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Outro obstáculo para a pesquisa histórica de formas musicais brasileiras é, como tematizado no capítulo “Contexto histórico e social”, sua terminologia. Assim como “batuque”, também tango, maxixe, cateretê, lundu, entre outras denominações, são termos que parecem preceder o uso do termo “samba” na designação de expressões musicais populares. Note-se que essa precedência não significa necessariamente a inexistência do nome “samba” em períodos ante- riores, e sim sua ausência nas fontes de que se tem conhecimento. Talvez os sambadores e sambistas usassem o termo “samba” há séculos, sendo esse tar- diamente empregado apenas por seus observadores, que antes o denominavam batuque, batucada, maxixe, lundu etc. Além disso, os próprios músicos referem- -se às suas formas musicais de diversas maneiras, como um exemplo de João da Baiana mostrará adiante.

Além da denominação empregada, o próprio conceito de gênero musical pode causar confusões. O termo é muitas vezes compreendido como um conceito fe- chado, assumindo que uma música só pode ser classificada de uma determinada maneira. Contudo, gêneros musicais devem ser entendidos como conceitos aber- tos, não sendo fixos, nem admitindo definições absolutamente precisas e sendo essencialmente contestáveis. (GOEHR, 1992) Afinal, a classificação estilística é subjetiva (LAKOFF 1987; MEYER, L., 1996): o que para uns é samba, para outros pode ser identificado como pagode, por exemplo.

Gravado em 1917 pelo cantor Bahiano e sendo composição atribuída a Don- ga, “Pelo Telefone” é considerado o primeiro registro sonoro de samba de gran- de sucesso. Em primeiro lugar, ela é reconhecida como samba porque assim foi definida na publicação de sua partitura em 1916 e na narração introdutória da gravação: “samba carnavalesco”. Em segundo lugar, outras músicas já tinham sido gravadas sob a denominação de samba, sendo a primeira uma peça para pia- no solo, “Brasilianas”, gravada entre 1910 e 1912. (SIQUEIRA, 1977) “Pelo Tele- fone” não é, pois, a primeira gravação de samba, mas a primeira significativa, já que marca “a entrada do samba na música popular”. (SANDRONI, 2001a, p. 130) Além disso, outras gravações podem ser sambas designados como maxixes, por exemplo. O que define o gênero musical não é a denominação dada a uma música específica, mas sim um conjunto de estruturas e símbolos musicais ali inerentes, que será reconhecido dentro de seu contexto cultural como perten- cente a um determinado grupo. (FABBRI, 1981, 1982; MEYER, L., 1996) Por isso, as fontes do samba devem ultrapassar a busca exclusiva por fenômenos intitulados

“samba”, abrangendo informações de expressões musicais que demonstram re- lações com ele.

Para uma tentativa de reconstituição do passado musical do Rio de Janeiro é necessária, assim, uma pluralidade de fontes e métodos. (PINTO, 2011) Dentre elas, a pesquisa etnomusicológica na região considerada sua fonte, o Recônca- vo Baiano, se provará significativa ao longo desse capítulo, já que “na prática musical atual do Recôncavo Baiano se vivencia aquela cultura fundamentada na memória, que se fez presente até a metade do século XX na performance do samba urbano”142. (PINTO, 2011, p. 62, tradução nossa) Princípios formais, es-

truturas musicais e coreográficas se mostram como documentos indispensáveis da memória cultural.

A fim de evitar uma interpretação literal dos resultados e questionamentos a serem apresentados aqui, parece importante esclarecer certas premissas. Práticas musicais, independente de serem transmitidas com o auxílio de partituras – como no caso da música erudita europeia –, de gravações – como na música popular –, ou exclusivamente por via oral – como na música tradicional –, se tratam sempre de expressões de conhecimentos adquiridos pela experiência social dos seres humanos (BOURDIEU, 1980), de processos dinâmicos em constante mudança e adaptação de acordo com o contexto em que são comunicados durante sua performance. (GRAEFF, 2014) Sendo assim, “estruturas musicais” não devem ser interpretadas como estáticas, mas como constantes flexíveis. Como veremos nos exemplos musicais, nenhum deles é idêntico ao outro, mas obedecem de maneira individualizada a certas regras – igualmente flexíveis, como as regras de um jogo143 – melódicas, rítmicas ou mesmo formais.

Tão pouco estáticas são tradições orais como o samba de roda, muitas vezes interpretadas sob um viés evolucionista que as considera “primitivas”, “ori- ginais”, “raízes” de algo que teria evoluído a partir delas – no caso, o samba carioca e outros gêneros populares brasileiros. Ambas as práticas se desenvol- vem de maneira própria e de acordo com seus contextos sociais. Dessa forma, baseiam-se igualmente em modos de transmissão próprios, sendo o samba ca- rioca muito mais caracterizado por “práticas inscritas” (CONNERTON, 1989)

142 “In der aktuellen Musikpraxis des Recôncavo Baiano lässt sich jene musikalische Erinnerungskultu erleben, wie sie bis Mitte des 20. Jahrhunderts durchaus auch in der Darbientung des urbanen Samba präsent werden konnte”.

143 Para se “saber jogar” de acordo com essas regras, os seres humanos são dotados de um senso prático (Bourdieu 1980), adquirido através de suas experiências no grupo social em questão, através de seu habitus (Bourdieu 1972).

do que as tradições musicais do Recôncavo da Bahia, transmitidas predomi- nantemente, ainda que cada vez menos, através de “práticas incorporadas”. (CONNERTON, 1989)

Paul Connerton (1989) diferencia ambas as práticas como dois modos distin- tos de se acessar a memória. Enquanto as práticas incorporadas baseiam-se no conhecimento corporal – tudo o que foi aprendido através de mimesis; a repetida observação e imitação de modelos –, a prática inscrita busca justamente inscre- ver o conhecimento em algum lugar – textos, imagens, gravações –, para que ele possa ser acessado a qualquer hora, por qualquer indivíduo. No momento em que um conhecimento é fixado, ele não precisa mais ser constantemente repetido para ser relembrado, representando ao mesmo tempo apenas um frag- mento de um conhecimento muito mais abrangente.144 Por conseguinte, “quando

as memórias de uma cultura começam a ser transmitidas predominantemente através da reprodução de suas inscrições em vez de suas narrativas ‘vivas’, a improvisação torna-se cada vez mais difícil e a inovação é institucionalizada”.145

(CONNERTON, 1989, p. 75, tradução nossa)

Consequentemente, formas de tradição oral como o samba de roda tendem a ser mais constantes, manter uma continuidade maior com o passado, enquanto que formas de expressão da Modernidade são tipicamente marcadas por “revo- luções, rupturas, incisões e hiatos”.146 (ASSMANN, 1999, p. 67, tradução nossa)

Tais rupturas é que aparentemente afastam o tradicional samba do Recôncavo da Bahia do moderno samba carioca, que foi rápida e vastamente estilizado, sobretudo através da introdução da indústria fonográfica no início do século XX.

Revisão dos aspectos rítmicos africanos