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3 Procedimentos metodológicos

3.1 Epistemologia Qualitativa

A Epistemologia Qualitativa foi desenvolvida por González Rey (1997, 2002, 2005a) a partir de suas reflexões sobre o processo de construção do conhecimento, levando em consideração a subjetividade do indivíduo.

A Epistemologia Qualitativa foi construída com o objetivo de atender às demandas de pesquisas que têm como objeto de pesquisa a subjetividade humana (MITJÁNS MARTINEZ, 2014). Assim, a princípio, a Epistemologia Qualitativa é concebida no escopo da pesquisa que tem como referencial teórico-epistemológico a Teoria da Subjetividade de Fernando González Rey. Essa abordagem metodológica traz como foco a subjetividade das pessoas, seja ela participante da pesquisa ou pesquisador. Logo o pesquisador faz parte do contexto investigativo, pois é sujeito crítico e reflexivo em relação à realidade que observa e analisa. Nesse sentido, González Rey (2005b) destaca o caráter construtivo-interpretativo da pesquisa: Quando afirmamos o caráter construtivo-interpretativo do conhecimento, desejamos enfatizar que o conhecimento é uma construção, uma produção humana, e não algo que está pronto para conhecer uma realidade ordenada de acordo com categorias universais do conhecimento (GONZÁLEZ REY, 2005b, p. 6).

Por isso que, segundo o autor, é complicado na metodologia falar em “coleta de dados”, por isso fala-se na produção de informações para construção teórica. Segundo González Rey (2005b), a Epistemologia Qualitativa concretiza-se em três princípios: o processo de produção de conhecimento como um processo construtivo-interpretativo; o caráter dialógico do processo de produção de conhecimento; o singular como espaço legítimo para o processo de produção de conhecimento científico.

3.1.1 Processo de produção de conhecimento como um processo construtivo- interpretativo

O pesquisador faz parte da pesquisa, em especial quando seu objeto envolve os processos de aprendizagem, numa estreita relação com o participante, logo o processo de interpretação e construção de hipóteses é feito pelo pesquisador a partir da base teórica escolhida e do trabalho realizado em campo. Assim, “o pesquisador e o participante da pesquisa devem se tornar agentes reflexivos emocionalmente nela envolvidos e, nesse percurso, o diálogo favorece também a emergência do sujeito” (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017, p. 75). A emergência do sujeito se dá tanto por parte do pesquisador, por meio de suas reflexões teóricas que permitirá a construção de um modelo teórico, quanto por parte do participante, no qual o diálogo com o pesquisador aparece como gerador de novas produções subjetivas por parte desse. Nesta concepção o pesquisador tem um papel central no processo de construção teórica, destacando o caráter ativo e criativo do pesquisador no processo de construção de conhecimento (GONZÁLEZ REY, 2005b).

A construção do modelo teórico se dá no caráter interpretativo-construtivo da pesquisa, mas também na capacidade teórica, criativa subjetiva do pesquisador. Para González Rey e Mitjáns Martínez (2017, p. 90)

O modelo teórico expressa as ideias e construções do pesquisador que surgem no trabalho de campo e sobre as quais o pesquisador se orienta para participar ativamente no decorrer do próprio trabalho de campo e das novas construções que irá desenvolvendo nesse processo.

Nesta perspectiva Mitjáns Martínez (2014, p. 64) destaca que “o conceito de modelo teórico, dessa forma, adquire um significado particular em correspondência com a visão do autor, de que a ciência se expressa em teorias, em sistemas conceituais elaborados para dar inteligibilidade aos fenômenos com os quais os cientistas se deparam”. O pesquisador dá significado à realidade vista e vivenciada, pois o “acesso ao real é sempre parcial e limitado a partir de nossas práticas” (GONZÁLEZ REY, 2005b, p. 5). Logo é o pesquisador, na emergência do sujeito, que dá significado à realidade, que é seu campo de análise, por isso as informações são construídas, já que é o investigador quem dá significado a essas informações. Dentre muitos outros elementos, a partir dos conceitos que o pesquisador possui e assume para compreender e explicar os fenômenos, no caso, os processos educativos e a complexa atividade psicológica que é a aprendizagem humana. Nessa direção, González Rey (2005b) cria o conceito de “zona de sentido”, que seriam espaços de inteligibilidade que se

produzem na pesquisa científica. Os espaços de integibilidade permitem a produção de novos conhecimentos, possibilitando uma reflexão sobre o já conhecido e assim gerar novos significados no real e consequentemente novos conhecimentos e posições teóricas. Ou seja, para um mesmo fenômeno, dois pesquisadores podem ter produções teóricas distintas em função das zonas de sentido produzidas por cada um, no qual assumimos a dimensão subjetiva na produção científica e a diversidade na produção acadêmica, também em função da constituição das zonas de sentido que é tecida no próprio processo investigativo e de produção analítica.

Nesse sentido, destacamos a importância da criatividade do pesquisador, associada ao rigor interpretativo e analítico. A Epistemologia Qualitativa, tendo como base esse princípio, permite a criação, que tem como base as vivências do pesquisador, incluindo um amplo arsenal de teorias já produzidas. A construção teórica está em constante elaboração no processo de trabalho de campo, assim como nas descrições, interpretações e análises, pois os conhecimentos do pesquisador permitem a produção de sentidos subjetivos que aparecem no ato de reflexão sobre a realidade estudada. Como destaca Vigotski (2009a), quanto maior o número de vivências, experiências, conhecimentos, maior a possibilidade de imaginação do indivíduo e a imaginação faz parte do processo de criação. Então, é importante ressaltar que o caráter construtivo-interpretativo precede de conhecimentos teóricos. Assim pressupomos que pesquisar é criar, criação subjetiva, de valor local, temporal e validade cultural.

Queremos destacar, dentro desse princípio, a importância de um espaço de interpretação da realidade e de construção teórica, pois a simples descrição da realidade não dá conta da subjetividade humana. Os elementos de análise não são dados, mas produzidos por um processo interpretativo que implica produção teórica. A Epistemologia Qualitativa nos dá ferramentas importantes para essa construção teórica, o campo de trabalho investigativo e o teórico são inseparáveis, pois o momento de campo, ao passar pelo processo interpretativo do pesquisador, se torna teoria. É a partir desse olhar interpretativo do pesquisador que se produzirá indicadores e posteriormente hipóteses de pesquisa.

Destacamos que “a afirmação do caráter teórico desta proposta não exclui o empírico, nem o considera em um lugar secundário, mas sim o compreende como um momento inseparável do processo de produção teórica” (GONZÁLEZ REY, 2005b, p. 8-9).

3.1.2 O caráter dialógico do processo de produção do conhecimento

Dentro desse princípio destaca-se a importância do diálogo entre pesquisador e os participantes da pesquisa. Assim, o pesquisador não é neutro, ao contrário, passa a ser ele mesmo participante da pesquisa. É no espaço dialógico que será possível a expressão da subjetividade pelos participantes e pesquisador. Logo, tendo como objeto de pesquisa a subjetividade, é importante ter como elemento central no trabalho de campo o diálogo. Na Epistemologia Qualitativa a importância dos diálogos com os participantes de pesquisa

radica em que, na sua condição como sujeitos implicados na pesquisa, eles possam se expressar no espaço dialógico que se gera em toda a sua complexidade subjetiva, proporcionando, assim, informações que possam ser relevantes para o processo construtivo-interpretativo desenvolvido pelo pesquisador (MITJÁNS MARTÍNEZ, 2014, p. 65).

É por meio do diálogo que o pesquisador observará a expressão da subjetividade dos participantes da pesquisa. Aqui os instrumentos de pesquisa não são objetos de verificação, mas sim facilitadores, para que seja possível conhecermos as configurações subjetivas dos indivíduos. É importante destacarmos que esta comunicação não é baseada na Epistemologia da Resposta (GONZÁLEZ REY, 2005b, p. 14), mas sim em um

espaço privilegiado em que o sujeito se inspira em suas diferentes formas de expressão simbólica, todas as quais serão vias para estudar sua subjetividade e a forma como o universo de suas condições sociais objetivas aparece constituído no mesmo nível.

Assim, o espaço dialógico se constitui como espaço legítimo para produção de informação e trabalho de análise, já que é nesse ambiente que se dará a expressão da subjetividade em toda a sua complexidade. Espaço em que há tensionamento, e o outro se estabelece como recurso de maior emergência de expressão da subjetividade. As respostas buscadas não são frases nem palavras, mas processos dinâmicos e complexos, a partir dos quais o pesquisador busca desvelar uma coluna vertebral entre as lógicas intrínsecas e implícitas.

O diálogo atual com o indivíduo abre um caminho imprevisível e, pela sua espontaneidade, improvisação e a constante presença do outro, torna-se fonte essencial para a emergência da subjetividade no seu curso. O diálogo sempre gera sentidos subjetivos, cuja construção teórica é um fio condutor que orienta o posicionamento ativo dos indivíduos em diálogo. A emergência do diálogo é sempre um indicador importante de processos de subjetivação referidos ao outro que dele participa (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017, p. 21).

É nesse caminho que o diálogo permite a emergência dos sujeito, por parte do pesquisador e do participante, pois permite processos reflexivos que “favorece o amadurecimento de expressões subjetivamente configuradas por diferentes experiências de vida, as quais vão aparecendo no curso conversacional do trabalho de investigação” (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017, p. 88).

3.1.3 O singular como espaço legítimo para o processo de produção de conhecimento científico

Aqui o singular destaca-se como parte importante no processo de construção teórica. Ou seja, o estudo de subjetividades assumidas como únicas são relevantes para o processo de compreensão da subjetividade humana.

Nessa concepção epistemológica, a generalização não é de caráter empírico- indutivo, mas de caráter teórico, no sentido de que as construções mais gerais, elaboradas a partir de situações singulares, cobram significação para avançar na compreensão do problema de estudo, permitindo o desenvolvimento progressivo do modelo teórico em andamento (MITJÁNS MARTÍNEZ, 2014, p. 66)

Ou seja, no singular temos uma fonte de informação que toma significado em um modelo teórico que traça um caminho para o pesquisador. Assim,

o valor singular está estreitamente relacionado a uma nova compreensão acerca do teórico, no sentido de que a legitimação da informação proveniente do caso singular se dá através do modelo teórico que o pesquisador vai desenvolvendo no curso da pesquisa (GONZÁLEZ REY, 2005b, p.11).

Destaca-se, assim, a importância do estudo singular, analisando profundamente a subjetividade de indivíduos únicos, mas que no diálogo podem emergir como sujeitos que nos trazem informações importantes na construção teórica.

A singularidade adquiriu status epistemológico na Epistemologia Qualitativa, para a qual o singular não representava unicidade, mas informação diferenciada que se fundamenta no caso específico que toma significado em um modelo teórico que o transcende. A congruência e continuidade das construções interpretativas do modelo teórico era o que legitimava a informação singular, pois representava sua capacidade explicativa em relação à questão estudada. (GONZÁLEZ REY; MITJÁNS MARTÍNEZ, 2017, p. 29)

Assim, mais do que mostrar a unicidade de cada indivíduo, o singular permite a construção de um modelo teórico pela qualidade da informação construída no trabalho de campo. No contexto da Epistemologia Qualitativa o que se torna relevante não é a quantidade

de participantes ou informações em si, mas a qualidade da informação provocada pelo constante diálogo entre pesquisador e participante de pesquisa.