• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 7 – INTERCULTURALIDADE NO ENSINO-APRENDIZAGEM

3 INTERCULTURALIDADE NA EDUCAÇÃO

3.2 O QUE É INTERCULTURALIDADE? CONCEITOS E PERSPECTIVAS

3.2.1 Entre os prefixos e os sufixos – Cultura

Como falar de multi-cultura-lidade, pluri-cultura-lidade e inter-cultura-lidade, no entanto, sem remeter à cultura? Para discorrer sobre os conceitos dessas terminologias, faz-se necessário o entendimento do que seja cultura. Embora já se saiba que o termo é complexo, aberto a diversas definições, enfoques e ideologias, desnaturalizá-lo, mesmo que brevemente,

se torna pertinente por ser este um conceito historicamente construído e que, ao longo do tempo, se (res)significa.

Na genealogia social da palavra e da ideia de cultura, Cuche (1999) reporta que no final do século XIII, na França, a palavra ‘cultura’, que expressava uma parcela de terra cultivada (cultura significando estado) passa a designar cultivar a terra (cultura significando ação) no início do século XVI. Já no século XVIII, a palavra começa a ser veiculada no sentido figurado e quase sempre seguida de um complemento: ‘cultura das artes’, ‘cultura das letras’, ‘cultura das ciências’. Contudo, é nesse mesmo século que os complementos caem em desuso e ‘cultura’ passa a ser empregada como ‘formação’, ‘educação do espírito’. Posteriormente, o movimento inverso acontece e a palavra deixa de ser empregada como ação (de instruir) e passa a ser entendida como estado (do espírito cultivado pela instrução; estado do indivíduo que tem cultura).

Ainda no século XVIII, ‘cultura’ é concebida, pelos pensadores do Iluminismo, como um caráter distintivo da espécie humana. É “[...] a soma dos saberes acumulados e transmitidos pela humanidade” (CUCHE, 1999, p. 21), e é empregada no singular por ser entendida como única e escrita com letras maiúsculas por ocupar um status elevado (VEIGA- NETO, 2003, p. 7). Ou seja, a palavra ‘cultura’ passa a refletir o caráter de universalidade e uniformização, associada às ideias de progresso, evolução e razão. É, também, neste século, que a palavra ‘civilização’ vai refletir as mesmas concepções de ‘cultura’, mas como expressa Cuche (1999, p. 21), apesar de pertencerem ao mesmo campo semântico elas não são equivalentes. Enquanto ‘cultura’ evoca os progressos individuais, a ‘civilização’ evoca os progressos coletivos.

O significado de civilização incorpora a ideia de progresso e de melhoria das instituições, da legislação e da educação, e acentua as diferenças entre as sociedades quando mensura as mais e menos avançadas e classifica os povos em mais ou menos selvagens.

Segundo Cuche (1999, p. 24), na segunda metade do século XVIII, a burguesia intelectual alemã passa a usar ‘Kultur’ em sentido mais restritivo do que a palavra ‘cultura’ francesa, e esta vai ser adotada em oposição aos valores ‘corteses’, considerados superficiais da aristocracia. E assim, os valores ‘espirituais’ que tinham base nas ciências, artes, filosofia e religião eram entendidos como autênticos e como parte da cultura. Sob essa ótica, os intelectuais alemães Kant, Herder, Goethe, Schiller, Fichte, entre outros, vão diferenciar ‘cultura’ de ‘civilidade’. Para eles, ‘civilidade’ se refere às atitudes e ações humanas que condizem ao comportamento (gesticulação, cortesia, recato, elegância, boas maneiras,

enquanto ‘cultura’ se refere às produções e representações atribuídas aos saberes, à sensibilidade e ao espírito. (VEIGA-NETO, 2003, p. 9). A esse respeito, Elias (1989, p. 57) sublinha que:

"Civilização", porém, não significa a mesma coisa para diferentes países do Ocidente. Em especial, existe uma grande diferença entre o uso francês e inglês da palavra por um lado e, por outro, o uso alemão. Na Inglaterra e na França, o conceito resume no orgulho que inspira a importância que tem suas nações para o progresso do Ocidente da humanidade. Já no emprego que lhe é dado pelos alemães “civilização” significa algo muito útil, mas, apesar disso, apenas um valor de segunda classe, ou seja, compreendendo apenas a aparência externa de seres humanos, a superfície da existência humana. A palavra pela qual os alemães se interpretam, a palavra com que se expressa o orgulho em suas próprias realizações e na própria essência é “cultura”27.

(Grifos do autor).

No século XIX, de acordo com Cuche (1999, p. 27), a noção alemã de cultura vai delimitar e consolidar cada vez mais as diferenças nacionais. O pensamento alemão vai destacar o caráter de distinção e particularidade em contraponto com o pensamento universalista de ‘civilização’ francesa.

Ao longo do século XIX, duas disciplinas científicas – sociologia e etnologia – são criadas como consequência da preocupação com a reflexão sobre o homem e a sociedade. A etnologia tenta dar uma resposta à questão da diversidade humana e elege o conceito de cultura como instrumento para sua reflexão. Na busca de um conceito de cultura cientificamente válido, a etnologia vai encontrar no britânico Edward Burnett Tylor seu proponente. Esse antropólogo no primeiro parágrafo de sua obra Primitive Culture (que é considerada como o momento fundador da etnologia como ciência autônoma), define pela primeira vez ‘cultura’. Tylor (1871) escreve:

Cultura e civilização, tomadas em seu sentido mais vasto, são um conjunto complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, os costumes, e as outras capacidades ou hábitos adquiridos pelo homem

27

Pero «civilización» no significa lo mismo en distintos países de Occidente. En especial, hay una gran diferencia entre el uso francés e inglés de la palabra por un lado y, por otro, el que de ella hacen los alemanes. En Inglaterra y en Francia, el concepto resume el orgullo que inspira la importancia que tiene la nación propia en el conjunto del progreso de Occidente y de la humanidad en general. En el ámbito germano-hablante, «civilización» significa algo muy útil, pero con un valor de segundo grado, esto es, algo que afecta únicamente a la exterioridad de los seres humanos, solamente a la superficie de la existencia humana. La palabra con la que los alemanes se interpretan a sí mismos, la palabra con la que se expresa el orgullo por la contribución propia y por la propia esencia es «cultura».(Grifos do autor).

enquanto membro da sociedade (TYLOR, 1871, apud. CUCHE, 1999, p. 35).

Através dessa definição, muda-se o paradigma vigente de cultura como inata e a cultura passa a ser compreendida como todo conhecimento adquirido/aprendido (LARAIA, 2001, p. 25). Essa definição marca o início de uma discussão conceitual que toma novas direções, percepções e definições. E assim, transpõe-se a concepção universalista de cultura, de Tylor , para a concepção particularista de cultura, de Franz Boas.

Nas palavras de Laraia (2001, p. 36) “[...] Boas desenvolveu o particularismo histórico (ou a chamada Escola Cultural Americana), segundo a qual cada cultura segue os seus próprios caminhos em função dos diferentes eventos históricos que enfrentou”. Boas, em toda sua obra, desenvolve o tema da diferença. Para esse antropólogo é a ordem cultural e não a racial que fundamenta a diferença entre os grupos humanos. Ao contrário de Tylor, de quem ele havia tomado a definição de cultura, Boas tinha como objetivo o estudo ‘das culturas’ e não ‘da Cultura’ (CUCHE, 1999, p. 40-42).

Desde Tylor e Boas o conceito de cultura vem sendo reformulado, discutido e debatido no interior de várias áreas do conhecimento. A título de ilustração, cito a obra ‘Culture a

critical review of concepts and definitions’, de 1952, dos antropólogos americanos Alfred

Louis Kroeber e Clyde Kluckhohn, que reuniu 164 definições de cultura, mais de meio século atrás. Nos dias atuais, as concepções universalistas e particularistas de cultura estão presentes nos debates acadêmicos, assim como as concepções simbólicas (GEERTZ, 2008; WHITE, 2009), estruturais (THOMPSON, 2009) e os aspectos substantivos e epistemológicos da centralidade da cultura introduzida por Paul du Gay, Stuart Hall, Linda James, Hugh Mackay e Keith Negus.

Em face de tantas possibilidades, elejo o viés dos Estudos Culturais e Teóricos da Linguística Aplicada e da Educação para entender o conceito de cultura como um modo de vida que abrange todo o âmago da sociedade (WILLIAMS, 1979); condição constitutiva da vida social (HALL, 1997); que compreende:

[...] uma teia complexa de significados os quais são interpretados pelos elementos que fazem parte de uma mesma realidade social [...] ou seja, é a vida em sociedade e as relações dos indivíduos no seu interior que moldam e definem os fenômenos culturais [...] que se transformam num movimento contínuo através do tempo e do espaço [...] e que se constroem e se renovam de maneira heterogênea através dos fluxos internos de mudança e do contato com outras culturas (MENDES 2015, p. 218).

Nesse contato com outras culturas significamos o mundo, numa relação dialógica do eu com o outro, através dos encontros e desencontros, numa sociedade multi-, pluri-, trans- e intercultural.