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Entre tradição, estilização e estereótipo

O samba de roda passa atualmente por um processo de estilização ao adotar novos instrumentos e técnicas, simetrizar suas estruturas, valer-se da avaliação estética e da participação de sujeitos externos ao seu contexto. Concepções musicais de tradição europeia se impõem. Entretanto, ao contrário do que se poderia esperar, tais mudanças não implicam em um enriquecimento da prática musical, mas sim em sua homogeneização. Os poucos aspectos tradicionais rema- nescentes são simplificados, se misturam com inovações do âmbito de gêneros musicais comerciais, que acabam sendo aos poucos enfatizadas por sua repeti- ção através das gravações. Daí surgem estereótipos do samba de roda: clichês musicais disseminados por toda a região.

Se na década de 1980, Tiago de Oliveira Pinto pôde identificar apenas em Cachoeira a ponte instrumental do barravento, que então só servia como intro- dução de um samba, atualmente são grupos de variadas proveniências que apli- cam esse padrão das violas tanto para introduzir um novo samba quanto entre a repetição de seus versos. Todas as faixas de um CD podem ser iniciadas com a mesma ponte instrumental típica ou, menos frequentemente, com uma de suas variantes. O mesmo vale para os toques das violas, que, além de se reduzirem a reinterpretações parciais do histórico tom em ré maior, podem se resumir a um único padrão rítmico-melódico repetido ao longo de todas as músicas. Aliás, todas elas soam em uma mesma tonalidade, suprimindo uma característica do samba de viola apontada por Waddey (1980, p. 206, tradução nossa), relacionada aos tons de machete:

No samba de viola e nos arredores de Santo Amaro (e tanto no estilo de Santo Amaro quanto no de Salvador), os violeiros, bem como os canta- dores, gostam de mudar de tonalidade de vez em quando para acomodar a voz de diferentes cantores em registros adequados a eles e ao mesmo tempo para receber a satisfação estética que a mudança de tom oferece.133

O canto claro, afinado, em registro médio, semelhante ao dos vocalistas de conjuntos musicais urbanos, substitui paulatinamente as diversas possibilidades tímbricas das parelhas do samba chula, seu paralelismo em terças, seu falsete, bem como o canto estridente e agudo das sambadeiras. O repertório de canções, caracterizado pela arte da improvisação, tende à “invariabilidade, tornando-se uma unidade reproduzível a qualquer momento e de forma idêntica”134 (BAUMANN,

1976, p. 66, tradução nossa), visando suprir as necessidades das apresentações. Nota-se nos grupos de samba de roda fundados recentemente uma maior inclinação a mesclar aspectos característicos dos três estilos regionais. Com frequência, são tocados alternada ou simultaneamente os toques em ré, acor- des, pontes instrumentais barravento, assim como se misturam, em uma mes- ma canção, chulas e corridos. Corridos podem ser cantados em terças; chulas entoadas solo. As diferentes tradições musicais se fundem umas com as outras

133 “In the samba of the viola in and around Santo Amaro (and in Salvador in the Santo Amaro style), violei- ros as well as singers like to change keys occasionally, both to be able to accomodate the voice ranges of different singers and to receive the aesthetic satisfaction a change of key provides”.

e com seus respectivos clichês, redundando em único estilo identificado pelo título de “samba de roda”.

É de se imaginar que o samba de Cachoeira tenha passado por transformação semelhante há décadas. A situação econômica e histórica da cidade teria con- tribuído para a comercialização precoce de suas práticas culturais tradicionais, que “frequentemente resulta na adaptação dos costumes para adequá-los ao gosto dos consumidores potenciais, sejam eles turistas ou o público em geral”.135

(KONO, 2009, p. 8, tradução nossa) É sabido que a região de Cachoeira passa por esse processo há tempo, como demonstrou Araújo (1986) e Oliveira Pinto (1991) ressaltando o fato de grupos de samba serem contratados para se apresentar em eventos específicos.

O samba de Cachoeira teria se folclorizado e experimentado mais cedo a di- luição de diferentes tradições em uma única: o samba de barravento. Barravento teria sido um termo local para designar uma forma de expressão semelhante ao samba chula, sendo cantado por parelhas em intervalos de terça, com melo- dias contendo sétimas menores e maiores e podendo ser dançado somente nas partes instrumentais. A tradição ainda se faz presente na memória dos samba- dores, como Zamith (1995) e Marques (2003, 2008) claramente documentaram, porém suas estruturas musicais e coreográficas teriam se dissolvido em grande parte. As estruturas do samba de barravento provavelmente desapareceram junto com seus mestres e tiveram suas reminiscências fundidas com aspectos de outras tradições, em processo similar ao que ocorre atualmente com os toques de machete. Se atualmente se formam estereótipos do histórico tom em ré maior, antigamente formou-se um estereótipo do acompanhamento da viola de um his- tórico samba de barravento, hoje cristalizado na ponte instrumental das violas. A cristalização de estereótipos evidencia as rupturas que a tradição experi- menta. Aubert (2007, p. 19, tradução nossa) resume em cinco pontos os aspectos que caracterizam estilos musicais tradicionais:

– eles são de origem antiga e leais às suas fontes e aos seus princípios, embora não necessariamente às suas formas e circunstâncias de

performance.

– eles baseiam-se na transmissão oral de regras, técnicas e repertórios. – eles vinculam-se a um contexto cultural, a um cenário no qual eles

têm uma posição e, na maior parte do tempo, uma função específica. 135 “Commercialization of traditional cultural practices often results in adaptation of custom to fit the taste

– eles são portadores de um conjunto de valores e virtudes que lhes confere sentido e eficácia dentro do contexto.

– eles vinculam-se, finalmente, a uma rede de práticas e crenças, e em alguns casos a rituais, a partir dos quais definem sua essência e sua razão de ser.136

O último aspecto descrito acima, o vínculo entre as práticas e os contextos culturais, pode ser tão forte a ponto de justamente evitar misturas estilísticas. Apesar de a mídia exercer grande influência no Recôncavo Baiano já nos anos 1980, disseminando gêneros musicais de outras regiões e países, documentos da época demonstram que um mesmo mestre dominava diversos repertórios: tanto suas tradições musicais – samba de roda, capoeira, candomblé, macule- lê, afoxé – como estilos urbanos – choro, bolero, samba carioca. (PINTO, 1991) Trata-se de uma capacidade, na qual “um músico se movimenta entre duas ou mais linguagens musicais, sem que os sistemas de aprendizagem e transmissão de ambos tenham que se misturar ou sincretizar”. (BAUMANN, 2006, p. 51, tra- dução nossa)137 É o caso da inovação rítmica causada pelo surdo, mencionada

no capítulo 3. A adoção do instrumento acrescentou recentemente um novo padrão e função na organização rítmica, inexistentes no samba de roda antigo. Padrão semelhante já existia na época, mas era exclusivo de outros contextos musicais, como o afoxé e o choro. As regras e limites musicais eram coerentes com os valores e significados de cada tradição, sendo respeitados e transmitidos de maneira orgânica e informal.

Sendo assim, no momento em que a transmissão orgânica dos conhecimen- tos é quebrada, tanto porque um mestre se foi sem encontrar seguidores ou porque se extinguiram os vínculos entre a manifestação cultural e os valores que ela representava, a “lealdade às fontes e aos princípios” da tradição, mencionada acima por Aubert, igualmente se rompe. O samba de roda deixa de fundamentar- -se em regras e princípios repassados de geração em geração, formando-se a partir de reminiscências da tradição e cristalizando-se em estereótipos.

136 “They are of ancient origin and faithful to their sources in their principles, if not necessarily in their forms and performance circumstances; they are based on an oral transmission of rules, techniques and reper-

toires; they are bound to a cultural context, a setting in which they have a place and, most of the time, a specified function; they are bearers of a set of values and virtues that confers upon them the sense and efficacy within this context; they are finally bound to a network of practices and beliefs, and sometimes to rituals, from which they draw their essence and raison d’être”.

137 “Ein Musiker kann sich […] durchwegs in zwei oder mehreren Musiksprachen bewegen, ohna daß sich die beiden Lehr- und Lernsysteme durchdringen müssen”.