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Escola como espaço (de aquisição) do conhecimento

3 A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

6.1 Escola como espaço (de aquisição) do conhecimento

Nas sociedades primitivas, a escola não existia, portanto, cabia à família e à comunidade próxima a educação da criança. A elas competia transmitir os conhecimentos necessários à sua sobrevivência no grupo social ao qual pertencia. Em sociedades complexas, como a nossa, a função educacional deixa de ser realizada apenas no âmbito da família e grupo próximo. Para participar da vida social nas sociedades complexas é fundamental a apropriação, por parte dos indivíduos, dos conhecimentos construídos pela humanidade. A transmissão desses conhecimentos é a função precípua da escola e, como salienta Vygotsky (1984), razão pela qual essa instituição existe. (MACHADO, 2011, p. 144)

A reflexão acima permite pensar a escola sob a ótica de sua função. Função esta compreendida pelos alunos, na medida em que eles a representam como espaço privilegiado para a aquisição dos conhecimentos socialmente valorizados. Destacam o ler e o escrever, atividades relacionadas à disciplina de Português, mas também destacam seu apreço por outras disciplinas:

Eu adoro a escola. Para mim a escola é um lugar especial, um lugar para aprender ler e escrever. Meus pais dizem que eu sou uma ótima aluna e inteligente. (PC, AL24)

Eu gosto de ler. Eu gosto da educação física. Eu gosto de aprender português e história. Eu não gosto de ficar sem educação física. (PB, AL10)

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[...] Na aula a minha matéria favorita é Português, História, e Ciências. No português eu aprendo mais a escrever melhor. E na da história eu gosto porque eu aprendo as histórias do Brasil em ciência eu gosto de estudar os planetas por isso que eu gosto muito da escola. (PD, AL5)

Depreendem-se, destas referências, a importância e o gosto de ler e escrever, bem como a preferência por esta ou aquela disciplina, além da valorização da instituição escolar como transmissora de conhecimentos e também como fonte de motivação para aprender. Outros trabalhos demonstraram resultados semelhantes, como o estudo de Cruz (1997, s/n): “Entre os sentimentos positivos despertados pela ida à escola, destacam-se a esperança de lá aprender coisas importantes (especialmente escrever e ler) e, dessa forma, "num sê burro", como diz o Flávio.”

Assim, nota-se que, embora com as dificuldades amplamente conhecidas tanto por parte dos usuários, de suas famílias, dos profissionais que ali trabalham bem como da comunidade científica, a escola pública dos anos iniciais do ensino fundamental ainda parece conter alunos que a valorizam, que são interessados e motivados para aprender, a despeito das representações de professores e outros profissionais da educação a respeito da desvalorização, do descrédito e desmotivação dos alunos. Neste sentido, Barra Nova (2011) expõe resultados que também apontam a valorização da escola e a motivação para aprender, por parte dos alunos:

Consideramos este dado valioso, uma vez que ele se contrapõe ao que algumas vezes é especulado sobre as crianças por seus professores, como evidenciam os estudos de Sá & cols. (1990) Maurício (2001) e Oliveira & cols. (2004), em que os docentes lhes atribuem desinteresse pela escola e falta de motivação para aprender os conteúdos acadêmicos, justificando suas presenças nas instituições escolares pelo interesse na alimentação e às exigências relativas ao Programa Bolsa Família (que condiciona o benefício à frequência da criança à escola). Os estudos de Machado & Aniceto (2008, 2010) também mostraram que para os professores os alunos não possuem interesse na aprendizagem. (p.139-140)

No entanto, o que se observa na literatura, é que este quadro se reverte com o passar do tempo. Teixeira e Flores (2010, p. 128) verificaram que grande parte dos alunos "aponta o primeiro ciclo como fase de "ouro" de seu percurso escolar,

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destacando a figura do docente como primeiro mentor.” O trabalho de Cruz (1997) também apresenta dados que mostram o quanto as representações dos alunos acerca da escola evoluem negativamente com o passar do tempo. O que é possível compreender a partir destes resultados?

Os resultados do IDEB, a despeito das críticas sobre sua natureza bem como sobre o uso que se faz destes resultados, podem servir para ancorar reflexões sobre tal situação, dado que mostram que, entre os anos iniciais, tanto na rede pública brasileira quanto na rede privada, estão os melhores resultados em comparação aos anos finais do ensino fundamental. Os resultados vão caindo à medida que a escolarização avança. Nesta direção, o ensino médio é o que tem os piores resultados23. Esta mesma situação foi observada na escola envolvida, pois os dados desta pesquisa sugerem que a escola ainda é valorizada pelos alunos dos anos iniciais e que estes são interessados e motivados em aprender. Seus resultados do IDEB, embora ainda baixos, são maiores do que os dos alunos dos anos finais do ensino fundamental, fenômeno observado tanto em escolas públicas quanto privadas. Investigar esse processo, suas relações e efeitos, portanto, faz-se necessário.

A valorização e a motivação escolar parecem, portanto, possuir relação de influência sobre o desempenho. Essa relação, no entanto, é apenas uma sugestão que deve ser investigada em estudos posteriores.

Esses dados são importantes pois, a partir deles, pode-se problematizar o seguinte ponto: por que nos anos iniciais do ensino fundamental a escola ainda é mais valorizada, o aluno mais motivado para aprender, e seu desempenho um pouco mais alto e com o passar do tempo esse quadro se reverte, conforme pode-se verificar em inúmeras pesquisas e mesmo em resultados de desempenho dos alunos, como os do IDEB? A partir disso, nota-se que é preciso investigar e problematizar o que acontece nas etapas seguintes da escolarização, ao longo da trajetória escolar de um estudante, para que, ao final de seus estudos no nível básico, haja tanto desinteresse, desmotivação e baixo rendimento.

No campo das representações sociais, é interessante observar o que não é dito, o que é silenciado ou mascarado, pois estas dinâmicas estão a serviço de reforçar esta

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ou aquela representação. O tema do fracasso escolar, por exemplo, é pouquíssimo explorado nas produções coletadas nesta pesquisa. Há uma distorção feita pelos alunos na forma como eles percebem os processos de ensino e aprendizagem na medida em que as crianças se silenciam sobre um tema sobre o qual conhecem bem e observam diariamente: na própria turma, há ainda alunos em processo de alfabetização e outros que, embora alfabetizados, possuem baixo rendimento. No entanto, um registro feito em um texto livre aponta ricos indícios sobre este tema, além de apresentar uma visão sensível sobre o mesmo:

O aluno

O aluno é inteligente mas tem dificuldade mas não é burro aprende logo [...]

alguns até tiram nota baixa na prova o outro tira nota boa esse é o aluno [...] (PD, AL13)

Numa tentativa de analisar a construção das representações e, portanto, dos sentidos em significados que emergem deste texto, é preciso atentar, logo na primeira linha, para a generalização que faz a aluna: “o aluno é inteligente”. Aqui ela não fala de um aluno específico, mas da categoria aluno. Moscovici (2011) afirma que, ao conferir atributos, fazemos particularizações ou generalizações acerca duma característica do objeto a fim de reforçar determinada representação. Sobre este processo, ele argumenta:

De fato, a tendência para classificar, seja pela generalização, ou pela particularização, não é, de nenhum modo, uma escolha puramente intelectual, mas reflete uma atitude específica para com o objeto, um desejo de defini-lo como normal ou aberrante. É isso que está em jogo em todas as classificações de coisas não familiares – a necessidade de defini-las como conformes, ou divergentes, da norma. (p. 65)

A partir do exposto, é possível inferir, considerando toda a argumentação e defesa que a aluna faz do aluno, objeto central de seu texto, que sua generalização é para defini-lo como capaz, como alguém que pode, a despeito das dificuldades que surgem no caminho para aprender. Sua tentativa é demonstrar que suas dificuldades não são aberrantes, mas fazem parte do processo. Ora, confiar que a criança é capaz

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de aprender é um pressuposto do trabalho educativo, embora, na prática, possam ser observadas atitudes e práticas que divergem deste princípio.

O texto prossegue e a aluna afirma que o aluno “tem dificuldade mas não é burro”, reforçando, assim, a questão das representações sobre os alunos: ter dificuldade faz parte do processo educativo, não é um atributo dos “burros” ou incapazes, embora, pela estrutura argumentativa de seu texto, a aluna compreenda que algumas pessoas, em um claro processo de ancoragem, nomeiem um aluno com dificuldades de aprendizagem como “burro”.

Freitas (2003) aponta que a escola não é uma ilha isolada da sociedade e, portanto, “não pode fazer tudo, independentemente das condições desta mesma sociedade.” (p. 17-18). Assim, apresentando uma série de dados, documentos e de resultados de pesquisas, ele aponta os limites da escola na sociedade capitalista, e põe em xeque sua função de ensinar tudo a todos, como pregam os liberais:

Este é o sonho liberal: independentemente do nível socioeconômico (ou, como se diz, descontados os efeitos do nível socioeconômico) todos os alunos deveriam aprender em um nível de domínio elevado. Os socialistas não discordarão do fato de que a escola deva ensinar todos os alunos em um nível elevado de domínio, mas atacarão o problema por outro ângulo – pela necessidade da eliminação dos desníveis socioeconômicos e da distribuição do capital cultural e social, o que supõe discutir como se acumulam outras formas de capital (o econômico, por exemplo). (FREITAS, 2003, p. 17-18)

A lógica do sucesso e meritocracia escolar, sob a qual a escola contemporânea está assentada, é posta em xeque quando a aluna aponta para a questão da avaliação: “Alguns tiram nota baixa na prova, o outro tira nota boa”, mas vai além, parecendo querer explicitar: os alunos não aprendem todos no mesmo ritmo! Apesar dos inúmeros escritos sobre este tema, as crianças ainda precisam explicitar e dizer isso: “esse é o aluno”, ou seja: “o aluno é assim, não aprendemos todos no mesmo ritmo, ao mesmo tempo... mas isso não significa que somos burros!”

Nesta direção, pode-se depreender uma representação sobre o próprio ato de aprender: o aprender é gradual e exige a atitude intencional de ensino, por parte do professor:

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Eu espero no 5º ano que eu aprenda bastante matemática, porque eu consigo fazer continha de dividir e também continha de menos, eu espero que eu aprenda até dezembro, que a professora Carina ensine para turma toda que também aprenda o que estão precisando. (PA, AL12)

A escola tem uma professora muito legal por que a professora ensina a gente para nós aprender para nós entender, etc. (PD, AL31)

Eu quero aprender a ler. (PA, AL29)

Eu queria aprender português em letra de mão. (PA, AL30)

A ação intencional do professor faz-se necessária no processo de aprender algo que ainda não se sabe, como no caso do aluno que, no 5º ano, não sabe – e deseja – aprender a ler, conforme registrado acima, e do outro que expressa que não sabe – mas quer aprender - registrar em letra cursiva. Também é de vital importância essa ação do professor para aqueles que sabem um pouco, mas compreendem que é preciso avançar, como no caso do aluno que afirma conseguir fazer algumas “continhas”, mas que precisa progredir na disciplina de Matemática.

A realidade heterogênea da sala de aula, abarcando desde alunos em processo de alfabetização até aqueles que já conseguem “fazer continha de dividir” (PA, AL12), desmascara a representação idealizada e prototípica de uma sala homogênea, onde todos estão no mesmo nível e aprendem no mesmo ritmo.

Aqui já se pode vislumbrar um apontamento na direção da reorganização escolar, pois somente mudanças efetivas nas práticas escolares poderão levar ao respeito e ao atendimento dos diferentes ritmos de aprendizagem. Produções das crianças que evocam uma nova escola, reorganizada, diferente desta que está posta, serão discutidas em um próximo tópico.

Ainda sobre esta dimensão da aquisição do conhecimento, vale discutir o como se dá este processo, na visão das crianças. Algumas produções sinalizam representações de uma escola tradicional, dentre as quais ganha destaque o acróstico do aluno feito em seu caderno de texto livre:

99 Estudar Sentar Coordenação Olhar Ler Aprender.

É isso que eu penso sobre a escola. (PD, AL8)

Representações de uma escola assentada num modelo tradicional de ensino, e focada na sala de aula, onde cabe ao professor falar e ao aluno “ouvir”, “olhar” e “aprender”, são as mais difundidas na sociedade, sendo veiculadas e reforçadas pela mídia, bem como pelas próprias escolas que, em muitas práticas, as confirmam. A imagem de sala de aula, por exemplo, em quase todo o mundo, é a mesma: carteiras enfileiradas, lousa, mesa do professor. Dussel e Caruso (2003, p.32) apontam:

Se uma pessoa pergunta espontaneamente na rua o que é uma escola, pode receber muitas respostas. Em algumas delas, pode aparecer a sala dos professores, a biblioteca, os pátios; em outras, a diretora, o porteiro. Se pensarmos em uma escola rural, talvez a figura da diretora seja ao mesmo tempo a da professora, o pátio talvez seja o campo ao redor e a biblioteca, uma reivindicação pendente há anos. Entretanto, podemos quase garantir que em todas as respostas aparecerá um lugar que todos conhecemos e que surge como o núcleo, o elemento insubstituível da escola: a sala de aula. [...] Entretanto, a sala de aula como a conhecemos hoje não tem nada de “natural”. [...] aquilo que conhecemos como sala de aula sofreu modificações, tanto em sua estrutura material (na organização do espaço, na escolha dos locais, no mobiliário e no instrumental pedagógico) como na estrutura de comunicação (quem fala, onde se situa, o fluxo das comunicações).

A despeito do modelo atual já ter sido questionado e criticado, tanto em terras brasileiras bem como além-mar (FREIRE 2005; FREINET, 2001, apenas para citar alguns), a organização da escola carrega ainda hoje muitos traços desde seu surgimento para as classes populares – não por acaso, período de expansão industrial, o qual requeria um certo tipo de homem para trabalhar nas fábricas - escolas centradas no controle do tempo, dos movimentos e corpos, e inspirada nos princípios de gestão da indústria/empresa (ENGUITA, 1989). Embora haja algo novo no cenário, como a implementação dos ciclos em oposição à organização seriada, adiante serão apresentadas as contradições e limitações ainda enfrentadas por este modelo, também

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apontadas pelos alunos. Observam-se igualmente atitudes, por vezes isoladas, de um ou outro professor, uma ou outra escola, que, embora de pequeno alcance, são importantes para o processo de resistência ao modelo tradicional e seriado, uma vez que introduzem novos repertórios de organização de escola às pessoas, que podem, assim, formar novas representações.

Outros modos de aprender, outras formas de organização do trabalho e da escola podem levar à construção de novas representações:

Eu gosto muito quando a professora Carina forma a roda por que a gente tem a oportunidade de compartilhar nossas ideias com a turma toda. (PA, AL24, grifo nosso)

[...] e [gosto] quando a professora deixa a gente trabalhar ao ar livre e de algumas lições. (PC, AL15, grifo nosso)

Gosto de [...] aprender e ensinar o que sei. (PC, AL10, grifo nosso)

Em consonância com estes depoimentos, observa-se que, embora haja (predomine?) a representação da escola assentada sob o modelo tradicional, há também referências a diferentes modos de participação e organização dos trabalhos na escola, os quais supõem um aluno (inter)ativo e, em muitos depoimentos, os alunos deixam claro que não centralizam a sala de aula como lugar sagrado para seu aprendizado.

Também, na contramão da representação tradicional de escola, o depoimento de uma aluna marca sua concepção solidária: “na escola todos devem se ajudar” (PA, AL12) – a despeito da lógica de mercado que invade a sociedade e os sistemas educacionais que, cada vez mais, promove o individualismo e a competitividade.

Freinet (2001), Vigotski (1998) e tantos outros ressaltam a importância da cooperação, da ajuda de alguém mais velho ou mais experiente em um determinado assunto, no processo de aprendizagem. No entanto, é preciso criar condições de cooperação, propor atividades e orientar os alunos para essa prática e não esperar que ela 'brote' espontaneamente no espaço escolar.

É possível perceber claramente, nas produções analisadas, que os alunos também elegem as atividades desenvolvidas fora da escola, a exemplo dos passeios,

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como muito importantes em seu processo de desenvolvimento e aprendizagem:

No ano passado nós fomos ao Bosque dos Jequitibás e eu gostei que depois nós escrevemos um texto sobre tudo que existe lá dentro, sobre a natureza. (PA, AL16)

Os passeios ou estudos do meio são supervalorizados pelas crianças, que enxergam neles possibilidades reais de aprendizado. As crianças não centralizam o aprendizado na sala de aula, embora esta seja uma característica de nosso modelo atual de ensino, o qual não centra sua atuação no aprender com o mundo real, com a natureza e a sociedade e, ao contrário, está centrado no isolamento e artificialismo, onde os alunos ficam “enclausurados” nas salas de aula (FREITAS, 2003).

As crianças, portanto, apreciam e sugerem mudanças nas práticas e organização da escola, as quais confrontam com o modelo tradicional de ensino. Este tema será melhor discutido em um tópico adiante. Por ora, fica a questão das mudanças nas representações. A tensão entre duas representações - uma do modelo tradicional, centrado na transmissão do conhecimento pelo professor no momento da aula expositiva e a representação de uma escola que considere as múltiplas formas de aprender - parecem estar em confronto. Tal processo, se percebido e valorizado pelos responsáveis por implementar as práticas e políticas educacionais, poderá gerar novas atitudes e práticas dentro da escola, a fim de torná-la mais justa e inclusiva.