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A maneira de se cantar é um aspecto musical significativo para a diferenciação de estilos musicais35 e para o reconhecimento de suas influências. Entretanto, o

estilo vocal tem sido uma questão ignorada em análises musicais, como justifica Charles Seeger (1958a, p. 4, tradução nossa):

Deve-se admitir que é mais fácil isolar o que se canta do que como se canta. Um repertório consiste de artefatos passíveis de serem apresenta- dos objetivamente em uma forma escrita e impressa – canções, melodias, palavras, ragas, modos, etc. Esses, sendo caracteristicamente estrutu- rais, são fáceis de serem descritos. Um estilo vocal, por outro lado, con- siste em um complexo de disposições, capacidades e hábitos formados em processos corporais e de acordo com a personalidade individual do transmissor de uma tradição vocal, desde a tenra idade, pelo ambiente cultural e social no qual ele nasceu e se desenvolveu.36

São, pois, poucos os recursos para descrever e representar as qualidades vocais e seus timbres. (TRAVASSOS, 2010b) Espectrogramas37 vêm sendo utili-

zados para se visualizar e se compreender melhor as particularidades de estilos

34 Uma mestra sambadeira expressou sua insatisfação com a política de distribuição de instrumentos. Seu grupo recebeu um baixo elétrico – instrumento estranho à tradição –, apesar de não ter um integrante baixista e de ter solicitado uma viola. A identidade da sambadeira fica preservada. Santo Amaro da Puri- ficação, setembro de 2010.

35 Alan Lomax (1968) percebeu esse fato de tal forma que criou o Cantometrics, um sistema para “mensu- rar” as culturas musicais de todo o mundo através de seus estilos musicais e ainda relacioná-los a seus contextos sociais. Apesar de muito criticado por suas etnocêntricas simplificações sobre as variadas culturas musicais, o Cantometrics reconheceu a relevância dos estilos de canto para a compreensão de estilos musicais, criando categorias para sua diferenciação.

36 “It must be admitted that it is easier to isolate what is sung than how it is sung. A repertory consists of artifacts presentable objectively in written and printed form-songs, melodies, words, ragas, modes, etc. These, being structural in character, are easily talked about. A singing style, on the other hand, consists of a complex of dispositions, capacities and habits built into the bodily processes and personality of the individual carrier of a song tradition when he is very young by the social and cultural environment into which he is born and by which he is nurtured”.

37 Espectrogramas são representações visuais multidimensionais de sinais de áudio, mostrando a concentra- ção de energia dos sons no tempo – horizontalmente – e no seu espectro de frequências – verticalmente.

vocais. (FELD et al., 2004; PFLEIDERER, 2010) Entretanto, as diferentes condições de gravação de uma música limitam sua interpretação. A qualidade e a equali- zação do registro sonoro influenciam na visibilidade de seu espectro, de modo que os harmônicos de uma voz acompanhada por diversos instrumentos, por exemplo, serão muito menos claros no espectrograma do que uma voz solo e a capella. Consciente dessas limitações, o pesquisador encontra no espectograma um instrumento enriquecedor para analisar e representar estilos vocais. No caso do samba de roda, o estilo vocal demonstra ainda mais indícios de sua relação com tradições africanas e de suas recentes modificações.

No Recôncavo Baiano, nota-se uma diferença tímbrica evidente entre a fala dos jovens e dos mais velhos, que se reflete no canto. Waddey (1980) e Oliveira Pinto (1991) observaram a predominância de uma voz muito aguda no samba do Recôncavo Baiano e, no caso dos homens, o uso de falsete. Percebe-se, também, um canto de articulação difusa com voz estridente e anasalada. Alvarenga (1946, p. 370) reconhece uma qualidade vocal semelhante, “um nasal afro-brasileiro” como sendo uma das “características de timbração dadas pelo fusionamento com o negro”. A análise de espectrogramas indica que esse tipo de voz se carac- teriza pela concentração de energia no primeiro harmônico da voz,38 mais forte

do que a própria nota fundamental:

38 Os harmônicos ou sobretons são componentes de um sinal sonoro quase imperceptíveis para os ouvidos humanos. Sua configuração é responsável pela diferenciação entre timbres de instrumentos e vozes, sendo chamada de formante.

Figura 1 - Espectrograma da voz do puxador Primero, de Santo Amaro, cantando “Vou ver Juliana”:39

Isso não ocorre, no entanto, com os cantores mais jovens, cujas vozes se assemelham às de cantores profissionais. Eles cantam com articulação clara, voz bem definida de emissão de peito, aspectos ensinados em aula de técni- ca vocal e que atendem a ideais ocidentais de voz. Um vocalista profissional, conhecendo técnica vocal ou não, pretende desenvolver um canto mais afinado, o que pode significar não apenas a entonação precisa das notas, como também a concentração dos harmônicos emitidos sobre determinadas frequências sonoras. (FELD et al., 2004, p. 335)

Outro fator que interfere na continuidade do estilo vocal tradicional do sam- ba de roda é a amplificação dos instrumentos e das vozes. Ao usarem microfones, os cantores não precisam se esforçar para que sua voz se sobreponha ao acom- panhamento instrumental, podendo cantar relativamente mais baixo e suave.40

39 A primeira linha, de baixo para a cima, é a nota fundamental, aquela que identificamos como a nota sendo cantada, enquanto que as outras linhas adjacentes representam os seus harmônicos.

40 Em pesquisas de campo realizadas após este estudo, pude perceber, por experiência própria cantando em rodas de samba e de candomblé e morando em Santo Amaro, que a voz aguda e estridente funciona como os instrumentos percussivos agudos que executam a linha-rítmica (ver capítulo “Princípios rítmicos da percussão”), sendo mais penetrantes e se sobrepondo, assim, a outros instrumentos e sons difusos, tanto dentro de uma roda musical como em um cotidiano marcado pela oralidade e coletividade.

O jovem compositor Galdino “Guda” Moreno, vocalista do grupo Quixabeira da Matinha, tem uma maneira de cantar que representa bem a transição entre o canto tradicional do samba de roda e suas recentes transformações. Filho do mestre sambador Coleirinho, ele diz que sua voz é “herança” de seu pai.41 Guda

conserva a voz anasalada e um pouco estridente, mas seu canto é claro, bem definido, afinado, e sobre um registro médio:

Figura 2 - Espectrograma da voz de Guda Moreno, de Terra Nova, cantando “Ê sambador”:

Ê sambador, toca aí su-a vi - o - la

Guda Moreno considera que os sambadores mais antigos não cantam clara- mente, o que dificulta entender os textos de suas músicas. Para ele, é importante passar a mensagem da música de uma maneira clara e compreensível. Guda pro- cura constantemente escutar outras músicas e outros grupos, com a intenção de se aperfeiçoar, “ajustar coisas”, não porque “pretenda ser o melhor, mas porque quer dar o seu melhor”. Seu exemplo coincide com o que Blacking (1995) coloca sobre a formação e alteração de estilos musicais, quando “compositores [e intér- pretes] adquirem características de estilo escutando a música do passado ou do presente, e observando as convenções musicais de seu tempo”.42 (p. 35, tradução

nossa) A “observação das convenções musicais” pode ser dar propositalmente,

41 Conversa pessoal, 13 setembro de 2010, Santo Amaro da Purificação.

42 “Composers acquire characteristics of style by listening to the music of the past or present and by obser- ving the musical conventions of their time”.

como no caso de Guda, ou intuitivamente, já que a performance musical reflete os símbolos de seu contexto cultural.