• Nenhum resultado encontrado

Espaço religioso e linguagem simbólica

CAPÍTULO 2 RELIGIÃO, ESPAÇO E CIDADANIA

2.3. Significações do espaço religioso

2.3.2. Espaço religioso e linguagem simbólica

As expressões religiosas têm seus veículos de comunicação na simbologia, na linguagem, na literatura, na arte, em rituais variados, em corpos doutrinários, em modelos de vida. Todos esses elementos se relacionam a determinadas experiências do transcendente que

Ainda que as experiências religiosas possam fazer referência a um imaginário transcendente e/ou imanente em termos das práticas individuais, grupais e/ou institucionais, estas se espacializam de modo muito concreto e esse processo de espacialização se dá a partir de uma segregação espacial e social que institui um espaço do sagrado/religioso em oposição a um espaço profano/cotidiano, separando não apenas a prática religiosa face ao mundo, mas igualmente seus fiéis daqueles outros que estão no mundo.

Ninguém está fora do espaço, e, mais especificamente, ninguém está ausente de uma

luta pelo espaço, que não implica apenas em guerra tal como esta é concebida, mas envolve,

também, toda uma série de representações, ideias, formas e imagens126.

Desse modo, pode-se compreender o espaço religioso como um espaço de edificação de um poder divino, mas também daqueles que cultuam essa divindade, de modo que a criação de deuses e de fiéis são processos correlatos e que se valem dos espaços materiais e simbólicos para se efetivarem127.

O espaço das práticas religiosas é, portanto, um espaço segregado do espaço da ordem cotidiana da cidade, ainda que se insira nesse mesmo espaço profano.

Para uma analogia relativa à estrutura narrativa do gênero literário128, pode-se afirmar

que o espaço religioso se reveste de certas propriedades que o fazem porta-voz de uma determinada autoridade, não diretamente ligada a um sistema de gestão ou poder político, mas validada como ato normativo e soberano.

Primeiro, essa forma de autoridade do espaço religioso é obtida no curso de sua própria narrativa, sua geo-grafia, sua ‘escrita sobre a terra’ naquilo que quer dizer, uma vez que é um ato eminentemente social, carregado da autoridade da sociedade e da história, que se encontra representada na autoridade de um autor, que, no caso do espaço religioso, corresponde a uma divindade e seus fiéis; e às práticas que ‘edificam’ e que os diferenciam.

Em segundo lugar, o espaço religioso também repousa na autoridade de um intérprete autorizado, no caso os oficiantes religiosos, o que se traduz em um discurso de poder ‘desse espaço’, de todos que o validam, e que ‘fala à proximidade’ das referências existenciais dos fiéis.

E, por fim, há uma autoridade do espaço religioso que é vetorizada pela vida

comunitária, cujos guardiões são o núcleo familiar e a comunidade local129.

Há, nesse movimento de constituição de espaços, uma formação de territórios que, no limite último, tem a própria Terra como referente central de uma gama de territorialidades que representam as forças terrestres130.

Na medida em que se espacializam, as expressões religiosas se tornam territórios, mas, ao fazer desse modo, instituem processos de diferenciação, ainda que indiretos, inclusive no interior desse mesmo território religioso.

Isso também se reflete nos componentes humanos que formam os espaços religiosos, instituindo uma centralidade que une os fiéis e um concomitante e correlato processo de diferenciação entre eles, que também permite uma infraorganização interna às organizações religiosas, através de diferenciações entre os componentes humanos de um dado território

religioso131, que é ‘habitado’ por grupos de pessoas e seus desejos e interesses.

Os símbolos, como parte constituinte dos mitos e dos ritos, enraízam-se na realidade da experiência humana cotidiana, fornecendo também uma leitura do mundo, de modo a ‘instituir uma realidade’.

E, desde que se formam territórios, toda atividade simbólica passa a ser contraditória, pois se, por um lado, permite agregar, por outro, favorece processos de segregação e de diferenciação, de modo que, no tocante ao fenômeno religioso, faz com que este, ao tomar forma espacial, promova uma relativa unificação entre as pessoas, mas, no mesmo momento,

faculte sua diferenciação no seio dessa coletividade132, de modo contraditório e ambíguo.

Portanto, internamente, o espaço religioso também possibilita às pessoas que se diferenciem umas das outras, isso na medida em que estas possam elaborar os processos simbólicos em que se encontram envoltas, caso contrário a diferenciação interna às práticas religiosas promoveria uma massificação do objeto de fé e das pessoas aí envolvidas, desdobrando-se em alienação e, no limite, em niilismo, entendido como ‘adoração de algo sem significado’, vazio por definição133.

Na modernidade, esse ‘esvaziamento do símbolo’ revelar-se-ia, por exemplo, nas estruturas míticas retomadas como drama, na diversão secular; e como espetáculo, no teatro.

Também reaparece no cinema e na literatura, na forma de heróis e de suas batalhas, e mesmo nas estruturas políticas, em que o revolucionário assume as façanhas do herói. Surge, ainda, no mito do Estado, além do mito do progresso e das promessas da sociedade de consumo, de realização do paraíso terreno, no aqui e agora.

De igual modo, as estruturas míticas se fazem presentes nas ‘saídas do tempo comum’, sobretudo nos espetáculos esportivos, em festas de êxtase. como os shows musicais, nos usos de drogas. Por outro lado, a anamnese psicanalítica retoma, à sua maneira, as estruturas míticas do ‘ser humano’134.

Ao se tornarem midiáticas, muitas ‘organizações religiosas’ pretendem ‘captar’ parte das forças simbólicas das sociedades modernas e ‘transformá-las em religião’.

Em todos esses campos da modernidade, fazem-se presentes estruturas mitológicas, sobretudo nas expressões religiosas, atestando-se, portanto, as influências recíprocas entre símbolo e realidade social.

E isso se dá, sobretudo, através do ‘arcabouço ritual’ relativo a cada experiência religiosa, na medida em que é uma forma específica de espacialização das práticas de cada religião bastante específica a cada uma delas135.

Os ritos demonstram sua qualidade social através de sua conexão com o tempo e o

espaço, estabelecendo ‘cortes’ dentro do tempo profano e homogêneo, regenerando a

comunidade através de um tempo hierofânico de renovação de todas as coisas136.

Desde que os símbolos, mitos e ritos se inscrevem radicalmente na realidade mais imediata, e, de certo modo, produzem-na dialeticamente, pode-se antever que tais elementos estão fundamentalmente implicados nos processos de reprodução social, e, por vezes, envolvidos com as transformações das relações sociais, em amplo sentido de seus significados.

Portanto, os elementos que compõem a linguagem religiosa se ‘inserem na realidade’ de um dado espaço, tendendo a colaborar na reprodução do mesmo, e, por vezes, em sua transformação.

Em se tratando do espaço urbano, o fenômeno religioso tenderia a reafirmá-lo com todas as suas características, sobretudo aquelas alienantes, que estão associadas à fragmentação da cidade, aos processos de segregação socioespacial e à crise dos espaços públicos.

Percebe-se, portanto, que as expressões religiosas remetem a uma experiência e a uma construção do espaço religioso que segrega espaços e pessoas, contribuindo, desse modo, para a edificação de uma determinada realidade religiosa, espacial e das pessoas, aproximando-as, mas, igualmente, diferenciando-as.

Esse processo de segregação típico ao fenômeno religioso como espaço nada garante, de antemão, que as pessoas envolvidas venham a se situar como sujeitos autônomos ou indivíduos massificados ante aos espaços e práticas religiosas que (as) constroem.

Nesse sentido, as expressões religiosas atuariam e continuariam atuando de modo ativo em um dos axiomas do espaço urbano que é a segregação socioespacial, com vistas ao domínio e ao controle das massas urbanas.

A atualidade dessa visão se dá nos esforços contemporâneos verificados na construção de grandes cidades, que reduzem a pessoa a uma coisa, apontando para uma instrumentalização dos papéis desempenhados pelas expressões religiosas nesses processos, particularmente, na ‘edificação’ de uma arquitetura monumental, de grandes templos que reúnem uma massa de fiéis, que se massificam por sua fé.

Em uma ‘fé alienada’, toda aplicação de ‘conhecimento’ poderá se revelar em mais alienação, como se pretende discutir, em parte, a seguir.