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2 ATIVIDADE EM FOCO E APORTES CONCEITUAIS

2.2 A ergologia

2.2.3 A ergologia e a teoria freireana

Ergologia e Freire se encontram em muitos de seus princípios de entendimentos e propósitos em relação ao humano, à vida e ao social, aos valores, ao processo de construção de seus saberes como pontos de reflexão a ele concernentes. Em vias dos encontros de que se participou nesses dois referenciais, por vezes se olhará para estes, demarcando os amálgamas que neles se reconhecem em vista do delineamento desta pesquisa.

Pensando sobre a educação e a aprendizagem e os amálgamas entre Freire e a ergologia, pode-se de saída reafirmar que não é possível transmitir o conhecimento, que o conhecer tem de ser edificado pelo próprio dono de si e que a partilha nas maneiras de edificar entre uns e outros tem a possibilidade de enriquecer o processo que é único de cada um.

Elege-se, aqui, Freire como referencial fundamental quando ele aprofunda em significados essenciais quanto aos saberes necessários à prática educativa. Por meio desses referenciais, construiu-se, nesta tese, a análise dos valores que circulam no LAB1, tendo como eixo de articulação principal a atividade de trabalho docente do professor ZAB.

Inicialmente, serão descritos os fundamentos com que Freire presenteia este trabalho de análise, para logo após se prosseguir, apresentando a fundamentação calcada no referencial teórico e metodológico da didática profissional e nos estudos de Vigotsky.

Para se dizer de Freire na aproximação coerente aos propósitos desta pesquisa, embasou-se na obra Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, em que ele convida a pensar os saberes indispensáveis à prática educativo-crítica, propondo a reflexão sobre o fazer ao professor, para que ele, fazendo, torne-se crítico e ético em relação a si mesmo e à sua atividade de trabalho, ou seja, ser crítico e ético é considerar o conhecer como obra inacabada e que demanda pesquisar sobre o que se sabe e o que não se sabe. Isto se justifica para se fazer uma pedagogia que fomente a esperança de sempre ser possível modificar-se o estado das coisas à volta de cada ser humano, o que chama de inserção no mundo. Quando Freire se remete à educação como uma intervenção, ele está dizendo que:

[...] me refiro tanto à que aspira a mudanças radicais na sociedade, no campo da economia, das relações humanas, da propriedade, do direito ao trabalho, à terra, à educação, à saúde, quanto a que, pelo contrário, reacionariamente pretende imobilizar a História e manter a ordem injusta (FREIRE, 1996, p. 107).

O chamamento ético ao professor proposto por Freire é quando destaca os saberes que o professor deve cultivar em si e nos educandos na prática educativa, a fim de instaurar a autonomia do educando em relação aos saberes, inclusive os saberes sobre si mesmos. Esse

chamamento apoia-se no pressuposto de que o professor somente poderá fazer isso se ele mesmo age em autonomia. Essa busca por autonomia encontra sua inspiração no reconhecer- se como ser inacabado e à procura de ser melhor enquanto rigor metódico e intelectual. Em resumo, essa postura demarca a dimensão histórica e social do professor e do educando, isto é, enfatiza o respeito a ser dado aos saberes com que o aluno chega à escola.

Ser ético é também contrapor-se a “transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico” (FREIRE, 1996, p. 33), caracterizada, assim, como transferência de conhecimento vindo a amesquinhar o caráter formador dessa experiência. O professor é convidado a manter uma relação dialógica com o aluno e com o conhecimento, provocando entendimentos que não são transferidos e sim coparticipados. Para isso a relação teoria e prática têm de ser entendida como encarnada uma na outra, fomentando a reflexão e a construção crítica do aluno e do professor. Por meio disso superam-se medos e inseguranças, bem como se cultiva o gostar de aprender, pois aprender é “construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao risco e à aventura do espírito” (FREIRE, 1996, p. 69).

Essa postura de atuar educativamente está em prol da formação humana com base na consciência crítica do educando dando o testemunho de que se podem alcançar graus crescentes de profundidade na busca do conhecer. O educador deve desenvolver-se como pesquisador com questionamento e argumentação, orientando os educandos a fazerem o mesmo para estudar, compreender e transformar o mundo, sempre procurando contextualizar os conhecimentos com as realidades que se encontram na vida de cada um. O professor faz isso à medida que exerce o pensar certo.

Pensar certo, na definição de Freire, é não ter tanta certeza das próprias certezas, é saber que o ensinar aprender perpassa a pesquisa se desenvolvendo em ciclos gnosiológicos: considerar o conhecimento já existente sobre algo para se alcançar a necessária produção de novos conhecimentos. É uma ferramenta para a abertura de novas possibilidades de conhecer o mundo e nele intervir como ser histórico e social.

Esse pensar certo se realiza na prática educativa quando o professor se aventura a conjugar posturas de autoridade/liberdade, escuta e testemunho. Promove-se a liberdade do educando à medida que o professor tem segurança em seu modo de exercer a prática educativa e, dessa maneira, testemunhar sua autoridade no sentido em que é discorrida por Freire. Essa autoridade docente democrática se revela na “firmeza com que atua, com que decide, com que respeita as liberdades, com que discute suas próprias posições, com que aceita rever-se” (FREIRE, 1996, p. 91). Onde falta essa liberdade, o aluno não pode se

aventurar. Limita-se por demais a curiosidade e a criatividade do aluno. Ter segurança é fazer aflorar a liberdade do aluno para trabalhar essas liberdades e ser livre junto com eles.

Um dos fundamentos para se criar a autonomia é levar o educando a assumir responsabilidades na situação de ensinar aprender, inclusive a responsabilidade de construir a si mesmo, para isso é preciso que o educando se veja diante de decisões. “Ninguém é autônomo primeiro para depois decidir. A autonomia vai se construindo na experiência de várias, inúmeras decisões, que vão sendo tomadas” (FREIRE, 1996, p. 107). Do ponto de vista pedagógico, vê-se como é muito rica a oportunidade que o professor tem de oferecer múltiplas experiências que estimulem o educando a tomar decisões e a assumir responsabilidades. O professor respeita a liberdade do educando à medida que trabalha para a autonomia deste em seus “ensaios de construção da autoridade” (FREIRE, 1996, p. 95).

Na prática educativa democrática, a autoridade e a liberdade em sala de aula se compõem em relação dialética, em tensão mútua: o professor e o aluno lidam com as duas em exercício, com uma se medindo pela outra. Na condição de uma não se sobrepor a outra, em termos da coerência de legitimidade que encontram nas situações onde se dão, surge o respeito consentido entre professor e aluno. Na ruptura dessa condição de respeito consentido, provoca-se a hipertrofia de uma ou da outra, o que leva ao autoritarismo e à libertinagem, ferramentas que servem à usurpação na maneira de dizer da disciplina ergológica.

A liberdade tem o viés do desprendimento do aprender a ser através das relações com o diferente. É saber lidar com as diferenças para se conhecer melhor. É vivenciar, é aprender com as novas experiências sem medo, com a aceitação do outro por inteiro, sem discriminações étnicas, culturais, cognitivas, políticas, enfim toda e qualquer forma de discriminação. Para isso se faz a importância da escuta. Ao escutar aprende-se a se inserir no pensamento daquele que é diferente e a falar com ele. A escuta é exercício de liberdade e testemunho de autoridade consentida do professor.

Nessa lógica, para ser professor, é inevitável colocar-se diante dos alunos e revelar a sua maneira de ser, de pensar politicamente. É prestar seu testemunho e, inevitavelmente, estar sob a apreciação dos educandos. A maneira como os alunos percebem o professor irá determinar seu desempenho em atividade, o que deve constituir uma das preocupações centrais para o professor, isto é, “procurar a aproximação cada vez maior entre o que diz e o que faz, entre o que parece ser e o que realmente está sendo” (FREIRE, 1996, p. 96). Em resumo, pode-se pensar que ser ético está no “fazer justiça, de não falhar à verdade” (FREIRE, 1996, p. 98), e demonstrar isso por seu testemunho.

Como relações dialógicas entre Freire e a ergologia, de uma maneira breve, pode-se comentar: a potente interface entre o histórico e o humano evidencia-se na necessidade de compreender, construir, transformar o mundo e a si mesmo. A abertura de possibilidades postas nessas relações remete à responsabilidade sobre o que conhecer e como conhecer para se construírem essas múltiplas possibilidades de mundo e de si mesmo.

O professor e aluno participam do mesmo processo de construção da aprendizagem. Na verdade, ensinar e aprender faz parte de um mesmo processo. Sendo assim, é preciso humildade. Não é porque o professor domine conhecimentos que o educando ainda não domina que ele vai se sentir superior, melhor ou acima do aluno. Humildade para entender que "Não há docência sem discência [...]" (FREIRE, 1996, p. 23). Professor e aluno mantêm sua distinção sem, contudo, reduzirem-se a ser objeto um do outro. "Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender" (FREIRE, 1996, p. 23), em um processo educativo em que ensinar e aprender se compõem.