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Estereótipos e preconceitos nacionais

O processo de redução do samba de roda a clichês se realiza ainda para além do Recôncavo Baiano, em direção oposta ao processo local: se os grupos da região transformam a diversidade da tradição em um estereótipo com características musicais urbanas e nacionais, ao mesmo tempo músicos de renome nacional e internacional disseminam pelo país outra imagem estereotipada do samba da prática musical.

Com o reconhecimento do samba do Recôncavo como patrimônio mundial, despertou-se a atenção sobre o gênero também em nível nacional. Ainda que os grupos da região tenham ocasionalmente a oportunidade de se apresentar fora do Recôncavo Baiano, são outros músicos, não os próprios mestres, que atuam como porta-vozes do samba de roda. Sua música, no entanto, não corresponde à prática tradicional local, mas à sua estilização imitativa.

O estereótipo do samba de roda que se escuta na televisão, no rádio, em CDs e DVDs comerciais baseia-se em alguns aspectos gerais e meramente sonoros da tradição baiana:

– as palmas executando a típica linha-rítmica de oito pulsos elementares (x..x..x.);

– o som da viola paulista imitando o tom em ré maior através de fórmulas melódicas dedilhadas;

– canções tradicionais ou composições próprias, com melodias fáceis de lem- brar em tonalidades maiores, sem modulação, com poucos acordes; – poucos instrumentos percussivos, de sonoridade suave, como alguns pan-

deiros e o prato-e-faca.

Embora ainda contenha elementos vinculados à prática do samba de roda, a música se estiliza de maneira a tornar-se “mais agradável” ao público nacional, ao restrito público que se interessa por estilos musicais representantes da rica tradição brasileira.

Por um lado, tal adaptação do estilo musical age de maneira positiva, criando uma porta de acesso nacional à tradição. Afinal, antes de sua nomeação e dissemi- nação por artistas famosos, pouco se falava sobre ela nos meios de comunicação. Entretanto, observa-se em Salvador, por exemplo, uma distinção entre “samba de roda” – o samba baiano, ali praticado – e o “samba de raiz”, também denomi- nado “samba clássico”, que é o do Recôncavo Baiano. Tal distinção vai além de separar musicalmente dois gêneros, consistindo ao mesmo tempo em diferentes

julgamentos sobre eles. O “samba de raiz” é visto como “primitivo”, como raiz do samba de roda disseminado pela mídia, que seria o “civilizado”.

Nisso está implícita uma concepção evolucionista e etnocêntrica; em ou- tras palavras, um preconceito. É muito comum a música africana ser considera- da mera “raiz” da afro-americana, incluída aí a música popular brasileira. Ku- bik (1979) argumenta que essa concepção não reconhece as culturas africanas como produção humana com história própria e em contínua transformação. O mesmo acontece com o samba baiano, considerado “raiz” do samba carioca. Culturas tradicionais são tidas como estagnadas, enquanto que suas apropria- ções e reinvenções, como o samba urbano ou a bossa nova, representam seus estágios modernizados e evoluídos.

A suposição de que a música europeia, ou mais exatamente europeia clássica, representa uma cultura superior (Hochkunst, Hochkultur) e que o “resto” é exó- tico e primitivo, surge logo nos seus primeiros contatos com culturas distantes:

O encontro europeu com sistemas tonais de culturas estrangeiras trouxe rapidamente à tona o fato de o ouvido etnocêntrico, com seu próprio sis- tema de referências culturalmente condicionado – como, por exemplo, sua própria escala temperada – tender a rejeitar intervalos e sequências de notas, julgando-as ‘não artísticas’ e ‘primitivas’, ou a escutá-las de acordo com suas próprias concepções musicais”. (BAUMANN, 2006, p. 45, tradução nossa)138

A desconstrução de preconceitos sobre outras culturas é condição para a promoção da diversidade cultural. É certo que a preservação de tradições cul- turais depende de seu fortalecimento interno, melhorando as condições de sua transmissão e reprodução e garantindo a autonomia de seus guardiões. Mas a conscientização externa sobre os valores dessa tradição também é fator fun- damental. Aliás, uma das quatro finalidades da convenção de 2003 da Unesco tange justamente esse ponto: “a sensibilização a nível local, nacional e interna- cional para a importância do patrimônio cultural imaterial e da sua apreciação recíproca”. (UNESCO, 2003, Art. 1c) A música do “outro” deve obter reconhe- cimento a ponto de ser apreciada e respeitada como ela é. Assim, se promove

138 “Die europäische Begegnung mit fremdkulturellen Tonsytemen hat sehr schnell zu Tage gebracht, wie das ethnozentrische Ohr mit dem eigenen, kulturimmanent konditionierten Referenzsystem – etwa der eigenen temperierten Tonskala – fremde ‚ungewohnte‘ Intervalle und Tonfolgen einfach als ‚kunstlos- -primitiv‘ ablehnt oder aber nach dem eigenen Begreifsystem zurechthört.”

“uma tolerância ativa que presume o respeito mútuo, em vez de uma simples aceitação da diversidade”. (UNESCO, 2010, p. 47)139

Em busca de reconhecimento, os sambadores do Recôncavo Baiano acabam adaptando seu repertório a interesses externos e produzindo um clichê local da tradição. Pelo resto do Brasil, é na busca de mais sucesso que artistas renomados, valendo-se da recente valorização das tradições brasileiras, disseminam outro estereótipo do samba de roda, que, querendo ou não, mantém o preconceito que se tem sobre aquilo que é tradicional. Ambas as tendências agem em di- reção contrária ao do incentivo à diversidade do samba de prática musical: ao promover a tradição do Recôncavo, implicitamente está denotada sua inferio- ridade. Certamente não é isso que almejam as políticas culturais do país, nem os artistas consagrados.

O samba de roda continua a ser visto pelos brasileiros como uma categoria musical limitada e antiquada, responsável meramente pela origem do samba nacional. Como seria enxergá-lo nem como raiz nem matriz, mas como expres- são cultural autônoma que, de tão rica, serviu de fonte criativa para o desen- volvimento de outros gêneros musicais, entre os quais está o samba carioca?

Há um consenso de que o samba do Rio de Janeiro, consolidado como gênero musical e símbolo nacional na década de 1930 (VIANNA, 1999), tenha se desen- volvido a partir do samba baiano, em finais do século XIX. O Rio de Janeiro rece- bia grandes quantidades de migrantes de outras regiões do Brasil para trabalhar nas lavouras de café, tendo nos baianos seu segundo maior contingente de mi- grados desde 1870, que ficava atrás apenas dos fluminenses. (TINHORÃO, 1998) Esses migrantes teriam difundido suas tradições pela capital brasileira da época, entre elas sua música. Entretanto, essa suposição baseia-se essencialmente em relatos históricos, não se sabendo até que ponto o samba de roda influenciou o samba carioca tradicional, identificado até hoje com a “roda de samba”.140