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Maria Duschenes através do olhar de seus discípulos

Dona Maria foi uma pessoa que sempre esteve muito além do seu tempo... uma visionária, mas uma visionária da ação. Esta mulher pensou, viveu, dançou o tempo todo56

O ensaio que se segue dissertando sobre Maria Duschenes foi confeccionando a partir dos depoimentos recolhidos de seus discípulos e alunos nas entrevistas realizadas durante a pesquisa. Seguindo o pensamento da Genealogia Histórica de Foucault, a preocupação deste texto foi compor uma narrativa a partir dos indivíduos que manufaturaram a história junto com Duschenes e com ela vivenciaram anos de formação e experiência de movimento e vida. Podem estar faltando informações que o leitor acredite ser pertinente, porém, respeitei as colocações feitas pelos indivíduos entrevistados que estiveram junto a ela e receberam seus ensinamentos, dialogando com as citações realizadas pelos próprios agentes da história.

Maria Duschenes nasceu na Hungria em 1922. Estudou em Dartington Hall (com Kurt Joos s e Sigurd Leeder) durante dois anos (no terceiro ano de sua formação a escola foi fechada por causa da Segunda Guerra Mundial). Foi aluna e discípula de Rudolf Laban e Lisa Ullmann na Inglaterra, onde foi certificada pelo Laban Art of Movement Centre.

Duschenes imigrou para o Brasil em 1940, trazendo junto consigo o legado de Laban. Yolanda Amadei lembra que desde o início “ela teve uma situação especial de muita dificuldade para vencer... teve poliomielite”. Pelo fato de ter adoecido, ela ficava bastante reclusa. Através do “boca a boca” foram se formando grupos de alunos interessados em seus ensinamentos. Isto fez com que Duschenes trabalhasse bastante em sua casa, onde montou seu próprio estúdio. Assim, ela formou algumas gerações de artistas, pesquisadores e educadores brasileiros que a procuravam para estudar e encarnar a Arte do Movimento. Discípulos como Lenira Rengel, Cilô Lacava e Solange Arruda permaneceram com ela e acompanhando suas atividades por mais de vinte anos.

Apesar de seus problemas de saúde, Maria Duschenes viajava para o exterior para realizar tratamentos e aproveitava para fazer também cursos e workshops de dança. Segundo       

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seus alunos, estas viagens enriqueciam seu repertório cultural e de dança. Durante dez anos, viajou para a Inglaterra para fazer cursos e se aperfeiçoar no Laban Centre57. Duschenes também chegou a fazer cursos de verão no Conneticut College American Dance Festival e nas escolas de renomados artistas como Kurt Jooss, Martha Granham, José Limon, Merce Cunningham e Doris Humphrey. ‘Dona Maria’ também indicava seus alunos a “verem o mundo lá fora” como disse Cybele Cavalcanti e desta forma incentivava os alunos a também experimentares novos cursos e práticas de dança.

Duschenes chegou a programar um curso para integrar o Bacharelado em Dança que a USP planejava abrir, mas que por fim não se consolidou. Solange Arruda lembra que Duschenes acabou realizando o curso que havia preparado, em seu próprio estúdio. Além disso, Duschenes movimentou projetos educacionais que se extenderam por diversos anos, a exemplo do projeto de aulas de dança nas bibliotecas públicas municiais de São Paulo. Através deste grande projeto, Dona Maria apoiou muitos artistas a “aplicarem a dança junto à educação” como relata Renata Macedo Soares, que reconhece: “até hoje tenho um agradecimento enorme desse encontro, continuamente, a oportunidade que tive desse contato com Dona Maria”.

Os alunos de Duschenes percebiam a riqueza cultural de sua mestra. Cilô Lacava lembra da educação musical que Duschenes preparava para seus alunos. Segundo Lacava toda vez que Duschenes viajava para a Europa para fazer seus trabalhos de corpo, voltava com uma pesquisa sonora que não era comum no Brasil. Ela trazia um material com uma ótica de escuta para o movimento. Esta “já era sua própria ótica sobre Laban que já era uma autoria sobre o olhar labaniano, sem desvirtuar a atitude principal do Laban.”.

Lenira Rengel se recorda que Maria Duschenes oferecia diversos tipos de aulas: “aulas para o que ela chamava de leigos, aulas de formação, aulas de improvisação e aulas para crianças”. Em suas aulas dançava, falava, escrevia: “haviam aulas de três horas e meia e nós sentávamos, analisávamos, líamos, conversávamos e dançávamos e isso é teoria e é prática.”

Diversos discípulos se recordam da relação maternal que tinham com Maria Duschenes. Maria Mommensohn lembra:

Dona Maria foi minha mestra, e mestra de muita gente... uma pessoa assim que deixou uma marca, e uma marca de pessoa... a dança estava misturada com o conceito de vida que ela tinha. Os discípulos de Duschenes se       

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reuniam em sua volta como uma família. Dona Maria era como se fosse a aglutinadora.

Maria Duschenes foi a mestra para inúmeros artistas brasileiros e a referência em Laban durante muitos anos no Brasil. Outros discípulos também se referem a Duschenes como “Mestra”. Para Solange Arruda, ela se ocupava dos alunos orientando e acompanhando “como uma mestra, com todos os valores que uma mestra tem”. Esta relação íntima e maternal, talvez, seja pelo fato de que Duschenes se aproximava do próprio Rudolf Laban por impulsionar as pessoas a se expressarem: “O Laban e Maria Duschenes tinham esta coisa de preparar você para conseguir se expressar e criar”, lembra Cybele Cavalcanti.

Renata Macedo Soares também foi transformada ao entrar em contato com Duschenes: “quando eu entrei na Dona Maria foi como se eu tivesse a oportunidade de me conhecer verdadeiramente, conhecer meu corpo, conhecer os movimentos e quem sou eu. Foi realmente um marco”. Analívia Cordeiro recorda que:

Dona Maria é uma mulher muito sensível, muito construtiva, extremamente positiva... Sempre via algo de bom no que o aluno fazia... Ela foi uma pessoa que se tornou referência e base para a vida de muitos alunos e que depois quiseram perpetuar aquilo...

Cilô Lacava e Cybele Cavalcanti compartilham o mesmo pensamento de que um “labanista legítimo” é aquele que “propõe o seu olhar particular sobre o legado de Laban, sem deixar que a visão do movimento de Laban seja desvirtuada”.

A própria Maria Duschenes formou diversas pessoas em Laban, inclusive possuía um certificado autorizado pelo próprio Laban Art of Movement Centre de Londres para formar artistas. Duschenes é membro do Dance Notation Bureau de Nova Iorque e se colocava como “Representante da Dança Expressiva Moderna ou Arte do Movimento”58. Analívia Cordeiro acrescenta que a formação que Duschenes realizava era bastante heterogênea, ou seja ela “formou pessoas capazes e pessoas não capazes. Ela era muito delicada e gentil e nunca dizia para uma pessoa ‘você não sabe’. ... então todo mundo que estudou com a Dona Maria acha que se formou com a Dona Maria” e justamente por isso é complicado refletir sobre a formação dos labanianos brasileiros, comenta Analívia. Isto significa que não se pode pensar que algumas aulas informais formam um artista.

      

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De fato, é difícil saber com exatidão a abrangência e o número de pessoas que Maria Duschenes formou, lecionou e influenciou. Os arquivos pessoais dela estão junto com sua família e também espalhados entre seus discípulos. Analívia relatou que quando Duschenes começou a sentir os efeitos do mal de Alzheimer, ela reuniu seus alunos e falou que pegassem o que quisessem. Este fato contribuiu para que seu material se espalhasse entre diversas pessoas. O que restou foram “as pessoas que foram influenciadas por ela e que assim deram continuidade ao seu trabalho e às suas propostas” de arte-dança-vida.

Cybele relembra das aulas de Duschenes e relata:

O que teve de diferença no trabalho da Maria Duschenes depois da minha turma (Cybele Cavalcanti, Joana Lopes, Sergio Govito, Maria Esther, Solange Arruda, Viola, Juliana Carneiro Cunha...) foi que ela também começou a dar Laban de uma maneira menos de pesquisa e aprofundamento no método e mais uma coisa assim para se ampliar para esses trabalhos mais de massa... As pessoas que vieram depois nem todas estudaram profundamente Laban com Maria Duschenes.

Cybele e Lenira comentam que os próprios alunos formavam grupos de estudos fora das aulas de Dona Maria para “estudarem e revisarem as aulas”. Cybele revela que, pela dificuldade verbal de Duschenes, a forma que encontraram para facilitar a comunicação era estudar fora das aulas, pois “era preciso estar em sintonia com Dona Maria para entender o que ela falava”.

Como o próprio Rudolf Laban, que foi modificando e acrescentando material em suas teorias, com o passar do tempo Maria Duschenes também não estagnou seus ensinamentos. Cybele lembra que ela “passava o Método Laban de forma diferente para cada grupo ao logo do tempo”. Lenira se recorda que Duschenes disponibilizava em seu estúdio diferentes tipos de aula “abrangendo interesses distintos, dependendo da demanda”. Ao longo do tempo, Duschenes foi transferindo o trabalho para seus discípulos também começarem a treinar a docência, como fazia o próprio Rudolf Laban. Assim, a árvore genealógica de Maria Duschenes foi crescendo, como relata Renata:

A árvore da Maria Duschenes é uma arvore generosa que tem muitos galhos com muitas flores e frutos de pessoas que passaram por ela. Ela teve uma condição de apropriação do conteúdo do Laban e de transmitir, muito boa... E tem muitas pessoas que conseguiram beber desta seiva... e estão multiplicando.