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Escola como preparatória para o mercado de trabalho

3 A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS

6.2 Escola como preparatória para o mercado de trabalho

Os dados deste estudo apontam que a maioria das referências ao futuro refere- se a ter um bom emprego:

Eu estou estudando não só para passar de ano também para o meu futuro. Ter um emprego bom ser um grande homem nessa vida que Deus me deu. (PD, AL25)

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Eu gosto muito de estudar e espero que no 5º ano eu venha aprender mais e mais para que no futuro eu possa ter um emprego bom [...] (PA, AL16)

Nestes trechos, pode-se observar uma evolução da escola para o mercado de trabalho. Conforme apresentado no capítulo referente aos Resultados, não se observa a representação da escola como uma etapa para o prosseguimento dos estudos, sobretudo no Ensino Superior. Um dos casos que mais chamam a atenção é aqui retomado:

Eu gosto muito de aprender matemática por que quando eu crescer eu vou poder trabalhar em um mercado. (PB, AL24)

Tal depoimento acima se destaca -se visto que a aluna em questão está entre o grupo que tem o melhor desempenho. No entanto, essa condição não leva à perspectiva de continuidade dos estudos, mas sim ao ingresso no mercado de trabalho. Aqui, as questões urgentes de subsistência da vida predominam: “[...] Vou ajudar a minha mãe a não ter tantas dívidas, ajudar o meu pai no que precisar.” (PA, AL2).

Feitosa (2012, p.176) também aponta essa questão em seu estudo:

É importante notar [...] um discurso que revela uma representação de escola como algo que as possibilita “ser alguém na vida”. É fato que este argumento circula no senso comum; a sociedade deposita na escola a esperança de mudança da condição social das pessoas, o que é corroborado por diversos estudos. Assim, as crianças se apropriam destas representações e desde muito cedo nutrem certas expectativas e esperam da escola os meios necessários à mudança social objetivada.

O contexto e a identidade dos alunos da pesquisa explicam tal representação: vindos de famílias da classe trabalhadora, de um bairro periférico e violento, a inserção no mercado, seja para ter um futuro melhor: “[...] para que quando crescer ter um trabalho bom e que eu possa ter um futuro melhor do que penso, possa morar em uma casa boa. [...] (PA, AL2)”, seja para consumir os objetos desejados, “a moto e o carro e do meu sonho” (PD, AL25), é considerada a via direta para a melhoria de vida e para a inserção social. Visto que a sociedade capitalista é profundamente marcada pelo poder (ou não) de consumo de objetos, de determinado automóvel, entre outras aquisições,

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tal consumo expressa e materializa o status social. Costa (2004, p. 80), em texto sobre as perspectivas da juventude nesta sociedade de mercado, sob a ótica da subjetividade e cultura, analisa este ponto:

[...] os objetos continuaram sendo o que sempre foram desde que surgiram no cenário da economia capitalista, ou seja, a marca do sucesso profissional e social. A aparência do sujeito afluente é determinada pela maneira como se veste; pela qualidade dos objetos de adorno pessoal; pelo tipo de automóvel [...]. Os objetos de consumo “agregam” valor social aos seus portadores.

Sendo as representações formadas no transcorrer da vida cotidiana, a posição dos sujeitos nas relações sociais tem efeitos nas suas percepções, ideias, expectativas e representações. Duveen (2003, p. 266-267) aborda esta relação entre identidade e representações:

Sejam quais forem as representações internalizadas, elas estão entrelaçadas aos processos de construção de identidade, ainda que as consequências da identidade nem sempre sejam as mesmas. Por exemplo, muito frequentemente nós não consideramos que a internalização de representações sobre matemática, pela criança, esteja ligada a uma identidade social específica. Entretanto esse pode ser, de fato, o caso. Quando a forma de matemática que a criança internaliza está ligada a sua identidade como membro de um grupo social marginalizado, isso pode levar a uma relação conflitiva na escola, e é somente quando nós apreciamos as consequências de dificuldades e fracasso na escola, que o sentido, no qual as representações sobre matemática também expressam uma identidade social, se torna aparente (de Abreu, 1993). Mas, se a relação entre representação e identidade é frequentemente opaca no campo da matemática, ela pode tornar-se clara em alguns outros contextos.

A representação da escola como portal para uma vida melhor está presente tanto em alunos menores, dos anos iniciais do Ensino Fundamental, conforme apontado por Barra Nova (2011), como por alunos do Ensino Médio, segundo apontam Franco e Novaes (2005). No entanto, enquanto nestes dois trabalhos há o desejo manifesto entre os estudantes de continuarem os estudos, em nossa pesquisa esta perspectiva não é clara, aparece muito pouco, apenas em duas produções, conforme apresentado nos resultados. A perspectiva de prosseguir os estudos em uma faculdade é, portanto,

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praticamente descartada pelos sujeitos de nossa pesquisa, pois essa possibilidade não lhes é familiar: muitos deles provêm de famílias que não concluíram sequer o ensino fundamental.

Em nosso estudo, portanto, a possibilidade de ascender socialmente está mais ligada à inserção no mundo do trabalho. Novamente é importante ressaltar que este tema não é frequente nas produções analisadas, mas, quando aparece, é como preparadora para o mercado de trabalho que a escola é representada e relacionada ao futuro. A mudança social é resolvida na medida em que se estuda bastante e assim se conquista o “futuro espetacular” (PA, AL14). Franco e Novaes (2001, p. 180) fazem uma crítica nesta direção, afirmando: “Daí a necessidade de esclarecer os limites e as possibilidades da instituição escolar, desmistificando sua imagem de promover de forma linear e imediata a ascensão social.

Há um silenciamento no que se refere à questão da desigualdade social, das diferenças de oportunidade que possibilitam (ou não) o acesso aos níveis educacionais superiores. Esse silenciamento não é por acaso, e não ocorre apenas nas crianças de nosso estudo, mas é observado em toda a sociedade. O discurso das diferentes oportunidades não interessa a alguns setores da sociedade e deve ser camuflado. Assim, toda a culpa do fracasso é mascarada e posta como responsabilidade do indivíduo.

Neste ponto, é importante relembrar que um dos princípios do ideário liberal – ideário este que influencia diversos aspectos do Estado brasileiro - é o individualismo. “O individualismo é o princípio que considera o indivíduo enquanto sujeito que deve ser respeitado por possuir aptidões e talentos próprios, atualizados ou em potencial” (CUNHA, 1988, p. 28). A partir desta premissa, as “aptidões e talentos próprios” são tidos como inatos, naturais, e não como resultados de condições materiais de vida. A ordem econômica capitalista, que gera e produz as diferentes aptidões nas pessoas, fica, neste discurso, intocada. Ainda, este princípio traz em seu bojo a ideia de que

Os indivíduos tenham escolhido voluntariamente (no sentido de fazerem aquilo que lhes interessa e de que são capazes) o curso que os conduziu a um certo estágio de pobreza ou riqueza. Se a autoridade não limita nem tolhe os indivíduos, mas, ao contrário, permite a todos o desenvolvimento de suas potencialidades, o único responsável pelo

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sucesso ou fracasso social de cada um é o próprio indivíduo e não a organização social. (CUNHA, 1988, p. 29)

Assim, a sociedade de classes não é só aceita como também legitimada. Levando este princípio para a escola, o sucesso ou fracasso dos alunos é de responsabilidade de cada um deles, ou, ainda, de suas famílias. Neste discurso, prosseguir ou não os estudos, ter ou não o “futuro espetacular” está nas mãos deles, dependerá de suas aptidões e talentos, de seu esforço.

Geraldi (2004), também auxilia na compreensão desta lógica de culpabilização dos alunos, expondo sobre as diversas identidades do professor, modos de ensinar e, consequentemente, da própria escola, desde às “escolas” dos sábios, na antiguidade, até os dias atuais. Aponta que foi no século XX, após a Segunda Revolução Industrial, que uma nova divisão social do trabalho trouxe outra identidade para a profissão de professor: a de ser “capataz” da aprendizagem dos alunos, controlando o tempo, os comportamentos e a postura dos mesmos. “O professor não mais se define por saber o saber produzido por outros, que organiza e transmite didacticamente a seus alunos, mas se define como aquele que aplica um conjunto de técnicas de controle na sala de aula’. (p. 13)

Ao aluno, portanto, afirma o autor, coube o “cuidado de si”, através, principalmente, dos materiais e livros didáticos: “Quer dizer, ele tem que aprender a trabalhar com o material que o professor lhe entrega, que a escola lhe entrega.” (GERALDI, 2004, p. 13-14). Assim, se o aluno fracassa, a culpa é sua. O autor aponta outro desdobramento deste processo: a ideologização dos pais.

Se o aluno não aprendeu é porque não estudou, não quis aprender, tem deficiências e por isso ele mesmo é o culpado por sua consequente situação social O enunciado que melhor resume o sucesso deste modelo de exercício profissional de professor, e de forma de existência da escola, é proferido por pais que dizem “Meu filho não nasceu para estudar”. A escola conseguiu não só culpabilizar o aluno, mas também ideologizar seus pais. [...] Foi neste modelo que nós nos criamos, seguramente ao menos a minha geração. A escola como um lugar de ascensão social, que a estrutura na verdade permitiu a uns poucos para poder continuar mantendo sua própria reprodução. (GERALDI, 2004, p.14)

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Ele sustenta que este modelo entrou em crise nas duas últimas décadas do século XX e que a identidade do professor do futuro

[...] não é a do sujeito que tem as respostas que a herança cultural já deu para certos problemas, mas a do sujeito capaz de considerar o seu vivido, de olhar para o aluno como um sujeito que também já tem um vivido, para transformar o vivido em perguntas. O ensino do futuro não estará lastreado nas respostas, mas nas perguntas. (GERALDI, 2004, p. 19)

A responsabilização do indivíduo, explicitada no depoimento “[vou] dar o melhor de mim para ter um futuro espetacular” (PA, AL14), bem como sua consequente culpabilização no caso de fracasso, faz parte, portanto, do jogo da ideologia liberal, mascarando-se a responsabilidade do Estado em promover a justiça social e garantir os direitos sociais, dentre eles, educação de qualidade.

Cunha (1988), em obra que trata sobre a educação e o desenvolvimento social no Brasil, demonstra as relações entre a política educacional no país e o ideário liberal, o qual dá à educação a função de equalizadora das oportunidades, dissimulando, assim, as desigualdades geradas pelo processo econômico, e livrando, portanto, este último da crítica. A função da escola, neste discurso, é, portanto, ideológica.

A esperança depositada na escola, de que esta prepare para um bom emprego, precisa ser problematizada entre educadores, pais e alunos das diversas etapas de ensino.

Faz parte do processo de representar o mascaramento de alguns elementos do objeto e acentuação de outros. Jodelet (1993) chama a atenção de que, neste percurso, pode acontecer a distorção, suplementação ou subtração de elementos do objeto a ser representado. Esse processo é notado, por exemplo, quando as crianças compreendem como linear a questão da relação escolarização – emprego – futuro brilhante. Observa-se uma distorção desta relação entre escola – mercado de trabalho – inclusão social. Ainda, ao se silenciarem sobre as desigualdades sociais, há a subtração deste elemento, reforçando a representação da escola como infalivelmente preparatória para o mercado de trabalho.

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objetivação, e é a parte mais sólida e estável da representação. Moscovici (2011, p. 72) o define como “um complexo de imagens que reproduzem visivelmente um complexo de ideias”. Pode-se, assim, inferir o núcleo figurativo da representação de escola como uma ponte que dá acesso a um bom emprego e, portanto, a uma vida melhor. A escola está, pois, objetivada como uma ponte que dá acesso/passagem a um futuro melhor, via mundo do trabalho.

Estas representações levam a se repensar sobre a função da escola. Preparar para o mercado de trabalho? Para o vestibular? É preciso “esclarecer os limites e as possiblidades da instituição escolar” (FRANCO; NOVAES, 2001, p.180). Estas questões, de ordem filosófica e política, estão ligadas aos valores, concepções de homem e sociedade, ao projeto de nação que se tem ou se quer construir.

Neste ponto, somos partidários da defesa de Lins e Santiago (2001), que também encontraram o conteúdo da preparação para o trabalho na representação de escola de alunos dos anos iniciais e finais do ensino fundamental. Sobre a aproximação escola e trabalho, as autoras colocam que o preocupante é a escola reduzir sua função em preparar para o trabalho, pois, apesar de a inserção nele ser uma forma de inserção social, considera-se que há outras competências necessárias para a vida em sociedade e a inclusão social: “A participação na vida social exige conhecimentos acerca da cultura, da arte, da história, para citar alguns saberes. São esses conhecimentos somados a outros que permitem emitir opiniões, criticar, refletir ou propor.” (p. 436).