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3 A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

6.3 Escola como espaço das relações

As análises sugerem que as crianças representam a escola como um local privilegiado tanto para o desenvolvimento intelectual, conforme foi apresentado, quanto social, no sentido da valorização das relações que ali ocorrem. Relações que se dão com os pares, os colegas, e com os professores.

A relação com os amigos ganhou destaque em todo o estudo. São muitas as referências aos amigos, conforme pode-se constatar no Apêndice E. Muitas também foram as dimensões abordadas para se fazer referência aos amigos: explicitar quem

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são eles, o que qualifica a amizade, dizer o quanto se sofre com a ausência destes quando os mesmos faltam ou quando há desentendimentos, sublinhar o quanto é bom estar ao lado dele e que também se pode aprender com ele, numa proposta interativa e dinâmica:

Os meus amigos brincam comigo, e também fazemos lições, e sentamos juntos também. (PA, AL10)

Neste depoimento, ficam lado a lado o prazer de brincar e de aprender, fazer as lições “sentados juntos”. Sobre o brincar com os amigos na escola, separou-se o tópico seguinte apenas para esta questão, pois, dada a força e frequência com que tais elementos apareceram nas produções dos alunos, mereceram um tratamento especial a fim de aprofundar um pouco mais a discussão.

Fica claro que a relação com os amigos nem sempre é harmoniosa; ao contrário, é muitas vezes tensa e os alunos abordaram os conflitos em suas produções.

A escola, por ser um dos únicos espaços públicos do bairro, acaba tornando-se o espaço da convivência, o lugar do encontro.

O fato de a escola ser vista como um espaço de convivência é compreensível: fazer amigos na escola torna-se de vital importância uma vez que, cada vez mais, as crianças das grandes cidades vivem cerceadas dentro de casa devido à violência, ou são privadas da companhia dos pais que cumprem exaustivas horas de trabalho, o que tem causado um sentimento de solidão entre elas (TONUCCI, 2005). Isso, somado ao fato de não haver espaços públicos de socialização no bairro, potencializa a questão. Portanto, o momento escolar torna-se um dos principais lugares de socialização da criança.

Sendo a escola um dos principais espaços de socialização da criança, cabe a pergunta: o que as escolas têm feito a partir disto? Têm as escolas considerado este aspecto como uma oportunidade de trabalho educativo, ou têm ignorado a dimensão das relações? O que o currículo privilegia? A impressão do aluno sobre esta questão não deixa dúvidas:

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O aluno, que valoriza o “fazer amigos”, conforme pode ser observado em sua produção (cf. Apêndice E), neste pequeno trecho revela o que ele percebe da instituição: ela não valoriza o “fazer amigos”, as relações. Só valoriza o “aprender”, o saber catedrático, intelectual. Qual será o impacto, em uma sociedade, do trabalho de escolas que não têm claro, em seus projetos pedagógicos, uma proposta de trabalho articulado entre os saberes e todas as suas dimensões, incluindo a dimensão das relações sociais?

Enquanto seres relacionais, se as escolas não se aprofundarem neste ponto, não estarão formando o cidadão integralmente, como já foi problematizado por diversos estudiosos da questão, dentre eles Henry Wallon (2007). Embora o discurso da educação integral – aqui entendida como aquela que se preocupa em desenvolver as dimensões intelectual, afetiva, motora e social – não seja novidade hoje em dia, como foi à época de Wallon, sua efetiva prática ainda não se percebe em nossas escolas.

Suas contribuições para a educação exigem um repensar do modelo de escola. Mahoney (2000, p. 10), ao analisar as contribuições de Wallon para a educação, coloca que “A relação estreita que une a criança ao seu meio tornou-se uma das ideias centrais da psicologia de Wallon.” A autora destaca a importância e a influência que exercem sobre o desenvolvimento da criança os grupos dos quais ela faz parte, sublinhando a grande influência da escola:

A escola é um desses grupos e sua responsabilidade é muito grande, pois representa, como a família, um instrumento, um recurso indispensável ao desenvolvimento da criança, pois influencia toda a sua personalidade, penetrando em todo o seu cotidiano. Ao entrar na escola, a vida da criança passa a girar principalmente ao redor dela: seus horários, seu lazer, suas amizades, etc.[...] É importante que a escola tome consciência do que ela oferece às crianças como modo de existência, como modo de sentir, como modo de se relacionar com a cultura e com as pessoas: enfim, ela é uma oficina de relacionamentos, de conhecimentos e de movimentos. (MAHONEY, 2000, p.10-11)

Trabalhar a dimensão das relações sociais poderia contribuir para a superação de conflitos, conflitos esses que marcam as relações. A questão das brigas entre os alunos aparece com força. Muitos deles registram que não gostam de brigas, sugerindo uma representação da escola como um espaço harmonioso: "Eu queria que parassem

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as brigas" (PB, AL27) e, no campo das sugestões, um aluno chega a fazer o seguinte apelo:

"Se nós todos trabalharmos unidos sem ofender o colega nós vamos ter uma escola melhor" (PB, AL16)

Os conflitos das crianças pequenas, se não trabalhados e problematizados, podem ser os embriões da violência futura, ressalvando-se que a violência é multideterminada. A extensa literatura acerca da violência escolar não deixa dúvidas: gestores e educadores não podem ignorar esta questão, sob pena de fracassarem em suas metas e projetos.

Nesta rede de relações, a figura do professor também é evocada e marcante. Nas produções, dois aspectos da relação professor-aluno são abordados: a função do professor na relação de ensino propriamente dita e as marcas afetivas positivas ou negativas deixadas nos alunos.

Com relação à função do professor, esta é definida pelo ensino. Vários registros explicitam essa questão:

Eu gosto muito de matemática, eu espero que a professora venha estar me ensinando para que eu possa me aperfeiçoar. (PA, AL16)

Verificaram-se, no entanto, alguns discursos idealizados sobre a função do professor:

[...] Professora é quem dá a vida Ao nosso ensinamento [...] (PD, AL27)

[...] O que é uma professora? É uma tia, tia do coração como nós dizíamos no 1º ano ou na creche kkkk. (PC, AL10)

A representação do ensino como “vocação”, “missão”, ou da professora como “tia” acaba por desconstruir toda a dimensão de luta e engajamento político existentes na profissão de professor e em nada contribui para a sua valorização.

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magistério primário enquanto atividade predominantemente feminina, as relações históricas entre a atividade de ensino vista como vocação e dom, e a consequente desvalorização da carreira.

Considerar e representar a profissão de professor como algo sacro, uma missão, para a qual se é vocacionado, traz a implicação de que, nesta perspectiva, falar sobre melhores condições de trabalho, almejar e lutar por um salário melhor é praticamente um pecado. Como tem ensinado Paulo Freire, lutar é uma questão pedagógica e isso passa também pela questão salarial, principalmente num país que somente muito recentemente sancionou a Lei Nacional do Piso do Magistério (lei essa que ainda é desrespeitada em alguns estados, diga-se de passagem24).

Ademais, ser reconhecida como tia, adverte Freire (1997), é uma maneira de camuflar a identidade da categoria de professor e assim esvaziá-la de seus significados, o que converge com a TRS: Moscovici já afirmava que, no processo de ancoragem, que envolve classificação e nomeação, classificamos o objeto desconhecido de acordo com nossas categorias pré-existentes no pensamento. O objeto/pessoa representado passa, assim, a possuir as características do objeto/pessoa ao qual ele foi relacionado:

No momento em que determinado objeto ou ideia é comparado ao paradigma de uma categoria, adquire características dessa categoria e é re-ajustado para que se enquadre nela. Se a classificação, assim obtida, é geralmente aceita, então qualquer opinião que se relacione com a categoria irá se relacionar também com o objeto ou com a ideia. (MOSCOVICI, 2011, p. 61).

Portanto, a partir do momento em que a professora é classificada e nomeada como “tia”, num claro processo de ancoragem, as características como amor, carinho e as demais esperadas de uma tia, dada a relação parental posta, passam a ser as esperadas para a professora. Em oposição, outras atitudes e características não são nem esperadas nem aceitas: uma tia, pelas relações familiares e afetivas postas, não reivindicaria “melhores condições”, ou alguma forma de pagamento por prestar serviços de cuidado ou passar tempo com a criança, por exemplo. Assim, torna-se relevante

24 Disponível em: <http://www.cnte.org.br/index.php/comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/10757- estados-brasileiros-nao-cumprem-a-lei-do-piso->. Acesso em: 26 dez. 2013.

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apreender as representações de professor que circulam entre os alunos e obter informações aprofundadas acerca da relação professor-aluno a fim de melhor compreender as consequências deste processo.

As marcas, positivas ou não, que os professores deixam nos alunos, também são abordadas pelos mesmos:

[...] O que eu não gosto é de brigas, professoras chatas... mas aqui eu não tenho esse problema porque a minha professora é muito legal. (PC, AL3)

Eu não vou esquecer da professora Valeria e da Amanda. Vamos sentir saudade da professora Carina e de outros pro [professores] legais. (PA, AL27)

Em geral, os professores são representados de forma muito positiva, o que revela a importância e o peso de sua atuação. É preciso ter claro o quanto as práticas e a atuação docentes deixam marcas nos alunos, as quais podem afastá-los ou aproximá-los do objeto de conhecimento. Para o professor comprometido com o desenvolvimento de seus alunos, faz-se necessário atentar tanto para a questão das imagens quanto para as relações afetivas que permeiam o universo escolar. Leite (2008, p. 43), na obra Afetividade e práticas pedagógicas, alerta:

É inegável o fato de que a relação sujeito-objeto não se reduz às dimensões cognitivas e intelectuais. As dimensões afetivas são, portanto, aspectos do processo de mediação pedagógica que não mais poderão ser ignoradas: devem ser incluídas na agenda de discussão dos professores comprometidos com o processo educacional e com o desenvolvimento de seus alunos.

O autor também destaca a importância de se planejar o trabalho pedagógico com vistas a proporcionar situações de aprendizagem que criem experiências afetivamente positivas entre o sujeito-objeto (alunos e conteúdos escolares / objetos de conhecimento). Ressalta, na referida obra, que conta com a colaboração de vários pesquisadores sobre tal tema, que as relações afetivas que permeiam os sujeitos marcam e impulsionam (ou não) o desenvolvimento/aprendizagem dos alunos.

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importância de se aprofundarem os estudos acerca das representações de professor que circulam entre os alunos, para melhor compreensão acerca da complexa e fundamental relação professor-aluno: afinal, a qualidade de tal relação pode aproximar ou afastar o aluno do objeto de conhecimento.

Em síntese, os apontamentos feitos remetem novamente a se (re)pensar a função da escola, a concepção de homem e de sociedade que se tem e o que se faz a partir disto na escola. Ficam as perguntas: que tipo de homem e sociedade queremos? A quê uma educação, que não valoriza as relações de amizade, a cooperação, a solidariedade, a relação entre os pares e todas as demais dimensões relacionadas à convivência coletiva, pode levar?