Práticas Qualitativas Criativas estão ligadas ao paradigma pós-positivista que define a realidade como: qualquer coisa que construímos e não como uma coisa já existente, exterior e esperando ser descoberta. “Existem múltiplas formas através de como o mundo pode ser conhecido: artistas, escritores, dançarinos assim como cientistas. Todos eles têm coisas importantes para se falar sobre o mundo” (EISNER, 1998, p. 7 apud FORTIN, 2008 p.227). Assim também os próprios agentes da história labaniana no Brasil têm a dizer sobre os percursos das teorias e de como elas foram conduzidas pelos espaços.

Fortin defende o tratamento e a transformação de um material qualitativo recolhido de forma sistematizada em um produto poético que possa também trazer a tona o conteúdo imaterial e metafísico intrínseco nas entrevistas. Ela completa que “Aceitar que a realidade é uma construção humana é também aceitar que nós podemos representar esta realidade de diversas formas e de diferentes modos” (FORTIN, 2008, p. 227).

Carolyn Ellis (1997) também defende o uso de narrativas para contar histórias nos tratados de ciências humanas, sociais e artes. Ela chama este processo de escrita de Autoetnografia e explica que “é claro que a pessoa escrevendo ‘autoetnografia’ também precisa estar absorvida no mundo no qual ela habita e nos processos dos quais faz parte e que também trabalham em direção à própria identidade” (ELLIS, 1997, p. 123)

Quando De Certeau (2005, p.227) coloca que “a cultura no singular traduz o singular de um meio” ele se refere à singularidade de um complexo de pessoas como a reprodução de caracteres cifrados de valores e normas próprias desta população que está na maneira com que se respira, nas idéias, na pressão autoritária de uma determinação social.

Desde o início de sua pesquisa, Rudolf Laban procurou constituir uma forma de incluir todas as possibilidades de expressão através do movimento. O mestre não procurava singularizar e reduzir o movimento às reproduções cifradas ditadas pelas normas culturais. Ele buscava formas de expandir as possibilidades de se movimentar, pensar e escrever dança. Por isso, apesar de cada narrativa ser singular individualmente, ao colocá-las juntas para tecer uma história, elas compõem um todo plural.

A confecção de diferentes narrativas que relatam e constroem uma nova possibilidade de situação espaço-temporal em torno do legado de Laban, revela a multiplicidade de caminhos feitos pelas suas teorias e a forma com que foram associadas a diferentes obras artísticas, trabalhos teóricos, atividades educacionais, antropologia, pesquisas na área da saúde e assistenciais. No intervalo de sete décadas, está registrado no corpo e memória de pessoas que atuaram no Brasil divulgando e disseminando, cada uma de forma particular, o universo heterogêneo que o próprio Rudolf Laban construiu.