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O samba chula foi bastante documentado, no entanto, sob diferentes nomes. Se na época da pesquisa de Ralph Waddey e de Tiago de Oliveira Pinto o termo samba de viola era mais comum, hoje se identifica o mesmo estilo principal-

57 “Werden ganze Einheiten wiederholt, so können innerhalb solcher Einheiten einzelne Wörter in der Wiederholung durch andere ersetzt werden, ein Name etwa oder andere Wörter, je nach Lust und Laune des Sängers oder nach den Erfordernissen der jeweiligen Situation. Nutzt man diese Technik der Subs- tituierung richtig aus, so können alte, traditionelle Lieder eine Neufassung erhalten, um Wohltätern zu danken, um zu warnen, zu schmeicheln, zu spotten oder zu loben, wo es angebracht ist”.

58 Este tipo de notação será elucidado no capítulo “Princípios rítmicos da percussão”. Aqui são relevantes apenas os textos e a melodia. As linhas verticais representam os pulsos elementares (ver capítulo “Princí- pios rítmicos da percussão”), podem ser interpretadas como unidades de colcheia. As linhas mais grossas representam os beats, vistos como tempos fortes na teoria da música ocidental.

mente como samba chula. Waddey (1981, p. 252) ainda menciona outras deno- minações relativas à mesma tradição: samba amarrado, samba de parada, samba chulado, samba de partido alto e samba santamarense. Muitos são os aspectos que reúnem todos esses termos em uma tradição musical.

O samba amarrado tem seu contraponto no samba solto, sinônimo de samba corrido. Essas denominações não se relacionam apenas ao fato de um ser mais “duro”, como julgam os mestres, ou seja, mais difícil que o outro, mas também à forma do canto. “Amarrar” tem um significado específico na música de dife- rentes formas de desafio – jongo, coco e embolada –, que Travassos (2010a, p. 27) define da seguinte maneira: “Amarrar é ligar versos em sequências, de acordo com modelos métrico-musicais conhecidos, sem ser interrompido pelo refrão coral ou pela resposta do embolador-parceiro”.

Chula é uma forma de dança e canção portuguesa59 que se espalhou de va-

riadas maneiras pelo Brasil. (ANDRADE, 1989) No Recôncavo Baiano, o termo se refere à forma específica do texto e de como ele é cantado. Döring (2010, tra- dução nossa) resume a estrutura das chulas baianas:

[Chula] no Samba Chula é o canto de uma estrofe composta por dois até quatro versos, entoado por uma parelha (dupla vocal) quase sempre de homens. Ao contrário do Samba Corrido, o verso não é respondido e repe- tido pelo coro, à maneira do canto responsorial. A chula pode passar uma mensagem clara ou ser simbólica, como metáfora ou poesia livre, cujo significado em alguns casos se perdeu no tempo ou só se faz compreender entre os mais velhos. Geralmente, a chula é seguida de um relativo, uma estrofe um pouco mais curta cantada por outra parelha, concluindo ou comentando a chula de uma maneira muitas vezes engraçada.60

A segunda voz da parelha canta geralmente uma terça abaixo de quem puxa os versos, tendo assim que prestar atenção constante na improvisação do

59 Aqui também pode ter havido equívocos terminológicos. “Chulo” é sinônimo de grosseiro, baixo, obsceno e pode ter sido um termo, assim como batuque, para denominar diversas danças populares.

60 “Im Samba Chula ist [chula] der Gesang eine[r] Strophe, die aus 2 bis 4 Versen besteht, und von einem fast immer männlichen Gesangsduo (Parelha genannt) gesungen wird. Anders als im Samba Corrido wird der Vers nicht im Responsorialgesang vom Chor wiederholt oder beantwortet. Die Chula kann eine klare Aussage treffen oder auch symbolisch sein, als Metapher oder freie Poesie, deren tiefere Bedeutung in manchen Fällen schon verloren gegangen ist, bzw. nur noch von den Älteren verstanden wird. Üblicher- weise wird die Chula von einem so genannten Relativo gefolgt, eine etwas kürzere Strophe, die von einem anderen Duo gesungen wird und die Chula auf eine oft lustige Weise kommentiert oder abschließt”.

puxador, a ponto de poder reproduzir quase que simultaneamente os versos. Du- plicar a melodia uma terça abaixo é tarefa previsível, já que as chulas obedecem a fórmulas rítmico-melódicas. Grande parte delas começa em uma frequência mais aguda da escala a ser cantada, geralmente a oitava, e descem até a terça fundamental. A semelhança formal e melódica entre chulas de diferentes regiões do Recôncavo evidencia-se através de espectrogramas:

Figura 4 - Espectrogramas de chulas com melodias semelhantes:61

Os gráficos visualizam as vozes de dois cantadores de chula cantando sem acompanhamento textos diferentes. Os três padrões rítmico-melódicos se

61 Os cantadores de chula ilustrados são respectivamente das seguintes cidades: Santiago do Iguape, São Braz e Mar Grande.

compõem de dois versos separados por uma pausa entoados em movimento descendente. Tomando o dó central (dó3) como ponto de referência,62 todas as

chulas ilustradas iniciam na oitava (dó4) e terminam na terça (mi3), de maneira que a segunda voz entoa a nota fundamental (dó3) no fim. Já o final do primeiro verso termina em uma terça intermediária, uma terça acima da nota fundamen- tal (mi3 e sol3). O segundo verso inicia novamente mais agudo, na oitava (dó4) ou, no caso de João do Boi, na sexta superior (lá3), alcançando a oitava logo a seguir.

O canto do samba chula tem mais uma característica marcante: a presen- ça da sétima menor, que indicaria o emprego do modo mixolídio,63 caso sua

ocorrência fosse regular. Entretanto, o canto parece “oscilar” (SAMBA..., 2006, p. 51) entre sétimas menores e maiores, ou mesmo alterná-las sistematicamente. Talvez haja um sistema implícito para o emprego de cada uma, já que elas são cantadas exatamente nos mesmos lugares de uma fórmula rítmico-melódica executada por diferentes intérpretes. Todavia, analisando-se diversas fórmu- las, fica difícil determinar uma regra para se cantar cada nota em uma parte específica da melodia.

Outra questão complexa trata-se da afinação da terça final (dó3 e mi3), que não forma um intervalo nem maior, nem menor. Sob uma perspectiva ocidental, se consideraria que as parelhas do samba chula simplesmente desafinam. Porém, uma análise mais adequada dessa particularidade pode revelar suas verdadeiras origens. Uma explicação para essa escala especial do samba chula, acompanhada pelo canto em intervalos paralelos, seria sua possível origem angolana, confor- me Kubik (1979, p. 22, tradução nossa):

A presença de modalidade e terças paralelas na versão ‘angolana’ do Samba

das ruas poderia ser facilmente interpretada como sendo portuguesa. Contudo, o fato é que, nesse contexto dos sistemas tonais e cantos po- lifônicos, os traços angolanos e portugueses reforçaram uns ao outros no Brasil. A escala quase equiheptatônica do interior da Angola ligada

estruturalmente com o canto em sequências de terça (neutras) e quartas ou de terças e quintas, junto com o sistema tonal diatônico da música fol- clórica da Europa ocidental ligado ao canto em terças menores/maiores paralelas, formaram uma fusão perfeita no Brasil. A música iorubá, por 62 Assim ignoram-se as notas reais, o que importa é a relação intervalar entre as notas, que têm dó

como fundamental.

63 Modos gregorianos são comuns no nordeste do Brasil, principalmente o mixolídio e o hipolídio. Ver Souza (1959).

outro lado, continuou na Bahia com seu sistema pentatônico e ausência de canto polifônico.64

Um último aspecto do samba chula a ser mencionado é o papel central da viola. Ela é de tal maneira importante para o estilo que lhe confere uma de suas denominações: samba de viola. Antigamente, essa era a mais comum, como justi- fica Waddey (1980, p. 196, tradução nossa): “É a viola, sua presença na performan- ce do gênero e seu significado para a ocasião que mais caracterizam esse samba para os seus participantes”. Não era tanto o instrumento que caracterizava o estilo, mas principalmente a maneira como ele era tocado, através de fórmulas acústico-mocionais (PINTO, 2001a), os toques ou tons de machete.

Tendo em conta todas essas características do samba chula, torna-se fácil identificá-lo em relatos históricos sobre tradições musicais brasileiras. Confusões terminológicas são contornadas ao reconhecermos nas descrições dos fenôme- nos culturais seus traços particulares. Tomemos a colocação de Sílvio Romero (1888, p. 33, sublinhados nossos) datada do século XIX como exemplo:

Chama-se chiba na província do Rio de Janeiro, samba nas do norte, caterêtê na de Minas, fandango nas do sul uma funcção popular da pre-

dilecção dos pardos e mestiços em geral, que consiste em se reunirem damas e cavalheiros em uma sala ou n’um alpendre para dansar e cantar. Variadas são as tocatas e as dansas. Ordinariamente porém consiste o

baile rústico em sentarem-se em bancos à roda da sala os convidados, e, ao som de violas e pandeiros, pular um par ao meio do recinto a dan- sar com animação e requebros singulares o bahiano ou outras variações

populares. O bahiano é dansa e musica ao mesmo tempo. Os figurantes

em uma toada certa têm a faculdade do improviso em que fazem mara- vilhas, e os tocadores de viola vão fazendo o mesmo, variando os tons. Dados muitos gyros na sala, aquelle par vai dar uma imbigada noutro

que se acha sentado e este surge a dansar. O movimento se anima, e, passados alguns momentos, rompem as cantigas populares e começam os improvisos poéticos.

64 “The presence of modality and parallel thirds in the ‘Angolan’ strain of street Samba could be easily in- terpreted as ‘Portuguese’. The fact is, however, that in the domain of tone systems and multi-part singing Angolan and Portuguese traits reinforced each other in Brazil. The near-equiheptatonic of inland Angola structurally linked with singing in (neutral) third-plus-fourth or third-plus-fifth chains and the diatonic tone system of Western European folk music linked with singing in major/minor parallel thirds made a perfect blend in Brazil. Yoruba music on the other hand continued in Bahia with its pentatonic system and absence of harmonic part singing”.

Romero parece descrever um típico samba de roda, que também designa simultaneamente música e dança. Primeiramente, entra em cena o samba chu- la, de canto improvisado (toada), acompanhado por pandeiros e violeiros que variam os tons de viola em uma sala. A troca de dançarinos, aqui em pares, é sinalizada pela umbigada. O andamento das músicas vai se acelerando até irromper em “cantigas populares” – em corridos, e não mais chulas improvisa- das – e começam os “improvisos poéticos” (variação de textos e cantigas?) – do puxador dos versos. A mesma ordem de acontecimentos – do samba chula ao samba corrido – é comum até hoje na Bahia.

Samba chula demonstra uma grande afinidade com culturas musicais do sertão nordestino. Tendo-se em conta que esse estilo de samba cumpre um papel especial dentro do candomblé de caboclo e que a viola é o instrumento musi- cal da figura do boiadeiro, somos levados para outra área geográfica da Bahia. Se nas lavouras do Recôncavo Baiano trabalhavam predominantemente escra- vos africanos, as bandeiras e a criação de gado do sertão se prestavam da mão de obra indígena. (VIANNA FILHO, 2008) A figura do boiadeiro com sua viola remeteria historicamente ao índio ou ao caboclo, e não ao negro.

A letra da canção “Mandamentos de caboclo”, gravada em 1938 pela du- pla Alvarenga e Ranchinho, confirma a relação entre esse tipo de música e o caboclo. A música traz semelhanças musicais com o samba chula: canto com sétima menor em terças paralelas, acompanhado por viola, alternando entre partes cantadas e partes de viola solo. O ritmo marcado pela viola é, no entanto, de marcha e não de samba. Os próprios mandamentos entoados pela parelha expressam que o caboclo deve “pontear uma viola desde o baixo até o alto” e “aguentar em um desafio um caboclo bom de trova” (bom de improviso). Talvez as origens do samba chula se encontrem nas fronteiras do Recôncavo Baiano com o sertão baiano.