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conhecíveis com tanta clareza e independência como a teoria assume.121

(ANKU, 1997, p. 227, tradução nossa)

A análise anterior dos padrões rítmicos isolados ensejou a compreensão de suas respectivas funções dentro do ensemble e do evento musical, de maneira que agora se verificará seu comportamento em relação uns aos outros, dentro da totalidade dos princípios formais sonoros do samba de roda. A partir de grava- ções constata-se a estreita ligação entre os instrumentos de percussão e o canto:

Figura 41 -Transcrição de “Embarca, meu povo”, grupo Nicinha e Raízes de Santo Amaro

Nesse exemplo de samba corrido, ocorrem muitos deslocamentos do beat pelo surdo, fato incomum no samba de barravento. Porém, o que mais chama a atenção é a correlação entre o canto e as batidas do agogô. O timbal, ainda que improvise bastante, parece orientar-se por essa linha-rítmica ressaltada pelo canto e pelo agogô, ao marcar justamente os pulsos elementares expressos por

121 “While rhythmic patterns are often isolated and discussed in their own terms, they are not normally heard with such clarity in actual performance context. That is to say, they are not easily recognizable with such

eles. O mesmo acontece na fórmula executada pelo pandeiro. Seria o canto que se orienta pelo agogô ou o contrário?

Dentro da pesquisa musical africana se afirma que as linhas-rítmicas, naque- las tradições das quais faz parte, representam o primeiro e principal nível de orientação temporal do conjunto percussivo, e não os beats, ou tempos fortes, como na música europeia. David Locke (1982) esclarece:

O padrão rítmico cíclico do sino [como do agogô] dá forma e define o decorrer do tempo; todos os eventos da performance são concebidos em

relação a esse padrão [...] Os beats sozinhos são insuficientes para guiar o timing do performer, já que todas as ações devem ocorrer em momentos precisos dentro do padrão do sino, mas eles são um fato importante para regular o tempo.122 (LOCKE, 1988, p. 373, tradução nossa)

No samba de roda ainda se escutam linhas-rítmicas, tal como prevê a con- cepção africana: com um único som, agudo e penetrante, sendo continuamente repetidas. Contudo, elas parecem ser dispensáveis para a coordenação temporal do conjunto percussivo. Afinal, são poucos os grupos que as executam, e quando o fazem, podem alternar entre os dois tons do agogô, simultaneamente a outras linhas-rítmicas diferentes, ou até mesmo variar de fórmula depois de o canto iniciar e se estabelecer:

122 “The cyclic rhythm pattern of the bell shapes and defines elapsing time; all performance events are con-

ceived in relation to this pattern. […] Beats alone are insufficient to guide a performer’s timing because all actions must occur at precise moments within the bell pattern, but they are an important factor in regulating tempo”.

Figura 42 - Estabelecimento da linha-rítmica de acordo com o canto, “Só samba de pé na meia”, grupo Filhos da Pitangueira

Teria o canto, através de suas fórmulas assimétricas inerentes, assumido a função da linha-rítmica? Afinal, as melodias são entoadas por vozes agudas e penetrantes, ainda que com interrupções. Algo parecido sugere Sandroni (2001b, p. 59) referindo-se ao samba carioca: “tudo parece indicar que, na música popu- lar brasileira dos anos 1930, se queremos saber algo sobre os tamborins numa gravação de onde estes foram excluídos, é no ritmo melódico proposto pelos cantores que devemos procurar”, afinal, são principalmente os tamborins que executam as linhas-rítmicas no Rio de Janeiro. Mas, se o canto realmente cum- prisse essa função, o que aconteceria durante as partes instrumentais, quando os músicos não dispusessem da orientação temporal definida pelo canto?

A transcrição de uma chula-em-lá-maior evoca hipótese semelhante. Trata-se de uma gravação da década de 1980, acompanhada de viola machete, um timbal, canto e tabuinhas que executam a linha-rítmica. O machete poderia, através de suas fórmulas compostas de linhas-rítmicas inerentes, servir de guia temporal

para o ensemble, já que os toques, diferentemente das melodias cantadas, eram executados sem interrupção:

Figura 43 - Chula em lá maior (gravação da década de 1980)

As batidas das tabuinhas e as sílabas do canto coincidem com os acentos do tom de machete. A impressão de que o toque funciona como orientação temporal para o conjunto é salientada pelo fato de que a tocadora das tabuinhas alterna ocasionalmente a sua linha-rítmica.

Verificando essas fortes correlações entre os instrumentos e o canto nota-se algo que os mantém unidos, apesar de todos mudarem suas fórmulas rítmicas. Ao que tudo indica, não são nem as palmas, nem o agogô, as tabuinhas, o canto

ou a viola que assumem, sozinhos, a função de guia temporal, e sim uma única linha-rítmica, a típica do samba. Essa se expressa, no entanto, de diversas ma- neiras, podendo soar clara ou latente, em sua forma básica ou em formas deri- vadas dela, através de diversos instrumentos e com variados pontos de ligação com os beats. A linha-rítmica funcionaria dentro do princípio denominado por Pantaleoni (1972, p. 60, tradução nossa) de “silhueta”: “Assim como uma silhueta visual existe como uma linha entre um primeiro e um segundo plano, o timing dos Anlo existe na interação da batida do sino com a execução musical das ou- tras partes”.123 Entretanto, no samba de roda, esse princípio ocorre mesmo na

ausência do “sino” ou de qualquer instrumento que execute explicitamente a linha-rítmica.

A conexão e as diferenças entre a linha-rítmica típica do samba e a fórmu- la Kachacha de Angola/República do Congo foi representada por Oliveira Pinto (2001a, p. 97) através do seguinte gráfico:

Figura 44 - Linha-rítmica típica do samba em relação com a fórmula central-africana Kachacha

Ambos os padrões têm exatamente a mesma estrutura com, no entanto, diferentes pontos-pivô (pivot points) (KUBIK, 2004, p. 92), que significam o pri- meiro ponto de coincidência da fórmula rítmica com o beat, não sendo neces- sariamente seu ponto inicial – como é o caso do princípio de “antecipação” no samba de roda. É essa fórmula, pois, que estará sempre presente na performance,

123 “Just as a visual silhouette exists as the line between a background and a foreground, Anlo timing exists as the interaction of the play of the bell with the play of the other parts”.

manifestando-se com mais ou menos batidas e com variados pontos-pivô e pon- tos iniciais.

Ligado a essa linha-rítmica, há ainda outro aspecto relevante para a orienta- ção temporal da performance. Em um vídeo da década de 1980, vê-se Mestre Vavá interrompendo um dos percussionistas, que teria introduzido no timbal um pa- drão rítmico equivocado no samba que se iniciava. Imediatamente, Mestre Vavá, que tocava o pandeiro, mostra no timbal a seguinte fórmula rítmica, a “correta”:

Figura 45 - Padrão rítmico básico “correto” do timbal, corrigido por Mestre Vavá

• = Batida no centro da pele || = Forte batida com a mão inteira no centro da pele As duas batidas agudas e mais fortes do terceiro beat são frequentes no sam- ba de roda, conforme as demais transcrições apresentadas neste estudo. Não se tratam de meros acentos, mas são sempre enfatizadas por um timbre diferente e mais agudo – como no exemplo de Vavá, batendo a mão estendida no meio da pele do timbal –, independente do instrumento que as executa. As batidas da linha-rítmica, quando explícita, coincidem com esses dois acentos, seja qual for a fórmula empregada, e mesmo que essa varie dentro de uma mesma can- ção. Para ilustrar tal ideia, apresentam-se a seguir diferentes linhas-rítmicas, tocadas geralmente pelas palmas ou tabuinhas no samba do Recôncavo, sendo alternadas por um mesmo instrumentista, em uma mesma peça, de maneira que as fórmulas oscilam de uma para a outra:

Figura 46 - Flutuação de linhas-rítmicas no samba de roda

Todos esses padrões rítmicos baseiam-se ou na linha-rítmica de 16 pulsos elementares típica do samba, ou na fórmula de oito pulsos característica das palmas do samba de roda. Apesar de divergirem uns dos outros e apresentarem variados pontos-pivô, os padrões compartilham daquilo que a partir de agora chamaremos de ponto fixo, que consiste nos dois acentos agudos em off-beat,

ou sincopados, dentro do terceiro beat. A linha-rítmica do samba gira em torno de tal ponto fixo:

Figura 47 - Linhas-rítmicas do samba de roda124 em relação com

a fórmula típica do samba e com o ponto fixo125

x: Ponto inicial da fórmula típica

(x): Batida implícita x: Batida ornamental : Ponto fixo

O esquema mostra a presença ainda de uma terceira batida “fixa”, logo após os primeiros acentos, no quarto beat – que provavelmente estava implícita na correção de Vavá. Por conseguinte, o ponto fixo compõe-se de três batidas, que formam exatamente a fórmula típica de oito pulsos elementares, com ponto-pivô diferente. A única fórmula nessa listagem que não possui uma divisão “ideal” (optimale Verteilung, KUBIK, 2008, p. 379), não representando assim a linha-rítmica típica do samba, é a fórmula de número 6, documentada por Gerischer (2003, p. 173) em diversas formas do samba baiano, como, por exemplo, o samba- -reggae. Mesmo assim, ela contém simultaneamente a fórmula tradicional de oito pulsos elementares e o ponto fixo.

O ponto fixo é, então, cíclico e atravessa a música do início ao fim. Pode ser que ele funcione como o terceiro nível de orientação temporal da música africa- na: o ciclo. O músico se comporta da seguinte maneira em relação à percepção desse: “Ele pode ignorar o ciclo temporariamente, mas ele nunca perde sua consciência sobre o ciclo, retornando sempre em um ou outro momento a ele”.126

124 Aqui ainda foi adicionada a batida básica do partido-alto do Rio de Janeiro, para comparação no capítulo “O samba de roda na roda de samba”.

125 Exemplos: 1. Recente, executado em Santo Amaro; 2. e 3. Região de Santo Amaro e Terra Nova na década de 1980; 4. 5. e 6. Presente em todas as regiões e épocas; 7. Partido-alto do Rio de Janeiro.

126 “He may temporarily ignore the cycle, playing offbeat phrases or off-cycle patterns that cross it in length and in harmonic implication, but he never loses his awareness of the cycle, always eventually returning to it”.

(KUBIK, 2010, p. 41, tradução nossa) Independente de como e quanto se impro- visa e se alguma variação da linha-rítmica do samba é executada explicitamente ou não, o ponto fixo soará ciclicamente em alguma das partes integrantes do conjunto instrumental e vocal do samba de roda. Uma linha-rítmica específica continua a existir, mesmo que sua fórmula seja expressa inerentemente, encon- trando nos três acentos um ponto fixo para a sua manifestação sonora.

Dessa forma, as diversas estruturas rítmicas, bem como a improvisação do samba de roda, fundamentam-se sobre uma mesma matriz temporal assimétrica. Essa funciona de acordo com seus princípios formais de assimetria e acentuação em pontos determinados do ciclo, mesmo na ausência de uma linha-rítmica so- norizada. No Recôncavo Baiano, uma mesma linha-rítmica, através de seu ponto fixo, representa o “núcleo estrutural” (struktureller Kern) (KUBIK, 2004, p. 91) não apenas de uma música específica – como na música africana –, mas de todo o repertório do samba da região.