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Folclorização e espetacularização

Minha primeira premissa sobre o processo de transformação aqui analisado era a de que o samba de roda estaria se mercantilizando, tornando-se música co- mercial. Porém, em contato com os sambadores, descobri que essa não é sua intenção. Além disso, o samba desses grupos ainda não atingiu um estágio de produção e promoção a ponto de participar ativamente na mídia e tampouco conseguiu se comercializar de maneira a conseguir garantir o sustento de seus participantes.25 Então, como classificar as tendências atuais dessa expressão cul-

tural? Dois fenômenos, não divergentes, mas que pertencem a diferentes pers- pectivas podem ser observados: a folclorização e a espetacularização.

Usando o termo em alemão Folklorismus, Max Peter Baumann (1976) defi- niu o processo em que o folclore musical é descontextualizado, direta ou in- diretamente, através de agentes externos à comunidade, transformando-se

24 “Plötzlich setzt sich das durch die Medien verbreitete Klischee-Paar von ‘Industrie = Fortschritt (pro- gresso)’ und ‘nicht-Industrie = Rückschritt (atraso)’ in der Vorstellung derjenigen durch, die in der Fabrik einen Platz gefunden haben. Die jungen Männer, welche der Industrie fern geblieben sind, werden als rückschrittlich angesehen”.

25 Entretanto, outra classe de músicos que já tocava ou se apropriou do samba de roda alcança esse patamar. Samba de roda se tornou também um produto da mídia no Brasil, representado, todavia, por músicos não tradicionais que já faziam parte do circuito comercial. Ver capítulo “Estruturas musicais contextualizadas”..

em mercadoria. O fenômeno da folclorização é uma consequência, portanto, da industrialização, da modernização, do desenvolvimento da sociedade de con- sumo. Isso acontece justamente “quando costumes que estão desaparecendo experimentam uma verdadeira perda”.26 (BAUMANN, 1976, p. 63, tradução nossa)

No caso do Recôncavo, essa perda é claramente representada pela viola machete. A transição de folclore para folclorismo concerne basicamente à compreensão musical, aos processos de tradição e aos grupos musicais, prevendo as seguintes transformações vistas abaixo:27

- A música (o evento musical) era compreendida pragmaticamente, isto é, sem necessidade de ser racionalizada para existir. Folclorizada, a tradição passa a ser paulatinamente teorizada de uma maneira ingênua. É o caso dos ne- cessários “ajustes”, do emprego de termos que não pertenciam ao contexto anterior como “autenticidade” e “historicidade”, de conceitos sobre o samba compartilhados em diferentes regiões, como, por exemplo, a existência de três modalidades de samba – barravento, samba chula, samba corrido. Suas diversas denominações se reduzem a esses três termos, institucionalizados no dossiê do Iphan e pela Asseba.

- A transmissão da tradição passa a se orientar por formas fixadas por escrito e não mais oralmente. Além de as letras serem escritas para facilitar o ensi- no do samba, sua fixação se dá através da gravação de CDs comercializados, distribuídos e executados principalmente na Casa do Samba. Esses registros se tornam referências de como o samba de roda soa e deve soar.

- A função da música não se relaciona mais primariamente – ou exclusivamen- te – com o contexto da vida das comunidades, com seus costumes, com seu cotidiano, e sim secundariamente, mais descomprometida com seu contexto social e dando à música uma relevância estético-emocional. O samba de roda adapta-se aos formatos de suas apresentações externas, tendo integrantes fixos, roupas padronizadas, uma duração definida de aproximadamente uma hora e sendo executado exclusivamente como música, independente da pre- sença de sambadeiras e da formação de uma roda de samba.

- Os grupos se tornam tradicionalistas, conscientizando e afirmando-se através de um discurso de sua própria história que, no entanto, lhes foi transmitido secundariamente – fora do contexto de suas vidas e da tradição. O traje de 26 “Wenn verschwindende Lebensgewohnheiten eine Verlusterfahrung bewirken”.

baiana é um exemplo disso, que é usado independentemente de uma cerimô- nia religiosa, funcionando como símbolo identitário, ou seja, tradicionalista. A institucionalização do samba de roda significa também a institucionalização de sua transmissão. Além de seu ensino nas escolas, são oferecidos cursos sobre a “sua historicidade”.

No total, Baumann cita 17 características da folclorização e para quase todas há exemplos no Recôncavo. Algumas dessas características aproximam-se dos princípios do próprio fenômeno da espetacularização. O autor afima que o fol- clorismo musical se orienta para a apresentação28, para a exposição do grupo,

que precisa se organizar e ensaiar em vista do espetáculo. Nesse sucede uma se- paração entre executante e ouvinte – fato que se contrapõe ao contexto original, no qual todos são participantes – assim como entre compositor e intérprete – aspecto que poderá ser observado em breve, pois a diferenciação entre música composta e de “domínio público” já se faz presente no Recôncavo.

Ambos os fenômenos são consequência da apropriação dos bens culturais de comunidades como as do Recôncavo por instituições externas ao contexto desses bens. Isso já era uma realidade na região, mas era a exceção. Grupos como o Samba de Roda de Suerdieck eram patrocinados por terceiros – no caso, a fá- brica de charutos Suerdieck, de Cachoeira – para se apresentar fora de seu con- texto. Entretanto, o patrocínio não visava à preservação da cultura e dos grupos, mas à divulgação do espetáculo folclórico de acordo com os interesses do pa- trocinador. Essa passou a ser a regra. O incentivo geral ao samba de roda se dá através de seu ensino, de projetos culturais e de sua institucionalização. Porém, diretamente para os grupos, guardiões da cultura, o incentivo financeiro vem de suas apresentações externas. É a isso que José Jorge de Carvalho (2007, p. 83) chama de espetacularização das culturas populares:

A operação típica da sociedade de massa, em que o evento, em geral de caráter ritual ou artístico, criado para atender a uma necessidade ex- pressiva de um grupo e preservado e transmitido através de um circuito próprio, é transformado em espetáculo para consumo de outro grupo, desvinculado da comunidade de origem.

28 Turino (2008) cunha e detalha as diferenças entre as categorias “performance participatória”e “perfor- mance apresentacional” (participatory/presentational performance), chamando atenção para o fenô- meno mundial de tradições musicais que se transformam passando da primeira para a segunda categoria, como no caso aqui analisado.

O samba das zonas rurais vem, sim, se comercializando, ainda que dentro de uma lógica própria às culturas populares, própria às políticas de sua preserva- ção. Os processos secundários de que fala Baumann, que caracterizam culturas folclorizadas, são mediados – por isso, secundários – pelo espetáculo, pela indús- tria turística, pelo governo, pelo mercado. Os sambadores são pressionados a se ajustar ao mercado na expectativa de reconhecimento e de uma melhor situação socioeconômica, por uma questão de necessidade e não de ambição pessoal. Nessa adequação perdem muito de sua tradição, reduzindo-a a apresentações curtas, desapropriadas de seu significado original e de seus símbolos culturais, adotando ideais valorizados pela cultura dominante. Consequentemente:

Mudanças dramáticas da forma estética podem suceder, implicando per- das graves no plano simbólico: instrumentos musicais acústicos que são substituídos por instrumentos elétricos; intervenções descuidadas nos aspectos formais dos arranjos, das melodias, das formas estróficas, da cronologia de apresentação das canções e das danças; técnicas vocais podem ser alteradas ou eliminadas; ritmos podem ser simplificados ou descaracterizados; vestuários podem ser descaracterizados.(CARVA- LHO, 2004, p. 13)29

Tais mudanças estéticas da prática musical serão exemplificadas ao longo deste estudo. Não é por acaso que tão frequentemente se refira ao pagode, seja para diferenciá-lo ou para compará-lo ao samba de roda: falar de pagode é falar do crescente predomínio de gêneros comerciais na região do Recôncavo. A consequente influência disso evidencia-se ainda na forma e no contexto de apresentação dos grupos, na dança, no som e nas estruturas musicais do samba de roda.

Que a música e a cultura passem por modificações não é um fato novo nem evitável, mas que lhes é intrínseco. O samba de roda tornar-se contextual e es- teticamente uma música comercial não seria um fenômeno novo na música popular brasileira. Constantemente, a música e outras expressões das culturas popularesbrasileiras foram apropriadas por outras classes sociais, fundindo-se

29 Carvalho se refere aqui especificamente aos casos em que pesquisadores criam seus próprios grupos de música tradicional para representar a cultura que pesquisa perante outros grupos. Trata-se, no entanto, de uma outra forma de deslocar os símbolos culturais de uma determinada comunidade para fora de seu contexto, ou seja, de espetacularizá-los. Assim, seus efeitos acabam sendo os mesmos, como verificare- mos ao longo do presente trabalho.

e resultando em novas expressões culturais como o carnaval, a música das es- colas de samba, a bossa nova, entre outros. Aqui, a diferença, além das recentes questões de preservação de patrimônio, é que a pesquisa avançou, aprofundando o conhecimento desses fenômenos e de suas consequências.

É provável que sem a imposição das ações de salvaguarda,30 outros aspectos

do samba do Recôncavo desapareceriam da realidade daqueles que ainda o pra- ticam. Entretanto, paradoxalmente, as políticas voltadas para a preservação da diversidade cultural parecem contribuir para a redução de elementos tradicio- nais do samba de roda. Os sambadores antigos resistem na prática de sua tradi- ção e transmitem-na às novas gerações. É certo que eles identificam melhorias de ordem simbólica e sentem-se mais reconhecidos ao verem que um público crescente se interessa pelo que fazem. Ainda assim, este reconhecimento não é nem suficiente, por não garantirsua sobrevivência, nem justo, pois tal irrisória retribuição não condiz com a riqueza de seus conhecimentos.

30 O verbo “impor” sugere o próprio Carlos Sandroni, coordenador da candidatura do samba de roda perante a Unesco (2010, p. 378): “poderíamos dizer que o IPHAN não “apoiou” a organização dos sambadores, mas que ele a “impôs”.